(ATENÇÃO: contém pequenos spoilers de Fallout 4)
Escolha qualquer jogo de fantasia. Encontre um fã de carteirinha. Pergunte a ele se já sonhou em viver dentro de seu mundo virtual. Com quase toda a certeza ele dirá sim, soltará um suspiro e contará das noites em que sonhou em morar em Whiterun ou Balmora.
Escolha um jogo de ficção científica e faça o mesmo experimento. Você custará a achar alguém que prefira bater ponto a passear pela galáxia.
E fãs de jogos pós- apocalípticos? Decerto ninguém é louco o suficiente para preferir uma horda de zumbis ou prédios irradiados ao nosso conforto contemporâneo.
Bem, mais ou menos. Como eu disse em uma outra ocasião, existe um charme irresistível no apocalipse. A New California Republic pode não ser nosso destino favorito de férias, mas imaginar o que será de nosso mundo quando tudo for para as cucuias sempre excitou a imaginação dos mais criativos.
Explorando a Commonwealth de Fallout 4, não pude deixar de notar que os pensamentos coletivos têm alguma semelhança.
Para começar: todos, por algum acaso, envolvem museus.
Lugares de memória
O padrão fica claro quando analisamos os truques que os games usam para conquistar nossa atenção. Como é sempre a primeira impressão aquela que fica, jogos costumam ter muito cuidado com os primeiros ambientes que apresentam ao jogador.
Mass Effect não perde tempo em apresentar a Citadel. Skyrim nos dá logo de cara acesso a Whiterun, com Jorrvaskr e a Sky Forge. Planescape: Torment introduz a metrópole interplanar de Sigil tão cedo o jogador termina o primeiro dungeon. Esses lugares não são apenas bonitos ou interessantes. Eles dão o tom para toda a experiência.
Fallout 4 leva isso ao extremo. Após saírmos do vault e visitarmos as ruínas de nossa antiga casa, uma missão nos coloca dentro de uma power armor com uma minigun em mãos, lutando contra um deathclaw. Para completar a experiência, ganhamos até um bobblehead de brinde.
Tudo o que há de mais característico na série Fallout parece ter sido condensado em um único momento. O objetivo, claro, é o convencimento. Se esta setpiece meteórica não despertar vontade de experimentar o restante do jogo, provavelmente nada despertará.
É de se esperar, portanto, que o cenário escolhido para uma missão tão importante seja igualmente icônico. E ele é – olha lá! – um museu.
Há alguns anos, The Last of Us nos trouxe outro mundo pós-apocalíptico para explorar. Tal como em Fallout 4, um episódio inicial dás as cartas do enredo. Com a morte de sua parceira, o protagonista Joel se vê sozinho com Ellie, começando uma relação que se tornará o cerne da trama.
Onde se passa esse momento crucial da história? Em vários lugares, entre os quais – você adivinhou – um museu.
Se as semelhanças acabassem por aí, poderia ser coincidência. O problema é o que está em exposição nesses museus. Fallout 4 nos leva ao sugestivamente intitulado “Museu da Liberdade”, com uma coleção patriótica sobre a história dos Estados Unidos. Entre os destaques, manequins com uniformes da época da Guerra da Independência e murais ufanistas.
Já no museu de Last of Us, nós encontramos… uma coleção patriótica sobre a história dos Estados Unidos, com destaque para manequins com uniformes da época da Guerra da Independência.
Os ingleses estão chegando
À Primeira vista, é tentador dizer que se trata de puro nacionalismo. Jogos, como toda produção cultural, tendem a prestar homenagem à cultura que os produziu. Considerando que estamos falando do país que desenvolvou America’s Army, parece óbvio que um game americano fosse aproveitar a chance de demonstrar seu orgulho.
Em Fallout 4, a homenagem não poderia ser mais escancarada. Os “bom moços” da Wasteland chamam-se minutemen, originalmente uma milícia de colonos formada durante a Guerra de Independência. Para a eventualidade do jogador não entender a referência, seu líder se veste com roupas do século XVIII, muito embora viva em 2287
Mesmo assim, há algo além de patriotismo nessas exposições virtuais. Com o risco de dizer o óbvio, estes museus estão destruídos. E por “destruídos”, não digo apenas em ruínas, mas extintos.
