No mundo dos games, há mais na última geração do que gráficos fotorrealistas e franquias multimilionárias. Se é verdade que hoje a indústria faz parcerias com Hollywood e investe em realidade virtual, também é verdade que ela tem resgatado alguns dos mais queridos nichos de épocas passadas.
Foi o caso dos roguelites, um dos gêneros mais distantes do mundo mainstream. E é, também, o caso dos grand strategies, que pelas mãos da cada vez mais popular Paradox têm conquistado não apenas fãs de carteirinha, mas também o grande público.
Em linhas bem gerais, grand strategies são jogos de estratégia em que assumimos o controle de toda uma unidade política. Ao contrário de jogos menores, geralmente focados apenas no movimento de tropas ou na construção de cidades, grand strategies nos entregam todas as responsabilidades esperadas de um líder. Ao mesmo tempo.
O gênero é mais antigo do que os próprios videogames, mas sempre ocupou um nicho no mercado. Não é difícil entender por quê. Estes jogos são assustadoramente complicados, inclementes com novatos e crueis com veteranos. Numa escala de dificuldade, eles ocupam com louvor a faixa da “hard fun”.
O desafio, contudo, não parece amedrontar os fãs. Com os lançamentos quase simultâneos de Stellaris e Hearts of Iron IV nas últimas semanas, o grand strategy parece contar com sua maior popularidade desde os anos de ouro dos jogos de tabuleiro.
Nem sempre foi assim. Quando Victoria II foi lançado, seis anos atrás, o gênero era tão obscuro que o CEO do estúdio apostou que rasparia os cabelos se o jogo desse lucro (e deu).
De fato, para quem está acostumado com a adrenalina esperada da maioria dos games, a perspectiva de ficar “encarando um mapa” por centenas de horas a fio parece absurda.
Parece, mas não é. Não deixem o ritmo lento e os gráficos pouco inspirados enganá-los. Grand strategies são muito mais viciantes do que qualquer game de ação. E devem isto a três razões:
1) Dificuldade é algo que vicia
Por mais estranho que pareça à primeira vista, aquilo que faz dos grand strategies tão inacessíveis é a mesma coisa que os torna tão engajantes. No final das contas, sofrer para entender um jogo é algo que nos dá prazer.
Pesquisadores descobriram que jogadores sentem enome satisfação quando estão no controle de suas experiências. Isto vale para enredos e personagens, mas também para elementos mais técnicos: a interface, os elementos de cena, os recursos, as mecânicas. Interagir com estas coisas e deixá-las do nosso agrado é, muitas vezes, uma recompensa mais importante até do que vencer o jogo.
Por si só, isso não deveria nos surpreender. Como eu já disse num artigo anterior, games agradam quando nos ensinam coisas novas. É o ato de decifrá-los, de se acostumar aos seus sistemas e encontrar soluções para seus problemas que nos incita a continuar jogando.
Nossa mente funciona decodificando padrões. Graças a esta habilidade, conseguimos enxergar formas nas nuvens, mensagens subliminares em latas de Coca-Cola e rostos em automóveis.
Essa capacidade não é só natural, mas também estimulante. Daí a satisfação que sentimos ao montarmos um quebra-cabeça, terminarmos um livro difícil ou aprendermos uma língua nova.
Se tarefas pequenas já nos satisfazem tanto, quando nos depararmos com a complexidade de um grand strategy, com suas mecânicas inclementes, mapas gigantescos e números para dar e vender, o “resolvedor de problemas” dentro de nós encontra seu paraíso.
O grand strategy é um caso extremo, mas nem de longe o único. Ao menos uma pesquisa constatou que o prazer pelo desafio é a principal razão pela qual gamers escolhem seus jogos, superando bons gráficos, competição e fantasia.
Por mais que alguns desenvolvedores tentem vender a imagem de que a dificuldade é inimiga do público, a verdade é que poucas pessoas têm problema com ela. Todos curtem um desafio. A diferença, claro, está no seu tamanho.
