Em 1937, os japoneses montaram uma assalto contra Shanghai, na China. Sem explosivos, três soldados encheram um bambu com pólvora, acenderam um pavio e o jogaram próximo ao acampamento inimigo.
Infelizmente, eles calcularam mal o raio de detonação, e a “bomba” acabou explodindo antes que pudessem voltar para as trincheiras. A propaganda do Estado, entretanto, vendeu o episódio como um ataque suicida de três valentes defensores da pátria. Os pobres soldados foram batizados de “As Três Balas Humanas”.
Em 1945, soldados japoneses em Zungen, na Nova Guiné, receberam a ordem para se suicidarem em uma carga banzai. Para a surpresa de todos, um oficial se recusou a obedecê-la. Ele mandou seus homens se refugiarem na selva e continuou lutando por meio de táticas de guerrilha.
Ao saber disso, o comando japonês ficou possesso. A notícia de que a tropa se sacrificara pela pátria já tinha sido transmitida. Desmenti-la seria um vexame. Para a Marinha Imperial Japonesa, preservar combatentes (em uma guerra em que já estavam em desvantagem numérica) era menos importante do que morrer com honra.
Quem conta a história é o mangaká Shigeru Mizuki, ex-fuzileiro naval e sobrevivente da Pacificação de Rabaul. Esses e outros episódios que descreveu em seus quadrinhos são exemplos da doutrina de sacrifício do Império do Japão, o princípio de que a vida dos cidadãos pertencia ao imperador e que deveria ser entregue sem pestanejar.
É a filosofia por trás dos ataques kamikaze, dos gyoukusai e dos suicídios em massa de civis. Nas palavras da propaganda oficial, a ideia de que o Japão, se caísse, cairia como um todo: cem milhões de pessoas morrem juntas.
Por motivos óbvios, esse não é um assunto que se vê todo dia, sobretudo na esfera otaku. Porém, o quadro pode estar para mudar. Joker Game, destaque na nova temporada de animes, é uma série que mergulha de cabeça nesse passado que muitos gostariam de esquecer.
Jogos dentro de jogos
Adaptada de um romance de sucesso (o qual até já rendeu um longa metragem), Joker Game é um drama de espiões digno de John le Carré. Nele, acompanhamos a Agência D, um esquadrão de inteligência fictício do Exército Imperial Japonês em 1937.
Se a data não dá calafrios, deveria. É o começo da Segunda Guerra Sino-Japonesa, conflito que eventualmente empurraria o Japão à Segunda Guerra Mundial e que foi pretexto para alguns dos piores crimes contra a humanidade já cometidos.
O primeiro episódio acompanha o tenente Sakuma, um militar típico, que encarna a mentalidade esperada do Exército Imperial. Ele acredita que ordens devem ser obedecidas a todo custo, que a luta deve ser feita às claras, que o inimigo deve ser exterminado e que o suicídio é preferível à derrota.
Sakuma é escolhido como representante militar de uma unidade de espionagem composta apenas por civis. Não demora muito para que entenda porque nenhum dos seus colegas de quartel deu as caras. Na Agência D, bravura, disciplina e perícia com armas são secundários. A doutrina de sacrifício do Exército Imperial é motivo de chacota. Nesse mundo estranho, Sakuma logo percebe que é um peixe fora d’água.
Para a Agência D, o importante é a sutileza. Fluência em línguas estrangeiras, conhecimento de venenos, técnicas de sedução. Bons espiões não matam ninguém (nem a si mesmos). Eles cumprem suas missões e desaparecem sem disparar um tiro.
A diferença fica clara em seu passatempo favorito: uma partida de pôquer em que todos trapaceiam. Para além do jogo “oficial” de cartas, fichas e blefes, há um metagame de sussurros, espiadas e “parceiros” de fora.
É assim, eles explicam, que o mundo real funciona. Quem o entende, sobrevive. Quem insiste em julgar o mundo pelas aparências, joga o joker game.
Fora do universo de faz-de-conta do Exército Imperial, a mentira e a verdade andam de mãos dadas. Cumprimentos e acordos diplomáticos traem planos maquiavélicos. O maior aliado pode, quando as balas começarem a voar, se mostrar o pior dos inimigos.
