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{"id":5622,"date":"2016-05-31T08:11:21","date_gmt":"2016-05-31T11:11:21","guid":{"rendered":"http:\/\/finisgeekis.com\/?p=5622"},"modified":"2019-02-25T14:29:35","modified_gmt":"2019-02-25T17:29:35","slug":"o-silencio-a-crueldade-japonesa-entre-a-historia-e-a-ficcao","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/2016\/05\/31\/o-silencio-a-crueldade-japonesa-entre-a-historia-e-a-ficcao\/","title":{"rendered":"“O Sil\u00eancio”: a crueldade japonesa entre a hist\u00f3ria e a fic\u00e7\u00e3o"},"content":{"rendered":"

\n

F\u00e3s de Martin Scorsese sabem que 2016 \u00e9 um ano para n\u00e3o esquecer.\u00a0Silence<\/a><\/em>, seu projeto pessoal em desenvolvimento desde 1991,\u00a0cujo storyboard\u00a0<\/em>inspirou o cartaz da 39a Mostra de Cinema de S\u00e3o Paulo<\/a>, \u00a0finalmente dar\u00e1 as caras ao grande p\u00fablico.<\/p>\n

Entusiastas de cultura japonesa t\u00eam motivo redobrado para acompanhar o lan\u00e7amento. Trata-se da adapta\u00e7\u00e3o de um dos maiores cl\u00e1ssicos da literatura nip\u00f4nica contempor\u00e2nea.<\/p>\n

<\/p>\n

\"silence<\/p>\n

O\u00a0Sil\u00eancio,\u00a0<\/em>como \u00e9 conhecido no Brasil, \u00e9 uma obra intrigante. Por um lado, \u00e9 um livro japon\u00eas sobre o Jap\u00e3o. Ao mesmo tempo, \u00e9\u00a0a \u00faltima hist\u00f3ria que esperar\u00edamos ler de um nativo.<\/p>\n

Escrita por Shusaku Endo,\u00a0japon\u00eas cat\u00f3lico, ela narra\u00a0a persegui\u00e7\u00e3o a crist\u00e3os no Jap\u00e3o\u00a0e\u00a0a crise de f\u00e9 de algu\u00e9m que se sacrificou para ajud\u00e1-los.<\/p>\n

A trama nos leva a um cen\u00e1rio bem familiar para amantes de filmes hist\u00f3ricos. Nos s\u00e9culo XVI, o Jap\u00e3o era um campo de batalha, e os mission\u00e1rios europeus encontraram bra\u00e7os abertos entre daimyos <\/em>interessados nas benesses de uma alian\u00e7a com poderes ocidentais. Alguns, como Date Masamune<\/a>, chegaram a se corresponder com o Papa.<\/p>\n

\"miura

T\u00famulo de Will Adams em Hirado, Nagasaki<\/p><\/div>\n

Com a unifica\u00e7\u00e3o sob o shogunato Togukawa, a situa\u00e7\u00e3o mudou. Portugueses e espanhois passaram a ser vistos com crescente desconfian\u00e7a. A abertura com o Ocidente n\u00e3o tardou a trazer desafetos dos jesu\u00edtas, como Will Adams<\/a>, n\u00e1ufrago protestante que se tornou samurai de Ieyasu. O catolicismo foi banido. Crist\u00e3os japoneses foram for\u00e7ados a se reconverter. No pior dos casos, acabaram crucificados.<\/p>\n

Tais reveses n\u00e3o dissuadiram os jesu\u00edtas. Mission\u00e1rios continuaram a desbravar os mares e ensinar sua f\u00e9 na clandestinidade. \u00a0Em 1633, no entanto, a miss\u00e3o portuguesa em Macao recebeu not\u00edcias tenebrosas.<\/p>\n

Cristov\u00e3o Ferreira<\/a>, o mais importante evangelizador em solo japon\u00eas, renunciara ao cristianismo e passara a cooperar com seus perseguidores.<\/p>\n

\"silence<\/p>\n

Que devotos japoneses fraquejassem diante da repress\u00e3o era esperado. Que o l\u00edder da miss\u00e3o abdicasse da f\u00e9 \u00e0 qual se dedicara a vida toda era inconceb\u00edvel.<\/p>\n

Sil\u00eancio <\/em>acompanha a jornada de um jovem mission\u00e1rio, Sebasti\u00e3o\u00a0Rodrigues, decidido a desvendar o mist\u00e9rio. Contra os conselhos de todo \u2013 at\u00e9 de Alessandro Valignano<\/a>, o maior\u00a0evangelizador do Oriente\u00a0\u2013 ele parte ao Jap\u00e3o em um junco chin\u00eas para levar a palavra de Deus aos crist\u00e3os perseguidos. E, se poss\u00edvel, descobrir o que acontecera a Ferreira.<\/p>\n

Endo nos mostra o \u201ccora\u00e7\u00e3o das trevas\u201d, o terror escondido que foi posto em pr\u00e1tica quando as cortinas finalmente se fecharam. Quando camponeses crist\u00e3os pegaram em armas contra o governo na Rebeli\u00e3o de Shimabara<\/a>, a retalia\u00e7\u00e3o foi total e inclemente.<\/p>\n

