Fonte da imagem

Nenhum indivíduo que adentrou a Comic Con Experience (CCXP) na semana passada provavelmente saiu da mesma forma.

“Vai ser épico” foi um dos slogans do evento. Memes à parte, a descrição não ficou muito distante da realidade. A CCXP trouxe aos brasileiros um modelo de convenção ao qual nosso país ainda não estava acostumado.

Como alguém que frequenta esse tipo de evento há cerca de dez anos, não pude deixar de notar a diferença entre as celebrações de fandoms de nossas convenções tradicionais e a escala industrial, maciça e corporativa emplacada pela CCXP. Os gigantes do mundo do entretenimento, que antes conhecíamos apenas via VHS piratas, merchandise bootleg e releituras em fanart, montaram seus estandes para se comunicar diretamente com o público.

Nas cerca de 8 horas que passei no evento, uma pergunta não saiu da minha cabeça: Depois de tanto glamour, convidados de peso, produtos de qualidade e atenção da indústria, seria possível voltar atrás?

Se a pompa e circunstância da CCXP vai se tornar o novo preto só o tempo nos dirá. No entanto, para o bem e para o mal, creio que ele sinalize uma mudança importante entre dois modelos de convenções nerds. E esse caminho, apesar de “épico”, traz desafios aos quais devemos nos preparar.

1- O modelo americano chegou em peso

 tfx-san-diego-comic-con-2015

Quando pensamos em convenções nerds, os Estados Unidos são o primeiro país que nos vem à mente. Foi de lá, afinal, que o culto aos fandoms – e vários de seus rituais, inclusive o cosplay – foram exportados para o restante do mundo.

Observando os números astronômicos da San Diego Comic Com (SDCC), Anime Expo e Wondercon, é difícil imaginar que essas convenções nem sempre foram gigantescas. Pelo contrário, o fenômeno é recente. Até 2007, a SDCC vendia ingressos na entrada. Um ano depois, para garantir o passeio apenas com reservas antecipadas.

San Diego Comic-Con. Photo by Kendall Whitehouse

MUITO antecipadas

O que aconteceu foi uma mudança em todo o modelo de negócio. Após o sucesso do primeiro live-action de  X-Men, a indústria de entretenimento percebeu que o mundo nerd era uma mina de ouro. De artistas independentes e colecionadores de figures, as convenções deram espaço a painéis de produtoras de Hollywood e editoras de alcance global.

Se a CCXP é um indicativo do que está por vir, esse novo modelo acaba de chegar ao Brasil. Saem apresentações de karaokê e entram Dave Tennant, Krysten Ritter e Frank Miller. Saem banquinhas de DVD e entram estandes da Universal, Warner, Sony e Netflix.

Isso pode ser “épico”, como anunciou a organização do evento, mas tudo tem seu preço. Quanto mais dinheiro envolvido, mais caros se tornam os estandes, e mais acirrada é a competição por um lugar ao sol.

Isso aconteceu na SDCC. A trajetória de sucesso do evento – hoje, o mais importante do mundo geek – e a competição com os titãs do entretenimento acabou tornando impossível a participação de muitos expositores independentes. Isto inclui pessoas que apoiavam a convenção há décadas, desde quando era uma celebração sem fins lucrativos feita para dar ibope a eventos maiores.

Em tanque de tubarão, peixe pequeno não tem vez.

 

2- Os modelos de consumo dos brasileiros estão mudando

netflix

Poucos lugares comuns são mais “comuns” do que a máxima de que o brasileiro é corrupto. Para a maioria das pessoas, apostar na honestidade alheia na terra da Lei de Gérson é mais arriscado que jogar roleta russa.

A indústria de entretenimento prova que a realidade pode não ser mais bem assim. Dois grandes serviços de streaming, a Netflix e o Crunchyroll, montaram estandes na última CCXP. A participação não é apenas um indício de coisas por vir, mas o resultado de um processo. No Brasil, o modelo fez um sucesso sem precedentes.

Quem acha que um serviço de assinaturas não conseguiria competir com a pirataria precisa rever seus conceitos. O próprio criador do Netflix, Reed Hastings, declarou o Brasil como um “foguete” da empresa.

Para estudiosos da comunicação, o sucesso é explicável. Um trio de pesquisadores encabeçado por Henry Jenkins – de quem já falei aqui antes – chegou a observações similares em dois outros casos.

O primeiro é o do mercado de vídeos na Nigéria. Sem uma indústria cinematográfica forte, o país se tornou palco de um complexo mercado de fitas piratas, que eventualmente enraizou a cultura de se pagar pelo entretenimento.

O segundo é do nosso Tropa de Elite. O filme – o mais pirateado da história do país – deu origem a uma das mais rentáveis sequels do nosso cinema. A demanda criada pelo frisson da distribuição ilegal motivou as pessoas a investirem no segundo filme.

Não é de se espantar que algo parecido tenha acontecido na cena nerd. Tal como os cinéfilos nigerianos, os geeks brasileiros estão acostumados a suar para encontrar suas séries favoritas. O Crunchyroll tem muito a agradecer às velhas lojas de DVDs de anime.

 

3- As ‘guerras de copyright’ vão finalmente nos engolir

pirate logo

Se você é fã de algo, é muito provável que já tenha violado a lei. E não falo apenas de torrents, mas de coisas muito mais elementares.

Séries, filmes, personagens, figurinos e até nomes próprios são protegidos por direitos autorais. Se você fizer algum tipo de criação e não solicitou direitos de uso, então muito provavelmente você andará na corda-bamba do copyright.

Então por que cosmakers, vendedores de produtos não-oficiais e fanartists conseguem fazer seus negócios?

