Uma garota vê o pai sair de um castelo ao lado de uma mulher. Ela transborda de alegria. O seu pai era um príncipe e estava escoltando uma donzela. Justo como ela suspeitava desde pequena!

Animada, resolve compartilhar as novas durante o jantar. Se ela não é capaz de juntar os pontos, sua mãe o faz com rapidez. O “castelo” em questão é um motel temático e a “donzela”, a amante de seu esposo. A mãe “sufoca” sua tagarelice com um ovo frito, expulsa o marido de casa e passa a se sustentar por conta própria.

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Em um último ato de crueldade, o pai da garota lhe diz que a culpa é toda dela. E desaparece para nunca mais dar as caras.

Aflita, a garota é abordada por um ovo falante, mistura de Humpty Dumpty com o Gato de Botas. Ele lhe diz que suas palavras são ruins e provocam a tristeza nos outros. Para evitar que estrague mais vidas, ele a impediria de falar.

E, assim, a garota se torna muda.

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Dessa forma começa Kokoro ga Sakebitagatterunda, ou Kokosake, o muitíssimo esperado longa que chegou há pouco aos cinemas ocidentais. Lançado nos EUA como Anthem of the Heart, o frisson sobre o filme é justificado. Dos mesmos criadores de Ano Hana e ambientado na mesma cidade bucólica de Chichibu, o filme traz altos valores de produção à voga extremamente popular  do anime melodrama.

Se a sinopse não entrega de pronto, Kokosake não é um típico anime de fantasia. Longe da exuberância do Studio Ghibli que conquistou plateias mundo afora, o filme de Tatsuyuki Nagai e Mari Okada fala não do sobrenatural, mas da necessidade (muito mundana, reconheçamos) de escapar.

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Traumatizada pelo divórcio dos pais, a adolescente Jun passa a se convencer de que foi vítima de uma maldição. Sempre que usa a voz, sofre de dor e de ataques de pânico. Suas palavras, quando saem, são hesitantes, picotadas. Releitura trágica de certa personagem de Sayonara Zetsubou Sensei, ela depende do celular para interagir com o mundo.

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Tudo muda quando o coordenador da escola decide montar um musical e a nomeia como uma das responsáveis por sua organização. Jun, que mal é capaz de se comunicar, descobre que precisará cantar em público.

Para sua surpresa – e graças à insistência de um amigo – ela descobre que a música parece ser o “ponto cego” em sua maldição. Muda no dia a dia, ela se desprende no canto, com uma paixão (e afinação) que deixa seus colegas boquiabertos.

Jun decide usar o musical para contar a sua história. Ela escreve um libreto sobre o ovo falante na esperança de que o exercício, de alguma forma, a ajude a se libertar de sua praga.

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Em um enredo que se passaria por slice of life, fosse Kokosake uma minisérie do Noitamina, Jun e seus colegas embarcam em um projeto que mistura imaginação e realidade, conflitos pessoais e (claro) doses copiosas de lágrimas.

Como não podia deixar de ser, tendo em vista sua temática, o destaque é a trilha sonora. O musical de Jun traz uma compilação de clássicos do repertório, revitalizados com letras novas no estilo de Country Roads em Whisper of the Heart.

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A seleção fala por si só. Ela inclui, entre outras coisas, uma das mais singelas versões de Summertime de George Gershwin que já tive o prazer de ouvir.

https://www.youtube.com/watch?v=p_lSIvjC33s

Ao mesmo tempo, na linha do que há de melhor no anime melodrama, Kokosake preza pelas sutilezas. Por trás dos encontros e desencontros de colegiais em fim de semestre, temos uma garota dividida entre a realidade e a fantasia. Pior: uma fantasia que – reconheça ela ou não – foi criada para protegê-la.

Escapar é viver

O conflito de Jun é comum a todas as pessoas, e não é difícil entender por quê. Depois da respiração e do polegar opositor, o escapismo é talvez um dos ingredientes mais importantes da existência humana. Para alguns, é a pedra angular da cultura e parte daquilo que faz de nós animais racionais.

Graças ao escapismo, podemos mergulhar em uma obra de ficção, sonhar com mundos paralelos e amanhãs melhores. Graças a ele, podemos digerir e suportar realidades cruéis, seja um trabalho degradante, um provincialismo modorrento, uma guerra, o interior de uma cela ou mesmo um campo de concentração.

Em Kokosake, o conto de príncipes e ovos falantes de Jun pode parecer infantil, mas a protege da culpa de ter destruído o casamento dos pais. Diante de sua mãe solteira, lutando mês a mês para não entrar no vermelho, sujeitar-se a uma maldição é uma ideia menos dolorosa do que saber que suas vidas poderiam ser melhores se tivesse sido menos intrometida.