O Museu da Liberdade em Fallout 4 e a galeria em The Last of Us não são mais museus. São apenas prédios reaproveitados – ou completamente abandonados. Não existem mais “museus” no futuro; não há coisas para preservar. Afinal de contas, para que se preocupar com o passado em um mundo que já acabou?
Essa é uma reflexão poderosa, que não foi incluída nesses jogos à toa. Pelo contrário, ela é uma referência a uma das obras fundadoras do gênero pós-apocalíptico.
A máquina do tempo
H.G. Wells é um dos grandes pioneiros de ficção científica, embora nossa geração tenha queimado seu legado com adaptações cinematográficas bastante medíocres.
Nada disso tira o mérito de A Máquina do Tempo, uma das grandes obras da história da literatura. O romance acompanha um inventor que descobre uma maneira de viajar ao futuro. Ele avança centenas de milhares de anos no futuro e encontra uma sociedade que perdeu todos os resquícios de humanidade.
A diferença entre ricos e pobres se tornou tão aguda que as duas classes evoluíram para espécies diferentes. As elites tornaram-se os eloi, um povo manso e inofensivo que não trabalha e passa seus dias descansando. Os trabalhadores transformaram-se nos morlocks, monstros que vivem na escuridão e se alimentam dos eloi, os quais criam como ovelhas.
Em dado momento, o protagonista visita o Palácio da Porcelana Verde, uma enorme ruína sem função aparente. Examinando o local, ele encontra corredores cercados por caixas acinzentadas. Com alguma surpresa, ele percebe que elas são expositores de vidro, abandonados há tanto tempo que haviam sido tomados pela poeira. O palácio misterioso era na verdade um museu.
O protagonista, aterrorizado, percebe o que aconteceu com a humanidade. “Passado” e “futuro” só existem quando há o progresso. Reduzidos a animais, nascendo, engordando e morrendo sem pensar no amanhã, os eloi estão presos no presente eterno. Em seu mundo não existe mais história. Um povo que não vai a lugar algum é um povo que não tem um passado a relembrar.
A esperança na humanidade
Essa angústia está presente em toda ficção pós-apocalíptica, de A Estrada a Mad Max. Nesses futuros destruídos, as pessoas não criam, apenas reaproveitam o que já foi feito. Elas não vivem, elas tentam não morrer. Elas não inventam, só “descobrem” saberes de outras épocas.
Os sobreviventes do apocalipse não precisam de museus porque, tal com os eloi, eles não estão indo para lugar nenhum. Em 50, 100 ou 200 anos, sua sociedade (caso ainda exista) continuará exatamente a mesma. Eles não precisam de patriotismo, porque “pátrias” não existem mais. A autoridade pública se reduziu a aldeias, senhores da guerra, justiceiros. Não há sentido celebrar a independência americana, pois não há mais Estados Unidos.
Nisso, Fallout 4 é diferente. Em um dado momento do jogo, um personagem diz que está cansado de “sobreviver”. Está na hora de reconstruir.
E reconstruir o jogador irá. Ao contrário da maioria dos jogos sobre o tema, o cenário de Fallout 4 não é um campo de batalha, mas um mundo esperando ser reerguido. O jogador passa mais tempo – e ganha mais experiência – devolvendo uma vida aos habitantes da Commonwealth do que explodindo cérebros de supermutantes.
O mais brilhante é como, fiel ao clássico de H.G. Wells, conforme as pessoas conquistam o seu futuro elas “redescobrem” seu passado. Uma missão faz o jogador percorrer a Freedom Trail, uma rota turística que une os pontos históricos de Boston. Em outra, os minutemen pedem ajuda para reconquistar o Fort Independence, uma fortaleza do século XVIII.
Na ficção pós-apocalíptica, a espécie humana dificilmente ganha uma chance de tentar de novo. Fallout parece acreditar que há esperança para a humanidade, que um novo recomeço é possível. Não é à toa que, a despeito dos ghouls, dos mutantes e de toda a radiação, os fãs da série adoram habitar seus mundos virtuais.
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