Quem acompanha a cena de mangás já deve ter ouvido falar de uma pequena pérola que tem ganhado os holofotes nos últimos tempos. Koe no Katachi, conhecido em inglês como A Silent Voice, é um dos destaques mais badalados de memória recente.

Originalmente um one-shot, depois expandido a uma série completa, a obra faturou o Prêmio Osamu Tezuka para novos artistas em 2015, foi indicada para o Prêmio Eisner de 2016 e ganhou uma animação, que chegará aos cinemas em setembro. Tanto fora quanto dentro do Japão, o mangá da autora Yoshitoki Oima tem sido um sucesso retumbante.

Não havia como ser diferente. Koe no Katachi, afinal, de contas, trata de umas poucas questões que jovens de todos os países e culturas já devem ter testemunhado: o bullying.

O que torna o mangá tão excepcional (e diferente de tantos outros seriados sobre a adolescência) é o seu ponto de vista. Em vez nos introduzir ao cotidiano da vítima, Oima conta sua história sob os olhos, justamente, do bully.

Seu enredo soará familiar a qualquer fã de slice of life. Uma garota, Shouko Nishimiya, acaba de se transferir para uma nova escola. Tudo estaria bem, não fosse por um pequeno detalhe: Shouko é surda.

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Diferente, ela se torna o assunto da vez. Por não conseguir falar direito, o professor a dispensa das atividades orais. A turma sente que ela está sendo privilegiada e resolve atormentá-la.

Shouya Ishida, um garoto bagunceiro, dos que passam mais tempo na diretoria do que na sala de aula, vê em Nishimiya uma oportunidade de ouro. Com crueldade de sobra e vítimas de menos, ele vê na colega um alvo perfeito: fraca, impopular e vulnerável.

Insatisfeito em ignorá-la ou ridicularizá-la na frente dos outros, ele escreve insultos em sua carteira, joga seu caderno na água e destrói seus aparelhos de surdez.

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Para a surpresa de Ishida (e para a schadenfreude de todos que passaram por momentos parecidos) o feitiço se volta contra o feiticeiro. Nishimiya muda de escola. O colégio é obrigado a pagar indenização pelos aparelhos quebrados. A turma e os professores, que antes se divertiam com as peças que Ishida pregava, se voltam contra ele e fazem que com receba toda a culpa.

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O que se segue é algo que Ishida jamais imaginaria. Na falta de uma vítima óbvia como Nishimiya, seus antigos colegas o escolhem como o novo alvo de bullying. De garoto descolado, bad boy da sala, Ishida vive o inferno que preparara para Nishimiya. Ele termina a escola sem amigos, desprezado pelos professores e assediado dia após dia.

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Para a sorte do garoto, o destino tinha uma última brincadeira à sua espera. O que poderia ser uma lição de moral sobre o karma se transforma em uma história de redenção. Anos depois, já no ensino médio, o ex-bagunceiro amargurado se encontra com sua antiga vítima.

Atormentado pelo remorso, Ishida decide que se tornará uma outra pessoa. Ele aprende linguagem de sinais, retoma contato com seus colegas de infância e se compromete a reatar com Nishimiya. E, quem sabe, obter ele próprio um pouco de paz.

Justamente por ser um tema tão delicado, o bullying é muitas vezes tratado de forma sentimentalóide. Eu mesmo, que entrei em contato com Koe no Katachi na mesma época em que escrevi sobre The Gods Lie., demorei para me arriscar no mangá.

Ao ler a sinopse, tive a impressão de que a história degringolaria para uma repetição de clichês vazios sobre a importância da empatia ou alguma outra platitude.

Aqueles que sentem uma resistência parecida podem respirar aliviados. Koe no Katachi é uma história incrivelmente bem contada, sem vilões ou mensagens óbvias.

Como o que há de melhor na ficção, Yoshitoki Oima prefere mostrar a julgar. Em uma de seus decisões mais criativas (e sensíveis, em um mangá sobre surdez), ela deixa o visual contar a história.

