Satoshi Kon, morto aos 46 anos em 2010, foi um dos maiores nomes da animação japonesa. Mais do que qualquer outro diretor, ele conseguiu traduzir às telonas a vibe histérica e surrealista de autores como Haruki Murakami e de movimentos como o Superflat.
Seus fãs geralmente o conhecem por seus quatro longa-metragens: Perfect Blue (do qual Cisne Negro é uma adaptação), Millenium Actress, Tokyo Godfathers e Paprika, e também por sua série, Paranoia Agent. Poucos sabem, no entanto, que antes de sua estreia no cinema Kon escreveu e desenhou uma série de mangás tão inovadores e adultos como o trabalho que o tornou famoso.
À primeira vista, parece óbvio que um figurão do anime tivesse um pé nos quadrinhos nipônicos. As duas indústrias têm uma relação tão forte que o mangá é geralmente a porta de entrada mais fácil para aspirantes ao universo da animação. Satoshi Kon, entretanto, não era um diretor lá muito comum, e seus quadrinhos deixam isso claro. Para nós, órfãos do grande mestre, essas obras (a maioria inacabada) são uma chance inédita de conhecer a mente do criador que virou de ponta cabeça a arte de Miyazaki e Tahakata.
Abrindo o baú
Eu me considero um fã hardcore do trabalho de Kon (a ponto de ter visto Paprika e Millenium Actress vezes suficientes para ter quase memorizado o roteiro). Mas mesmo eu até pouquíssimo tempo atrás não fazia a mínima ideia de que o diretor tinha uma produção significativa no mangá. Foi preciso fuçar em uma prateleira esquecida em uma loja nerd em Helsinki, onde estive para um curso sobre videogames, para encontrar Kaikisen, ou Tropic of the Sea, um volume único publicado pela primeira vez em 1990.
Com exceção do traço característico de suas personagens femininas (onde já podemos ver a semente de Paprika e Chiyoko), é difícil acreditar que o mangá saiu da mesma cabeça que nos deu Paranoia Agent. Trata-se de uma história tradicional de temática ecológica sobre um jovem cuja família foi escolhida para proteger um ovo de sereia. Quando o bairro em que vive é vendido para a construção de um resort, ele se vê lutando contra uma empreiteira para evitar a ira dos tritões.
Em mensagem, Kaikisen é um história à la Miyazaki sem a exuberância visual que tornou o diretor famoso. Se o mangá nos faz coçar a cabeça ao compararmo-lo às suas obras mais célebres, é visível aqui o tom enxuto e despretensioso de Tokyo Godfathers. O espírito ousado que o levaria mais tarde ao estrelado ainda estavam por vir.
Para isso, seria preciso a ajudinha de um peso-pesado.
Sobre os ombros de gigantes
Um ano depois de sua fábula sobre sereias e meio-ambiente, Satoshi Kon se debruçou sobre World Apartment Horror, uma trama sobrenatural envolvendo mafiosos da Yakuza e espíritos maléficos. A obra merece destaque não apenas pelo conteúdo, mas pela companhia: o mangá é uma adaptação de um filme de mesmo nome de ninguém menos que Katsuhiro Otomo, o deus da animação que nos trouxe Akira. Kon, não fosse o bastante, escreveu também o roteiro do longa. Ombro a ombro com os maiorais da animação, não demoraria para ele ganhar seu ticket de entrada na elite da indústria.
O mangá não seria a última colaboração de Kon com artistas renomados. Entre 1994 e 1995, ele teve a oportunidade de trabalhar a quatro mãos com aquele que é tal vez o nome mais conhecido do universo do anime depois de Miyazaki.
Satoshi Kon cuidou da arte. Mamoru Oshii, que a essa altura já tinha Patlabor e Urusei Yatsura no currículo, assinou o roteiro. Seu toque autoral pode ser sentido em toda a trama. Fugindo do surrealismo e da explosão de referências que viriam a marcar o trabalho de Kon, Seraphim é uma odisseia em um mundo pós-apocalíptico, acompanhando uma jovem que busca salvar a humanidade de uma doença terrível.
A arte é de tirar o fôlego e traz à vida o mundo cruel, alienígena e chocante que Oshii concebeu. Além do mais, digno do criador de Ghost in the Shell, o mangá está repleto de referências filosóficas e religiosas.