Se Sakuma conseguirá se adaptar – ou se não será, ele mesmo, feito de coringa – é o que descobriremos ao longo da temporada. Uma coisa é certa: A versão fascista do bushidô que Hirohito impunha ao seu regime (e que Sakuma compra sem pestanejar) podia funcionar em casa, mas não no mundo traiçoeiro da política internacional.
O exemplo que os espiões da Agência D citam é o Tratado Naval de Washington de 1922. Vitorioso na Primeira Guerra Mundial, o Japão foi convidado para discutir um acordo anti-armamentista para evitar tragédias futuras.
Infelizmente para o Japão, as potências ocidentais usaram a ocasião para colocá-lo em desvantagem, proibindo-o de ter uma força militar do mesmo tamanho da americana e da britânica. O governo japonês viu isso como um insulto e um sinal de que não deveria mais jogar limpo. O resultado foi uma corrida armamentista “às escondidas”, a exemplo do que Hitler faria na Alemanha.
As entranhas da guerra
É difícil saber quão fundo Joker Game pretende enveredar no submundo da Guerra do Pacífico. Embora não sejam lá tão conhecidos (sinal de que fizeram bem o seu trabalho), espiões japoneses se envolveram em operação realmente inacreditáveis, incluindo parcerias com a Yakuza, infiltrações em seitas budistas e mesmo atividades em solo brasileiro.
O seu braço mais notório talvez sido a kokuryuukai, ou Sociedade do Dragão Negro, uma mistura de máfia, sociedade secreta e corpo de inteligência que inspirou até vilões no universo DC.
De fato, essa underbelly da Segunda Guerra é um assunto tão delicado que levou ao menos um crítico a se recusar a avaliar Joker Game. O anime não é a primeira obra a levantar essa polêmica. O excelente Zero Eterno, publicado no Brasil pela JBC, também foi atacado pela maneira como glorificou os “velhos guerreiros” de Hirohito.
Fábio Godoy, do Anime 21, também mostrou receio pelo retrato aparentemente benigno do Exército Imperial na série. Já Rebecca Silvermann, do Anime News Network, chegou a citar seus familiares que lutaram na guerra como motivo para seu desconforto.
Como alguém que também teve familiares no conflito, só que do lado do Eixo, confesso que tenho mais curiosidade em ouvir a versão desses vilões de outrora. E aqui, parece-me que os espectadores podem ficar tranquilos. Joker Game não parece ser uma exaltação da bravura suicida dos “heróis” do imperador.
Pelo contrário, ele parece mostrar o descompasso de um país que confraternizava com inimigos em Washington ao mesmo tempo em que mandava mulheres e crianças para a morte armados com lanças de bambu.
Lutando a Guerra Perdida
O tenente Sakuma não foi o único a notar que a mão direita do Império não parecia saber o que a esquerda estava fazendo. Desde o ataque a Pearl Harbor (em alguns casos, até antes), muitos japoneses já tinham a impressão de que jogavam o joker game.
Para quem se interessa pelo assunto, não há livro melhor do que Japan at War: An Oral History, uma coleção de entrevistas com sobreviventes japoneses do conflito mundial.
Quem não conhece o livro de nome deve conhecê-lo de reputação. Um de seus testemunhos, o da mulher de um padeiro que viu o kempeitai assassinar um cachorro por “atrapalhar as comunicações”, virou inspiração para o filme Cartas de Iwo Jima de Clint Eastwood.
Lendo as entrevistas, podemos ver claramente quem entendia o que realmente estava acontecendo e quem pagou pela própria ingenuidade.
Alguns, mais patriotas, achavam que o Japão perdera por pouco. Um dos entrevistados, um ex-soldado, chegou a dizer que o país teria vencido a guerra se não tivesse se acovardado após as bombas nucleares.
Já outros sabiam que a declaração de guerra tinha sido o começo do fim. Um deles, operário de fábrica, disse que adivinhara desde o princípio que o Japão perderia, pois todos os desenhos industriais que usavam eram importados. Se rompessem relações com o Ocidente, de onde arranjariam maquinário?
Como quem joga Hearts of Iron sabe muito bem, guerra não é só uma questão de coragem e boa mira. É preciso ter indústrias, tecnologia, linhas de abastecimento, combustível, dinheiro. Nos anos 1940, o Japão tinha tão pouco de tudo isso que precisava derreter estátuas do Buda para reaproveitar metal e diluir saquê em álcool puro, pois não havia arroz para se comer.