Após ser eleito o novo bode expiatório da sala, Ishida se torna um adolescente quieto, solitário e revoltado. Sem saber quem responsabilizar pelo sofrimento, ele resolve culpar a todos e viver a vida por conta própria. Oima nos apresenta sua decisão como um “X” metafórico sobre os rostos das pessoas.

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Na medida em que Ishida muda e reata a amizade com seus antigos colegas, seus rótulos começam a cair.

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Em outro momento, Oima nos dá uma amostra do universo de Nishimiya. No espaço de algumas páginas, somos convivados a “escutar” o mundo como a garota: frases incompletas e entrecortadas, filtradas pelo seu aparelho de surdez.

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Bullying: um problema japonês? 

Não é difícil entender a popularidade de Koe no Katachi. Junto com as mortes por excesso de trabalho e os adultos que se recusam a sair de casabullying no Japão é um daqueles temas que ganha com frequência um espaço nas manchetes.

O país, que já tem um enorme índice de suicídio, registra um recorde de mortes de jovens em 1º de setembro, dia de volta às aulas após as férias de verão. Para alguns, o motivo é justamente a crueldade dos colegas de sala.

Bullying é um problema universal, mas os abusos que os jovens japoneses sofrem não são necessariamente iguais aos de seus colegas em outros países. O ijime (como a prática é conhecida no Japão) tem algumas peculiaridades.

Lá, o assédio é muito mais psicológico do que físico e geralmente acontece entre alunos de uma mesma turma. Ao contrário do clichê americano, ele não é praticado por um ou dois “valentões”, mas por grupos muito grandes de pessoas, quando não por uma classe inteira. Em alguns casos, com participação até mesmo do professor.

Curiosamente, a despeito da agressão física retratada em Koe no Katachi, essa versão “dissimulada” do Ijime parece muito mais próxima do que a própria autora se lembra de seus anos de colégio. Como ela disse em uma entrevista:

Kodansha Comics:  Você tem alguma experiência pessoal com bullying, ou com ser vítima de bullying?

Yoshitoki Oima: Na vida real, bullying não é muito visível na superfície. Às vezes você pode dizer que alguém está falando pelas suas costas, mas eu nunca fui longe o suficiente para confirmar. Então eu não sei. Eu não encararia aquilo como bullying, mas eu ainda tenho umas impressões negativas daquilo. Eu pararia por ali.

O ijime também pode durar muito mais tempo do que o bullying com que estamos acostumados. Enquanto que no Ocidente é comum que bullies se “cansem” ou escolham outras vítimas, no Japão um indivíduo pode ser abusado dia após dia durante toda a sua vida escolar.

Para alguns, esse tipo de bullying é um problema que vai além dos muros da escola. Há uma pressão tão grande para que pessoas se juntem ao grupo, sejam parecidas e se comportem do mesmo jeito que aqueles que se sobressaem se tornam  vítimas de ataque.

Como disse uma aluna entrevistada pela CNN:

No Japão, você precisa entrar na linha das outras pessoas. E se você não consegue fazer isso, você é ignorada ou sofre bullying. [Todo mundo] precisa ter uma opinião unificada, e isto destroi o que há de único em cada pessoa.

O problema, como Koe no Katachi mostra tão bem, é que essa mentalidade torna quase impossível combater o bullying. Em um lugar em que todos devem abaixar a cabeça e se misturar à multidão, chamar a atenção (ou mesmo tentar ajudar) uma criança que sofre ijime pode causar mais estragos do que não fazer nada.

É o que o mangá de Oima nos prova logo de início. Para tentar integrar Shouko à turma, uma das professoras de sua escola decide forçar os alunos a aceitá-la no coral da classe. Shouko, que é surda, não tem a menor capacidade de cantar e acaba estragando a performance da sala.