Porque, na maioria das vezes, é mais vantajoso para as corporações deixá-los quietos do que processá-los. Fãs-criadores ajudam a divulgar as obras melhor do que qualquer estande, e companhias que tratam bem suas fanbases tendem a ser amadas em retorno.

Em contrapartida, acionar os advogados costuma trazer repercussões negativas.  Não fosse o bastante, os meandros da internet tornam disputas de copyright bastante nebulosas. Na maioria das vezes, arriscar os custos legais por uma batalha que pode ser perdida (ou que renda uma indenização pífia) é um preço alto demais a se pagar.

No entanto, erra quem acha que a Disney, Warner, EA ou Universal não estão dispostas a punir criações de fãs quando as interessa. Alguns aprenderam isso do jeito mais difícil. Tempos atrás, a Nintendo declarou cerco a criadores de let’s plays, obrigando-os a dividir os lucros de publicidade para manter seus canais. Um pouco depois, quando Super Mario Maker foi lançado, a produtora japonesa derrubou vídeos de versões modadas de Super Mario no YouTube para forçar gamers a aderir à plataforma.

Enquanto nossa cena nerd se resumia a 3000 pessoas debaixo de uma barraca nos confins da cidade, não havia motivo para esse tipo de pressão. Já se nossas convenções se tornarem realmente “épicas”, podemos dar como certo que as grandes corporações desejarão ser as únicas a lucrar com seus produtos.

Para o visitante comum, duas grandes mudanças estão no horizonte. Em primeiro lugar, prepare a carteira. Camisetas oficiais de Star Wars podem sair a módicos R$80,00. Para ter sua nova Sakura, é bom ter os 500 e poucos reais para comprar a obra-prima da Kotobukiya, pois não encontrará nenhum bootleg à venda.

sakura kotobukiya

Mas que vale a pena vale

Em segundo lugar, esqueça os chaveirinhos, almofadas, chapéus e todo o tipo de merchandise não-oficial de séries obscuras que inundavam as convenções do passado. Com uma distribuição mais centralizada e os estandes dominados pelos big players,  os produtos privilegiarão as séries que suas empresas têm interesse em vender. Obras antigas, de pouco apelo econômico e cuja fanbase dependia da informalidade para “fazer nerdices” serão as mais afetadas.

 

4- Espere mais e mais assédios da imprensa

senhora meme

Quem acompanha grupos de cosplay no Facebook já deve ter tido contato com as polêmicas envolvendo a grande imprensa. Quando da última Anime Friends, uma matéria do UOL atribuiu o desejo de fazer cosplay a distúrbios psicológicos. Na sua cobertura da CCXP, o portal comentou sobre uma suposta “pobreza” dos cosplays no evento, fato que atribuiu à crise econômica.

Mais sério foi uma intervenção dos “repórteres” do Pânico. Com a sutileza que lhes é conhecida, o programa “entrevistou”, zombou, cutucou e lambeu cosplayers como parte de sua cobertura do evento.

Os praticantes do hobby reagiram em peso, e não sem sucesso. A torto e a direito, posts urgiam cosplayers a recusar entrevistas a jornalistas do UOL sob risco de terem suas palavras distorcidas. O portal retirou uma de suas matérias do ar e publicou uma errata. A CCXP baniu o Pânico de edições futuras, acusando-o de “desmanchar o encanto do hobby” e violar do “contrato social” esperado do evento.

Cosplay é um dos hobbies menos compreendidos da nerdsfera, e repostas com essas mostram a força que a comunidade ganhou nos últimos anos. No entanto, seria ingenuidade supor que estas medidas desencorajarão o jornalismo amarelo. Infiltrar-se em eventos proibidos, enganar entrevistados e distorcer informações são táticas centenárias que só tem a ganhar força.

Em parte, isso se deve ao império do click-bait que assola nossa época. A internet transformou todo mundo em um comentarista e, consequentemente, em competição para as páginas estabelecidas. Para garantir os cliques – e a verba de publicidade por trás deles – alguns canais apelaram para o sensacionalismo e a polêmica fácil. Este gênero de “jornalismo” poluiu a web de tal maneira que o Facebook chegou inclusive a criar um algoritmo para filtrá-lo dos feeds dos usuários.

A principal razão do problema, contudo, é a popularidade sem precedentes do mundo nerd. Como as celebridades dos tapetes vermelhos de Hollywood sabem muito bem, tornar-se mainstream atrai os abutres. E nenhum comunicado oficial contra os paparazzi os afastará de uma noite de gala.

O interesse de tais “comunicadores” não está na cultura geek, mas na visibilidade que ela traz. Um evento de grande porte que apele ao interesse geral é a ocasião perfeita para alavancar artigos click-bait. É por isso que os nerds vivem hoje seu auge, mas também estão sujeitos aos maiores ataques pseudo-eruditos desde o pânico pós-Columbine em 1999. Criticar os “problemas” do mundo geek – mesmo que seja preciso inventá-los primeiro – nunca garantiu tantos cliques em tão curto espaço de tempo.

O mesmo vale para o humor. O Pânico não teria nada a ganhar cobrindo um evento underground de 1500 visitantes. A mesma fama que traz convidados internacionais de peso traz apresentadores buscando o caos para atiçar sua audiência.

As reações dos fãs garantirão que esse tipo de oportunismo seja contestado, mas há um limite para o que eles, sozinhos, conseguem fazer. Em especial quando o páreo é um veículo midiático com um alcance muito maior do que qualquer comunidade virtual. Idealmente, a mídia especializada deveria tomar para si a função de porta-voz e defender os interesses dos nerds contra pressões externas. Não atacar seu público alvo, nem se unir ao coro advogando estas mesmas pressões seria um ótimo começo.