Caso mais trágico foi o do diplomata Mamoru Shigemitsu. Contrário à guerra, ele fez de tudo para convencer os países do Ocidente de que sua nação buscava a paz. Foi feito de coringa: o Japão queria invadir a China a todo custo e só o usou de fachada para ganhar tempo.
Sua humilhação não parou por aí. Em 1943, quando a derrota já era certa, Tojo o nomeou como ministro para que “tomasse a bala” pelo país. Ele foi o escolhido para assinar a Ata de Rendição a bordo do USS Missouri em 1945 e ainda foi preso por crimes de guerra a pedido da União Soviética. Tal como o tenente Sakuma, ele não percebeu (ou não conseguiu evitar) o verdadeiro jogo nas entrelinhas.
Considerando que o Japão acaba de se remilitarizar, talvez fosse inevitável que uma novo olhar sobre a Segunda Guerra chegasse até os animes. Eu digo mais: nos próximos anos, dependendo de quanto barulho Kim Jong-un fizer, veremos muitos mais Zeros, metralhadoras Nambu e bandeiras imperiais em meio aos nossos heróis shonen e colegiais em uniformes de sailor.
Nesse sentido, Joker Game parece, à primeira vista, ser uma lufada de ar fresco em um tema bem espinhoso. Em vez de heróis trágicos ou “isentos” com a cabeça nas nuvens, temos um retrato daqueles que sabiam, nas palavras de Bismarck, como as leis e salsichas eram feitas.
Se a série não tiver medo de pisar nos calos, por si só já valerá a temporada.
É incrível como a história louva exclusivamente os vencedores. Primeiramente, de maneira alguma estou negando ou defendendo qualquer atrocidade cometida em qualquer guerra por qualquer lado. Mas a questão é a seguinte, não existe qualquer receio em glorificar os atos e os soldados americanos e britânicos por exemplo. Quantos filmes Holywood produziu nesta temática? Mostrando os soldados aliados como mocinhos e heróis?
É temerário falar em “vilão” ou “Mocinho” quando ambos os lados cometeram crimes de guerra comparáveis.
Quantas dezenas de milhares de alemãs foram estupradas pelos soldados americanos, britânicos e russos?
E o bombardeamento de Dresden? Essa cidade alemã que não possuía importância estratégica destruída até as cinzas por bombas incendiárias?
E o ataque nuclear ao Japão? O filme O Túmulo dos Vagalumes não nos faz esquecer deste massacre horrível.
Sem falar dos inúmeros massacres, genocídios e extermínios cometidos pelos britânicos na época em suas colônias na Índia, Bengala e em outros lugares.
Eu poderia me estender muito aqui, mas acho que me fiz entender.
Vejo que ocorreu uma imposição de vergonha para com os vencidos, tanto é que não se pode criar uma obra que exalte um ato de bravura de um soldado japonês ou alemão por exemplo, sem criar uma polêmica enorme. Faz parecer que os japoneses foram demônios e os americanos anjos! Uma temeridade.
Sem dúvida que se esse anime glorificasse o imperialismo americano ou britânico eu o criticaria por isso também. Mas por razões mais ou menos óbvias isso não acontece. Se a história faz, se os filmes fazem, se pessoas fazem, pode estender minhas críticas à forma como a história é contada, aos filmes, às pessoas. É uma posição de princípio, não de nacionalidade – pelo menos no meu caso. Juro =)
Mas esse artigo é sobre Joker Game, e o meu temor é que ele glorifique o imperialismo japonês, porque foi a impressão que eu tive no primeiro episódio. É só isso que estou criticando.
Meu comentário foi mais como um “desabafo” em relação a maneira que a história é contada em geral, e em especial ao “medo” dos japoneses se abordar qualquer coisa sobre o tema, sendo Joker Game bastante corajoso por isso. Somente creio que nenhum povo deve ter medo nem vergonha de honrar seus heróis, quantos bravos soldados mostraram seu valor na guerra, sejam nomeados ou não? Atrocidades e crimes de guerra sempre existiram, é só uma questão de se adentrar na história, seja uma tribo indígena do Brasil que há mais de 500 anos massacrava seus rivais, judeus que massacraram os cananeus para conquistar a sua terra prometida, ou os ingleses pilhando e saqueando as cidades na Guerras dos Cem Anos, infelizmente assim é a história do mundo. Mas, isto tudo não deve ser um empecilho para ter orgulho de seu povo e de sua história.