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Os alunos ficam com raiva e passam a odiá-la. O que era para ser uma tentativa de unir a turma acaba transformando Shouko na inimiga da sala, alguém que, aos olhos do colega “merece” tudo o que sofre.

Não é por acaso que, ao longo da história, Shouko continuamente pede desculpas a seus colegas e (quase) nunca deixa escapar a sua tristeza. O que pode parecer uma certa “nobreza de espírito” é, na verdade, a culpa por ter bagunçado o status quo. Shouko se sente perseguida menos por ser surda do que por ser aquela que, mesmo sem querer, foi a responsável por tanta confusão.

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Um excesso de disciplina?

Quando pensamos em comportamentos como esse, é fácil colocar a culpa na desordem. Afinal de contas, se tudo corresse segundo as regras, abusos como os sofridos por Shouko não aconteceriam.

Curiosamente, alguns estudiosos acreditam que o problema seja justamente o contrário. Por mais estranho que possa parecer, jovens japoneses torturam seus colegas porque seu ensino funciona (ao menos no papel) bem demais.

As escolas japonesas têm hierarquias muito fortes, regras em excesso e pouca intimidade entre estudantes e professores. Os alunos não devem cuidar apenas de seus estudos, mas do próprio colégio. Tarefas comuns, como limpeza, não são feitas por funcionários, mas pelos próprios jovens.

Se por um lado isso estimula um sentimento de comunidade, por outro cria a ideia de que o “bem da escola” é maior do que as preocupações de um único aluno. Com tantas obrigações e metas para cumprir, o desconforto de um único estudante se torna um problema “menor” dentro das preocupações do colégio.

Com os professores não é diferente. Como nos conta um americano que trabalhou dando aulas no Japão, os docentes têm tantas obrigações que simplesmente carecem de tempo para lidar com os problemas dos alunos.

Pior: em raros casos, eles ativamente encorajam o bullying para manter a turma em ordem. Diante de turmas bagunceiras e sem autoridade para dar um basta nas maldades, alguns professores elegem um “palhaço” e permitem que os alunos de divirtam às custas dele.

É justamente essa crueldade que Koe no Katachi nos mostra sem rodeios. A diretoria só toma providências em relação a Nishimiya quando a própria escola passa a correr risco de ser investigada. O professor a considera um problema e chama a mãe de “egoísta” por jogá-la nos braços dos outros. O bem da turma, afinal de contas, vem em primeiro lugar.

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Mesmo Ishida, o bully por excelência, não é um simples mau-caráter. O garoto é filho de uma mãe solteira que passa o dia inteiro trabalhando. Sem uma família que funcione como tal, ele não tem ninguém em quem se espelhar… ou  com quem passar o tempo.

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Oima provavelmente só estava pensando no seu enredo, mas fez um trabalho digno de uma tese de sociologia. Segundo alguns psicólogos, crianças criadas em famílias sem pais (em japonês, tanshinfunin) têm uma predisposição a virarem bullies.

Com a rotina de trabalho endiabrada do Japão e as pressões do mundo corporativo, famílias têm menos oportunidades para exercer autoridade.  Tal como os professores de Ishida e Nishiyima, filhos problemáticos são um fardo que são obrigadas a delegar.

É uma justificativa bem clemente dos bullies, mas talvez nisto esteja a maior força do mangá. É muito fácil tomar partido contra as injustiças, criticar a maldade, desejar dar as mãos aos nossos amigos e construir um mundo melhor.

Bem mais difícil é encarar o mundo pelos olhos dos próprios “injustos” e entender quão sutil é realmente a “maldade”. É desconfortável descobrir como mesmo pessoas boas são capazes de ferir outras, e pessoas ruins podem provocar um sofrimento imenso fazendo apenas bondades.

Não é fácil equilibrar essas nuances com toda a emoção de um slice of life de melodramaKoe no Katachi, felizmente, não é um mangá como qualquer outro.