O designer de games Jesse Schell argumenta que existe um “ponto ótimo” de dificuldade em todo jogo. Se o game for muito difícil, nos estressamos e paramos de jogar. Se for fácil demais, nos entediamos e perdemos o interesse. A teoria não é nova e é conhecida na psicologia como estado de fluxo:
Enquanto jogadores estiverem “oscilando” dentro do fluxo, eles se sentem desafiados e estimulados. Se a seta pender para o campo da ansiedade ou do tédio, sentirão que o jogo está desbalanceado e que estão sendo punidos por progredir.
Fãs de grand strategy têm uma tolerância maior ao estresse da derrota, mas nem por isso são imunes ao tédio. Uma curva de dificuldade mal-elaborada pode fazer até mesmo um jogo difícil parecer maçante após algumas horas de imersão.
Para que isso não aconteça, é preciso que
2) Ele saiba se reinventar
Para manter uma pessoa interessada no mesmo jogo por 600 horas, não basta desafiá-la uma única vez. É preciso que ela se sinta motivada cada vez que colocar os dedos sobre o teclado.
Em certa medida, isso sempre acontece, independente do jogo. Gamers experientes geralmente adaptam seus estilos para se manterem sempre desafiados.
Trata-se do chamado gameplay emergente, do qual já falei em outra ocasião. Quando pessoas completam o que um jogo tem a lhes oferecer, elas inventam novos objetivos por conta própria. Pode ser um desafio extra (jogar no modo Ironman) ou algo mais subjetivo (só conquistar países que comecem com a letra E)
Por serem complexos e imprevisíveis, grand strategies são naturalmente receptivos ao gameplay emergente. É o que admite Henrik Fahraeus, da Paradox, ao notar que uma parte das pessoas começou a jogar Crusader Kings II não pelo interesse em estratégia, mas pelo prazer de criar situações absurdas envolvendo seus monarcas:
“Inicialmente, [o público] era provavelmente nossos fãs habituais. Os jogadores de Europa Universalis que se interessaram em Crusader Kings II. E eu acho que esta é ainda a maior parte dos jogadores. (…) Mas há uma minoria significativa de role-players, ou fãs de The Sims, se você preferir.
[As histórias pessoais absurdas] é a parte do jogo que fez mais barulho. Eu não sei. É parte daquilo pelo qual o jogo ficou conhecido. A narrativa emergente e as situações malucas que surgem dali.”
Um outro caminho é desenvolver as regras de propósito para que surpreendam o jogador quando ele menos espera. Em Crusader Kings II, a invasão mongol altera completamente o equilíbrio geopolítico no mapa. Em Europa Universalis IV, a Reforma Protestante pode transformar um reino estável em uma colcha de rebeliões à espera de uma centelha.
Já em Stellaris, o game espacial da Paradox, tecnologias mais avançadas trazem um percentual de risco. Pesquisar inteligência artificial pode provocar uma rebelião das máquinas. Desenvolver novos meios de locomoção FTL, por sua vez, pode acabar abrindo uma fenda para outra dimensão, trazendo à galáxia o equivalente dos Reapers da série Mass Effect.
Não fosse o bastante, toda a galáxia é criada proceduralmente no início de cada partida. Ao contrário de jogos históricos, Stellaris não nos dá a segurança de decorar um mapa e montar estratégias reaproveitáveis. Sempre que iniciamos um jogo, estamos embarcando em um desafio completamente diferente.
A necessidade de apresentar novos desafios explica também um dos costumes mais radicais e estapafúrdios da Paradox: seu hábito de transformar jogos em novos jogos. E não falo apenas em modding, mas em literalmente recriar títulos que já foram lançados no mercado.
Como fãs do estúdio já aprenderam do jeito mais difícil, seus games recebem patches obrigatórios que alteram completamente seu equilíbrio. Não raramente, eles fazem com que estratégias dominantes se tornem inúteis, ou que jogos inteiros tenham de ser abandonados pela metade.
O que pareceria uma loucura em qualquer outro gênero de videogame é, para os grand strategies, a solução de um problema. Ao forçar seus jogadores a aprender de novo as mecânicas fundamentais, a Paradox os mantém no estado de fluxo.