Ter orgulho de quê? De kamikazes? De suicídio coletivo? De continuar matando e morrendo por uma guerra já sabidamente perdida? Os kamizades não foram heróis, os soldados cumprindo seu dever, qualquer que fosse, não importa o quanto acreditassem naquilo que faziam, não morreram e se tornaram heróis. Eles foram vítimas de uma lavagem cerebral produzida pela propaganda imperialista.
Não são heróis os que matam. São heróis os que salvam vidas.
A prova cabal de que não são heróis e que suas mortes não tiveram nenhum propósito para eles em si ou para o bem estar do povo japonês é que a figura do herói é usada justamente para mais campanha imperialista, a mesma que levou a todas essas mortes em primeiro lugar.
Gato de Ulthar:
Eu só faria uma pequena ressalva: nesse caso específico, os vencedores pelo menos parecem mais dispostos a refletir sobre suas ações. O Museu de Pearl Harbor conta o lado japonês da guerra. O bombardeio de Dresden já foi mencionado até em HQ do Capitão América, o mesmo herói que nos anos 1940 esmurrava Hitler. Já no Japão o Massacre de Nanquim, a Marcha da Morte de Bataan e a Unidade 731 são quase sempre ignoradas.
Há também alguns casos em que os perdedores são louvados. A Guerra do Vietnã, o movimento “Lost Cause” no Sul Americano, a Guerra de Inverno na Finlândia e a própria Revolução Constitucionalista em São Paulo, para citar alguns exemplos. Claro, o fato que de que aqueles que evocam esses conflitos são frequentemente acusados de reacionarismo dá força ao seu ponto.
Mexicano:
Dê uma olhada no Zero Eterno (tenho um artigo sobre ele no blog). Ele propõe um olhar bastante diferente sobre os kamikaze e o que os levaram a se matar.
Eu tenho Zero Eterno, só falta ler =D De todo modo, por mais cheia de nuances que a realidade seja (e ela sempre é, eu fiz questão de dizer em meu artigo que o Japão certamente era mais do que vendia a propaganda), uma sociedade capaz de gerar kamikazes é uma que eu não gostaria de ver ascender de volta.
Eu comecei a ler o artigo e já pensei “nossa, escrevi sobre isso hoje mesmo, preciso comentar”, e daí vi que você me cita, hahaha, obrigado!
Mantenho minha preocupação. O anime é lindo, mas pelo menos pelo primeiro episódio a impressão que dá é que o lado bom, honesto e puro é o militar – não o militar em comando, vicioso, estúpido, mas o militar ideal, aquele que está na linha de frente e que aceita de bom grado morrer por seu país. Enfim, o protagonista, não seu comandante gordo trancado em um escritório.
A sua contextualização ficou muito boa! Ela abre ainda mais o leque de possibilidades para a história e de interpretações possíveis. Como eu mesmo disse em meu brevíssimo texto, naturalmente o japonês não era um povo monolítico de pensamento único, isso era apenas propaganda. Eu espero que o anime veja essa propaganda de forma crítica, e espero ver isso no desenvolvimento do protagonista. Mas a história pode ainda optar por outro caminho e dizer que não é que aquilo fosse errado, mas sim que estivesse sendo pervertido e conduzido por pessoas erradas (essa é a desculpa última de todas as ideologias, não é?).
Enfim, gostei muito da parte técnica, mesmo a história é muito interessante se eu desconsiderar os aspectos possivelmente deletérios dela, e vou continuar acompanhando na esperança que seja no fim das contas uma obra que busque criticar de verdade aquela época histórica pela qual o Japão passou.
Em tempos de revisão da interpretação constitucional (como você bem lembrou) e nos quais um anime como Gate não tem o menor pudor em levantar a bandeira do militarismo bondoso japonês, eu tenho os meus motivos para estar ainda desconfiado.
Certamente a tendencia a surgir novos animes com essa temática é grande com a reforma militar em pleno processo é de se esperar q o militarismo tome lugar na cultura POP japonesa. Como já demostrado no anime GATE acredito que o Estado japonês tem uma forte vontade de fomentar o orgulho de seu povo para com as forças militares.