O pior do fanatismo não é ele existir, e sim nós sabermos que não irá embora. Cada episódio é um choque que nos informa que não será o último. Para mim, poucas coisas causam mais dor do que ver a própria memória destruída. O recente vídeo do ataque do Estado Islâmico contra os tesouros assírios foi um exemplo mais divulgado, mas nem de longe o único. Em 2012, fundamentalistas destruíram monumentos da lendária cidade de Timbuktu, no Mali. Na Irlanda, a tragédia foi ainda pior: em 1922, um arquivo foi usado de depósito de munição pelo IRA e explodiu durante um tiroteio. Séculos de manuscritos medievais foram perdidos em um único dia.
O desgosto da maioria das pessoas só não é mais forte do que a confusão que geralmente o segue. Atos de extremismo pertencem à categoria mais incômoda de tragédia: são grandes demais para o alcance das nossas ações individuais, mas próximos o suficiente para que nos sintamos culpados – ou irados, caso acreditemos que a responsabilidade é dos outros. Pensar a respeito dificilmente nos leva a algum lugar. O que devemos fazer contra isso? O que podemos fazer? De quem é a culpa, de ideias ou de indivíduos? É possível culpar uma ideia? É desejável? Estas discussões soam estranhamente familiares, e me dei conta de que já as tinha encontrado antes – num videogame, por mais improvável que pudesse parecer. Trata-se do Star Wars: Knights of the Old Republic 2: The Sith Lords, saído da batuta de Chris Avellone, cujo currículo inclui Fallout: New Vegas e o celebrado Planescape: Torment. Aqueles familiares com o estilo sabem que Avellone tem o dom raro de falar de coisas sérias sem ser um chato, e KotOR 2 não é exceção.
Há muito tempo, numa galáxia distante….
O jogo se passa na antiguidade da galáxia de Star Wars, 4000 mil anos antes dos acontecimentos do filme Uma Nova Esperança. É um cenário exótico, introduzido pela graphic novel Tales of the Jedi nos anos 1990, e que ganhou fama com Knights of the Old Republic, game do criador de Mass Effect, Casey Hudson.
A galáxia, regida pela República, é invadida pelos mandalorianos, o feroz povo de guerreiros do qual viria Jango e Bobba Fett. Indefesa diante da investida, os senadores se voltam a seus protetores ancestrais, o conselho Jedi. Para sua surpresa, a ordem se recusa a pegar em armas: precisam de tempo para “avaliar a ameaça”.
Se a carnificina não impressiona os mestres, o mesmo não é verdade dos cavaleiros e padawans. Dois jedi, Revan e Malak, desobedecem a ordem e lideram um grupo de rebeldes para salvar a República. Eles vencem a guerra, mas se convertem ao Lado Negro da Força e retornam para destruir a Ordem. O conflito deixa a galáxia em farrapos e os Jedi à beira da extinção.
É nesse cenário desolado que KotOR 2 se inicia. A protagonista é uma das Jedi que seguiram Revan e Malak. Ao contrário dos dois, ela se manteve leal à ordem e voltou para obter seu julgamento e punição: a expulsão da Ordem e o exílio da República. É com surpresa, portanto, que se vê de volta a um mundo de ponta cabeça: os Jedi parecem ter sumido, e caçadores de recompensa e guerreiros Sith rondam os sistemas em busca dos últimos sobreviventes. O que se segue é uma jornada pela verdade que logo mostra uma ambição maior: de quem, afinal, é a culpa pelas desgraças da República? Dos que fizeram de menos… ou dos que fizeram muito?
A exilada Jedi não precisa responder a questão sozinha. A equipe que reúne é um verdadeiro microcosmo do momento em que vive. Um ex-companheiro de campanha. Um assassino Sith vivendo em anonimato. A guarda costas da mestre Jedi que lhe expulsou da ordem.
O novo Mandalore, líder dos mandalorianos. Dois droides pertencentes à Revan. Um magnata do crime, preocupado com os efeitos da guerra em seus lucros. Em conversas com a equipe e suas andanças pela galáxia, o jogador logo percebe que a fé no “bem versus mal” pode agradar aos Jedi, mas para o povo comum significa pouca coisa.
Para os habitantes da galáxia, Jedi e Sith são apenas “diferenças religiosas”, que semeiam a violência com suas disputas. Quando o conflito em questão resulta num saldo de milhões de mortos em uma guerra intergaláctica, o consenso é claro: Se o maior mal da galáxia são justamente Jedi caídos, para quê sustentar a ordem que os produz?
O jogo de Avellone nos vende uma opinião incômoda: os culpados pelas atrocidades não são os indivíduos, os ‘divergentes’ ou extremistas. São, sim, as ideias que os alimentam, e as comunidades que as sustentam. Não importa que os Jedi sejam uma “ordem da paz”: se tantos entre seus quadros cedem à vilania é porque seus dogmas em si são falhos.
Os Jedi não pecaram por fazer pouco, mas, justamente, por fazer demais. Afinal, passe regras que não podem ser cumpridas ou entendidas e você terá uma nação de contraventores. E, ao transformar a compaixão em crime, a Ordem Jedi condenou à vilania o único grupo que não tinha condições de perder: o das pessoas que se importam com os outros.
A Ordem Jedi é culpada porque não soube enxergar que o mundo à sua volta mudou, e que mudanças devem ser respondidas com flexibilidade. Seus mestres são culpados porque, de tão crentes em suas certezas, se esqueceram de que são falíveis como todas as outras pessoas. Ao nos aventurarmos na galáxia desolada deste RPG, somos relembrados de uma lição dolorosa.
Ideias são perfeitas e vivem em seu próprio mundo, mas para serem postas em prática precisam de homens, e homens, além de imperfeitos, mudam. Entre o purismo e a tolerância há apenas uma escolha. Um caminho leva ao futuro, com todas as incertezas, recompensas e possíveis tragédias. O outro, aos cadáveres, monumentos destruídos e livros queimados. A Força é a mais alta das torres de marfim.
Bônus: para os fãs de Avellone ou aqueles que tenham se interessado pelo seu trabalho, seu novo jogo, Pillars of Eternity, sairá para PC esse ano. E Wasteland 2, que desenvolvou junto com outros peso-pesados da indústria, como Brian Fargo, está disponível no Steam.
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