O problema, como provocava certa escritora, é que podemos escapar da realidade, mas não das consequências de se escapar da realidade. Fugir para a fantasia pode ser terapêutico, mas imaginação nenhuma é fértil o suficiente para nos salvar de uma enrascada ou de reverter um mal que tenhamos feito.

Ações têm consequências. Esse é um ponto fundamental da vida, dos nossos sistemas de moralidade e do próprio sentido de “crescer”.

Como um meio consagrado pelo seu foco na juventude – e acusado não raras vezes de vender o sonho da juventude eterna – não é uma surpresa que os animes já tenham refletido (e muito) sobre essa questão.

Chuunibyou

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Poucas expressões capturaram esse “outro lado” do escapismo melhor que chuunibyou, um dos últimos de uma longa lista de nomes japoneses para problemas distintamente universais.

A palavra, uma contração de chuugakkou ni-nen byou (lit. “síndrome do segundo ano do ginásio”), diz respeito ao hábito de adolescentes de se considerarem “especiais” em relação aos outros. Nos casos mais brandos, trata-se apenas de vestir uma máscara blasé, não conformista, too cool for school. Nos exemplos mais escalafobéticos, eles podem chegar a inventar poderes mágicos ou identidades secretas (como um grande amigo meu de escola que dizia ter nascido em Netuno).

É com essa segunda definição que otakus devem estar acostumados, graças ao açucarado Chuunibyou Demo Koi ga Shitai! De fato, o anime se sagrou tão bem como ode a esse “mal” da juventude que passou a ser basicamente tudo o que nos vem quando pesquisamos a respeito.

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Há, porém, aqueles que tenham interpretado os delírios de chuunibyou de uma maneira bem mais séria. É revelador, neste sentido, que Inio Asano tenha dito que conhecer a gíria foi o que o inspirou a escrever Umibe no Onnanoko, seu polêmico mangá incluído na competição oficial do último Festival de Quadrinhos de Angôuleme.

A obra, sobre a qual já falei semanas atrás, não tem nada em comum com o escapismo colorido de Chuunibyou Demo Koi ga Shitai! Antes, é a história de um garoto deslocado lidando com a família ausente e com o suicídio do irmão mais velho.

Tal como Jun em Kokosake, ele se sente culpado pela situação da família (mesmo que não tenha, de um ponto de vista racional, culpa alguma). Se Jun “perde” a voz em uma maldição, Kosuke, o protagonista do conto de Asano, acredita que está amaldiçoado a morrer jovem. Para dar sentido a seus últimos dias, ele se entrega a uma rotina de sexo selvagem com uma garota que não ama e a brigas violentas com seus colegas de escola.

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Asano, que não tem fama de segurar seus leitores pela mão (ele mesmo admitiu que Oyasumi Punpun foi escrito para fazer as pessoas se sentirem mal), nos mostra o outro lado da moeda. Esbanjando a sua “juventude difícil”, Kosuke não apenas não resolve seus problemas, como mergulha em traumas ainda maiores e chega perto de ser preso.

O escapismo juvenil é cruel, auto-destrutivo e pode acabar conosco se não nos livrarmos dele antes. Como já adivinhara John Milton, séculos atrás, a mente é seu próprio lugar e pode fazer um céu do inferno. Porém, com a mesma facilidade, ela faz um inferno do céu.

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Colocando tudo na balança, seria o alívio do escapismo valioso a ponto de justificar os riscos? Haveria sentido em se proteger do terrível mundo real se o preço a se pagar for a capacidade de viver na realidade – quando não nossa própria vida ou integridade física?

Para Asano, a resposta é sim. Em Umibe no Onnanoko, Kesuke certo dia encontra uma câmera com fotos de uma garota. Ele se apaixona de imediato e se convence de que seu destino na vida é encontrá-la.

Tempos mais tardes, depois de meses de violência e paixão tóxica, ele encontra uma menina idêntica, com o uniforme de um dos melhores colégios da região. Ele decide conhecê-la, custe o que custar. Muda o penteado, corta relações com sua companheira e volta a estudar para passar no vestibulinho. O escapismo de sua crush infantilóide faz o que o raciocínio frio não foi capaz: trazê-lo de volta à realidade.

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De Kokosake, não darei spoilers. Se o dom de sua recém-encontrada voz será a Jun tão catártico quanto o reencontro de Menma em Ano Hana, o espectador descobrirá por conta própria. Um ponto, no entanto, avanço desde já. Provando o seu valor ao cânone do melodrama japonês, Kokosake é uma jornada dolorosa(e encantadora)mente honesta.