Se hoje a mera menção da dupla é suficiente para provocar orgasmos mentais em qualquer otaku, nos anos 1990 a coisa era diferente. Seraphim é um título surpreendentemente obscuro, que nunca recebeu qualquer destaque e acabou descontinuado. O processo de criação foi tão conturbado que foi até objeto de uma piada de Satoshi Kon em um de seus trabalhos posteriores:
Encontrando a própria voz
É, no entanto, em 1995 que o Satoshi Kon que conhecemos finalmente abriu as asas. Opus, serializado na Comic Guys entre 1995 e 1996, faz juz ao título: trata-se sem sombra de dúvida de seu magnum opus (obra-prima). Aqui, toda a irreverência e verve cerebral de seus longas recebe o desenvolvimento que merece.
Em um enredo típico da ficção pós-moderna japonesa, o título conta a história de um personagem de mangá que, percebendo que sua morte está próxima, se rebela contra seu criador. O desenhista se vê então lançado ao próprio mundo fantástico que criou e se une à protagonista para colocar ordem na bagunça.
Ironicamente, tal como Seraphim, Opus nunca foi concluído. Quem tiver a sorte de encontrar a edição da Vertical de Tropic of the Sea vai poder ler um pósfacio em que Kon conta um pouco do ritmo endiabrado da rotina de mangaká. Sempre um perfectionista, o animador preferia fazer tudo (ou quase tudo) sozinho, o que lhe exigia virar noites a fio trabalhando. Com a fama dos filmes e a necessidade de cuidar dos longas, essa vida simplesmente lhe ficou impossível. Em seu depoimento, ele diz:
No meu ponto de vista eu tenho usado os chapéus tanto do mangaká quando do animador, mas quando sou apresentado em revistas e coisas do tipo eles se referem a mim como “diretor de anime”, com meu chapéu de “mangaká” relegado ao esquecimento. Eu não me lembro de ter jogado fora aquele chapéu ou fechado aquele negócio, mas eu não posso lutar contra a avaliação objetiva da sociedade. Esses dias eu mesmo tenho depreciativamente me contentado com “mangaká em minha encarnação passada.”
De certa maneira, Satoshi Kon foi vítima de seu próprio sucesso. Felizmente, este mesmo sucesso fez com que suas obras escritas, outrora obscuras, fossem publicadas novamentes em edições de luxo. Para o fã desolado que queira gabaritar a produção de seu “mangaká na vida passada” favorito, recomendo ainda dois outros títulos. O primeiro é Dream Fossil, coletânea de contos de quadrinhos que escreveu ao longo dos anos 1980 e 1990. O segundo é Kon’s Works 1982-2010, um belíssimo art-book com pôsteres, artes conceituais e ilustrações variadas de toda sua carreira.
Nada disso nos cura da trauma de sua morte prematura. Porém, se nada mais, esses mangás nos trazem uma pontada de nostalgia e avivam nossa esperança de um dia assistirmos ao seu filme póstumo nos cinemas.
Acabei conhecendo seu trabalho por puro acaso mesmo, confundido seu nome com o de Koji Kondo (vai entender…), me deparei com um filme de nome curioso: “Perfect Blue”, não poderia ter começado melhor!
Nunca me vi tão ansioso para conhecer o restante das suas obras, partindo para Paprika, afinal, já conhecia as “coincidências” com Inception de Christopher Nolan, depois Tokyo Godfathers & Millenium Actress. Só depois disso descobri sobre seu falecimento e, pior, sobre sua obra inacabada: Dreaming Machine.
Como alguém que não aceitou bem o fim, busquei o que mais ele teria feito. Após Paranoia Agent, fui ainda mais fundo e conheci “Opus”, como também consegui colocar minhas mãos nele.
E agora, seu artigo. cheio de informações e nomes em que me aprofundarei. Já que não há muito mais o que percorrer, ao menos, encontrei alguém que partilha do mesmo gosto. Parabéns pelo artigo!
Oi!!! Muito show o post!! Vc sabe de uns sites maneiros para eu procurar o cbr ou o pdf desses hq’s mais “cults”? Assim como o libgen e o zilbrary funcionam muito com livros, também me pergunto dos quadrinhos..