Tudo isso, claro, se o jogador se interessar o suficiente para desperdiçar semanas de sua vida em um único jogo. Para que isso aconteça é preciso que o game primeiro interesse as pessoas a ponto de convencê-las a dominar suas mecânicas.
Aqui, os grand strategies não poderiam ter tido uma referência melhor. Afinal de contas, eles estudaram com o campeão indisputável em gameplay viciante.
3) Intervalos de recompensa
Como todos já devem suspeitar, jogos de azar não são exatamente aleatórios. Na maioria das vezes, essas máquinas são programadas para “ganhar” em vezes específicas e para “perder” em todas as outras.
Isso vale não só para caça-níqueis, mas até mesmo para as insuportáveis garras de parque de diversões. Embora pareça uma questão de mira e habilidade, obter o maldito ursinho de pelúcia não depende de nós, mas da máquina. Suas garras são desenvolvidas para soltar o prêmio de propósito em determinadas tentativas.
Obviamente, pessoa nenhuma aceitaria jogá-las se não tivesse pelo menos uma chance de lucro. Para garantir que isso não aconteça, caça-níqueis e afins adotam “intervalos” de recompensa, programas que determinam a frequência com que farão seus jogadores pensar que tiraram a sorte grande.
Claro, o “roteiro” que esses aparelhos seguem não é sempre fixo. Do contrário, qualquer um poderia fazer uma fortuna levando um caderno até o cassino e anotando os resultados turno a turno até desvendar o código.
Uma estratégia muito usada para complicar as coisas é começar com intervalos bem pequenos, fazendo o jogador acreditar que está com sorte e baixar a guarda. A partir daí, ganhar se torna progressivamente mais difícil, exigindo mais e mais moedas para retornos cada vez mais raros.
A grande sacada, como apontam os especialistas, é o que o jogador não percebe que está sendo enganado. Cada fracasso passa a sensação de ser uma “quase vitória”, um passo extra que os aproxima do jackpot. Afinal de contas, se eles já ganharam uma vez, ganhar uma segunda é apenas questão de tempo.
Qualquer semelhança com videogames não é mera coincidência. Considerando que máquinas de aposta não deixam de ser, à sua própria maneira, jogos eletrônicos, não é de se espantar que desenvolvedores tenham aprendido com os cassinos.
Quase todos os games usam e abusam de intervalos de recompensa, mas grand strategies são espetáculos à parte. Estes intervalos são o princípio por traz dos sistemas de level-up, da “chance de sucesso” de agentes, dos custos e prazos de edifícios a serem construídos.
Algumas das upgrades de Crusader Kings II são tão caras, tão demoradas e tão pobres em retorno que sequer compensam o preço exigido para contrui-las. Sua função não é ser útil ao jogador, mas mantê-lo ocupado após 85h de jogo e metade do mapa conquistado.
O já mencionado Stellaris talvez seja o melhor exemplo. Como seria de se esperar de um game ambientado no futuro espacial, um de seus temas fundamentais é a pesquisa científica. Ao mesmo tempo em que batalham contra aliens e colonizam novos sistemas, os jogadores passarão uma boa parte de seu tempo decidindo quais tecnologias desejam ter a seu serviço.
O problema é que o tempo de tecnologia aumenta progressivamente a cada nível. Se no início do jogo é possível fazer grandes avanços no intervalo de alguns minutos, pesquisas avançadas demandam um tempo monstruoso para darem resultado.
Animados pela satisfação do início do jogo, somos incentivados a continuar jogando, mesmo que os desafios em si já tenham se esgotado – e o jogo, se transformado em uma espera interminável.
Não é à toa que, tal como fãs de MMORPG e jogos de mundo aberto, veteranos de grand strategy muitas vezes sentem que estão em um segundo emprego. O impressionante não é que estes jogos consigam nos provocar um sentimento tão agridoce de emoção misturada ao tédio, mas que continuamos a jogar – felizes – a despeito disso.
Portanto, da próxima vez que sentar para uma breve jogatina e descobrir que seis horas se passaram enquanto você restaurava o Império Romano, não se sinta culpado. Para um fã de história ou raciocínio estratégico, um grand strategy fala mais alto que qualquer caça-níquel.
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