Eu geralmente prefiro falar de coisas agradáveis. Há muito de positivo no mundo nerd para perdermos a cabeça com os problemas. Na semana passada, no entanto, terminei minha coluna com uma reflexão um pouco angustiada. Para resumir, disse que estou apreensivo sobre o futuro da série Star Wars agora que sua máquina de hype na Disney começou a funcionar a todo vapor.

Como eu mesmo citei brevemente, não é de hoje que nerds desconfiam de grandes corporações do entretenimento. Basta olhar para a EA, campeã de reclamações de gamers, que foi votada pior companhia dos EUA diversas vezes. Com sua entrada no mundo mainstream, a cultura geek começou a depender de coisas que antes não precisava, ou ao menos não na mesma escala. Produtores, orçamentos bilionários, interesses externos. Há quem acredite que ter assinado esse contrato, para usar o corporativês, foi uma decisão ruim.

Para o leigo, farpas como essa são mero fanboyismo, coisa de quem tem problema de menos e tempo de sobra. Contudo, para além das picuinhas, há muito de estranho no atual mundo do entretenimento que já assustou até mesmo insiders. De medidas anti-pirataria com terríveis efeitos colaterais aos reboots pragmáticos feitos para que franquias não caiam nas mãos de rivais, existem motivos para pensar que os tomadores de decisão da grande mídia nerd não tem o bem da subcultura em seus melhores interesses.

Terra queimada

A Marvel, recém-comprada pela Disney, deu um dos piores exemplo dessa mentalidade. Para evitar que os filmes da Fox ganhassem ibope, a ordem foi de jogar os X-Men para debaixo do tapete e promover selos até então obscuros como os Guardiões da Galáxia e os Inumanos. Ninguém precisa da Feiticeira Escarlate quando é possível acabar com mutantes apenas com executivos.

No mundo dos games, esse tipo de queixa tem uma tradição mais velha do que andar para trás, e não é difícil entender por quê. A vontade de capitalizar em cima de modinhas trouxe algumas das práticas mais abusadas dos últimos tempos: Day 1 DLC (algumas vezes, com ads dentro do próprio jogo), microtransações, internet obrigatória, mods pagos e DRMs paranoicos.

Isso sem contar a refabricação completa de alguns gêneros para se tornarem convidativos a um público mais amplo.  Vide, por exemplo, a metamorfose de regras baseadas em D&D por ação em tempo real no estilo MMORPG que tomou RPGs ocidentais de assalto na década passada. Uma mudança tão profunda, diga-se de passagem, que saiu dos monitores direto para os livros de D&D e fez com que conceitos como tanque, suporte  e DPS invadissem (com nomes parecidos) o Livro do Jogador da 4ª Edição.

De um ponto de vista comercial, é difícil dizer que essas medidas não cumpriram seu objetivo. Desapontar fãs de nicho para conquistar o público mainstream é um sacrifício mais do que aceitável. Mais: isto pode ser necessário para que a franquia sobreviva. Fanbases só existem enquanto tiverem fãs. Se o meio em questão estiver perdendo popularidade, a mudança é a única forma de impedir que desapareça.

Para o fã de carteirinha, obviamente, isso interessa pouco. Apelar para todo mundo (algo que fica implícito com os dizeres de que “somos todos geeks”) traz o risco de nivelar as coisas por baixo e acabar com aquilo que faz de algumas obras especiais. FPSs sempre venderão mais do que RPGs isométricos, e sucessos da Shounen Jump sempre terão mais ibope do que mangás autorais. Se uma escolha tiver de ser feita, os últimos sempre serão cortados. Prova: a geração inteira de veteranos dos games que saiu da grande indústria para ressuscitar gêneros considerados mortos.

Porém, tudo isso ainda diz respeito a perdas concretas. Há ainda um outro nível de angústia, mais difícil de enxergar. Ele diz respeito à própria natureza das fanbases.

A convergência de públicos

Na semana passada, eu mencionei que vivemos em uma cultura de convergência. A ideia foi desenvolvida com a mente no mundo das fanbases e nas maneiras (muitas vezes novas) que fãs e produtores encontraram para se relacionar.

Em uma casca de noz, o fenômeno diz respeito a uma nova geração de consumidores ativos, que não espera que seu entretenimento lhe seja entregue nas mãos, mas que vai atrás daquilo que gosta, independente de onde esteja. Ele diz respeito a uma também nova geração de produtores que, de olho nesse mercado, investem em franquias multimídia, exploram canais distintos e cooperam com outros produtores em níveis diferentes, do gigante das action figures ao vlogueiro de YouTube.

Enquanto estivermos falando de multiversos cinemáticos, spin-offs em quadrinhos, webseries de fãs e serviços como o Crunchyroll, tudo ótimo. O problema é que há um medo de que a convergência de conteúdo leve para uma convergência de audiência. Ou seja, que ao espalhar uma franquia sobre várias mídias, com vários públicos diferentes, acabe-se produzindo um público homogêneo. Para o fã de nicho, a preocupação é a mesma: produtores irão investir no que é mais “traduzível” a outras audiências, e não no que é bom ou original.

Opositores dizem que isso não passa de elitismo, da vontade de certos fãs de formar um clubinho e se acharem superiores aos demais. Eles dirão que ser “bom” é relativo, e que as franquias “das antigas” são tão ruins ou piores que as novidades que tanto criticam.

É inegável que em toda fanbase há esse tipo de mentalidade, e que todos nós (sem exceção) sofremos de nostalgia pelas coisas que curtimos na juventude. No entanto, eu acredito que as coisas não sejam tão simples assim. Mesmo entre os geeks, há uma diferença na forma como interagimos com nossos hobbies. E ela diz respeito a uma ideia bem comum, mas muito polêmica.

A diferença entre “hardcore” e “casuais”

Eu sei, essas palavras já foram abusadas tanto que muitos têm até medo em empregá-las. Felizmente, há um jeito de contornar as flamewars. Um grupo de estudiosos especialistas em fanbase se debruçou sobre os vários tipos de fã e lhe deram nomes menos controversos.

De um lado, há aqueles que praticam o hanging out. Eles vêem o entretenimento como um meio para se divertir e se relacionar com outros. As atividades que praticam – assistir séries, ir a convenções, fazer cosplay – são importantes na medida em que permitem que socializem com outros e abram assunto para conversa. Do outro lado, há os que fazem geeking out. Eles têm nos seus hobbies um fim em si, uma prática com a qual se identificam e ao redor da qual criam uma comunidade. Se você já se pegou pensando em Sailor Moon, Star Wars, Metal Gear ou sua banda favorita e sentiu que você faz parte daquilo de alguma forma, essa é a marca do “hardcore”.

“Casuais” praticam o hanging out, o sair com amigos, enturmar-se e se divertir. Eles não se incomodam com modinhas e não devem satisfação a ninguém. Enquando uma atividade estiver cumprindo seu papel, está valendo.

 “Hardcore”, por outro lado, fazem geeking out, um entretenimento todo voltado para seus hobbies, seja passando meses construindo um prop de cosplay, tirando religiosamente o domingo para jogar bola com o time ou virando a noite preparando a campanha que mestrará para os colegas.

O problema é que quem busca um hobby apenas para relaxar pode muito bem escolher outro. Se toda uma indústria se voltar a esse público e ignorar os bravos fãs que vivem e respiram suas franquias, o resultado serão produções vazias, feitas para chamar a atenção e apelar para o que há de mais chamativo no momento. Se ninguém olhará por tempo suficiente para perceber a qualidade, para que fazer coisas que prestem?

Uma guerra civil?

fanboy wars

Quer dizer, então, que não há solução? Estarão os fãs “hardcore” em uma cruzada contra os “casuais”? Estariam os criadores forçados a escolher entre fazer uma produção viável ou depender de um nicho que pode um belo dia desaparecer?

Felizmente, não é bem por aí. Aqueles que estudam fãs e seus hábitos chegaram à conclusão que o problema (para a nossa surpresa!) não são os outros. Mais do que isso: “hardcore” e “casual” não excluem um ao outro. É possível ser “hardcore” sobre um hobby e “casual” sobre outro, ou “casualmente” curtir algo que levamos a sério – um fã de Civilization jogando Dance Dance Revolution com os amigos no fim de semana.

As farpas geralmente aparecem quando uma coisa entra no caminho da outra. Quando games bloqueiam mods para enfiar um novo modo multiplayer. Quando produtoras cedem a pressões externas porque não querem a dor de cabeça de enfrentar a mídia frente a frente. Quando livros, filmes, ou quadrinhos clássicos saem de circulação e deixam de ser editados, ou quando são substituídos por revisões mais recentes. Quando mecânicas populares são forçadas dentro de jogos que não têm nada a ver com elas. Quando executivos mandam as pessoas pastarem por se oporem às suas ideias absurdas.

Nos anos 2000, quando criou o termo “cultura de convergência”, Henry Jenkins disse que havia um “cabo de guerra” entre fãs e produtores de conteúdo. Na década passada, os fãs pareciam estar ganhado. Hoje, os produtores parecem ter levado a melhor.

Esse problema não é insolúvel, mas resolvê-lo – e evitar que ele nos divida – será o grande desafio da próxima década.