\"crucification

Do Atlas Criminal do Shogunato Tokugawa<\/a> (publicado em 1893)<\/p><\/div>\n

Ao perceber que o mart\u00edrio n\u00e3o dissuadia os crist\u00e3os, o shogunato come\u00e7ou a empregar m\u00e9todos cada vez mais cru\u00e9is de execu\u00e7\u00e3o. Mission\u00e1rios eram grelhados vivos. M\u00e3es eram queimadas na estaca junto com seus beb\u00eas.<\/p>\n

\"tokugawa<\/p>\n

Quando mesmo esses espet\u00e1culos mostraram n\u00e3o surtir efeito, os oficiais apelaram \u00e0 tortura. Crist\u00e3os eram crucificados e largados na praia, lutando para n\u00e3o se afogar com a mar\u00e9 alta, at\u00e9 eventualmente sucumbirem de exaust\u00e3o. Ou, ent\u00e3o, submetidos ao tsurushi<\/a>:<\/em>\u00a0pendurados de ponta cabe\u00e7a em po\u00e7os com escremento at\u00e9 renunciarem a sua f\u00e9 .<\/p>\n

\"silence

Tsurushi\u00a0no storyboard de “Silence” (2016)<\/p><\/div>\n

Quando mesmo essas agruras n\u00e3o funcionaram, o shogunato mudou de estrat\u00e9gia. Em vez de atacar mission\u00e1rios dispostos a morrer em nome da Igreja, passaram a torturar seus rebanhos. Aldeias suspeitas de hospedar evangelizadores tinham camponeses sequestrados, torturados ou executados preventivamente.<\/p>\n

O horripilante em Sil\u00eancio <\/em>n\u00e3o \u00e9 a viol\u00eancia, mas a insidiosidade do plano do shogun. Como certa personagem de Alan Moore, tamb\u00e9m Inoue, o magistrado que encabe\u00e7a a ca\u00e7a aos crist\u00e3os, sabe que ideias s\u00e3o \u00e0 prova de bala.<\/p>\n

N\u00e3o adianta\u00a0ca\u00e7ar hereges pelas montanhas ou queim\u00e1-los vivos. \u00c9 preciso\u00a0separ\u00e1-los da fonte, coloc\u00e1-los contra os mission\u00e1rios. Sem ningu\u00e9m para ouvi-las e dissemin\u00e1-las, ideias fenecem.<\/p>\n

Rodrigues, o her\u00f3i tr\u00e1gico de Endo (baseado no hist\u00f3rico Giuseppe Chiara<\/a>), se v\u00ea em um dilema. Passar os dias inutilmente escondido, em condi\u00e7\u00f5es de mis\u00e9ria piores do que a do pr\u00f3prio Cristo, ou cumprir sua miss\u00e3o como padre e arriscar p\u00f4r a vida daqueles que ajuda em risco.<\/p>\n

\"silence<\/p>\n

Por tr\u00e1s de toda a sua roupagem de \u00e9poca, Sil\u00eancio <\/em>\u00e9 uma f\u00e1bula universal sobre a dificuldade de manter a f\u00e9 quando nos vemos condenados a um mundo cruel. Sobre os momentos angustiantes em que, cercados de dor, desespero e sofrimento arbitr\u00e1rio, nos voltamos aos c\u00e9us e recebemos, como resposta, apenas o sil\u00eancio.<\/p>\n

N\u00e3o \u00e9 \u00e0 toa que Shusaku Endo \u00e9 frequentemente comparado a Graham Greene<\/a>, o famoso escritor cat\u00f3lico brit\u00e2nico. Nem que alguns cr\u00edticos tenham feito a compara\u00e7\u00e3o entre os sofrimentos de seu Padre Rodrigues e a discrimina\u00e7\u00e3o que ele mesmo sofreu como crist\u00e3o japon\u00eas.<\/p>\n

Sil\u00eancio <\/em>n\u00e3o \u00e9 um livro f\u00e1cil de se digerir \u2013 nem como o ser\u00e1, imagino eu, a adapta\u00e7\u00e3o que Scorcese est\u00e1 para nos oferecer. Justamente por isso, ele \u00e9\u00a0a formula\u00e7\u00e3o perfeita de uma das perguntas mais rotineiras dos que se aventuram pela\u00a0fic\u00e7\u00e3o hist\u00f3rica.<\/p>\n

Como admirar o passado em meio a\u00a0tanto sangue, crueldade e estranheza?<\/p>\n

O passado \u00e9 um pa\u00eds estrangeiro<\/strong>
\n\"millenium<\/strong><\/h3>\n

Se romances hist\u00f3ricos s\u00e3o t\u00e3o interessantes, \u00e9 porque frequentemente dizem mais sobre o presente do que sobre o passado que dizem retratar. Autores sempre olham para tr\u00e1s por uma raz\u00e3o. \u00c0s vezes, desejam ressuscitar uma rel\u00edquia de eras passadas. Em outras, querem se certificar de que continue bem enterrada.<\/p>\n

Para alguns, esse tipo de fic\u00e7\u00e3o \u00e9 uma oportunidade para se criticar o que h\u00e1 de errado em\u00a0nossos pr\u00f3prios tempos. Ao atacar\u00a0os horrores de uma \u00e9poca menos evolu\u00edda, eles escancaram o qu\u00e3o \u201cretr\u00f3grado\u201d e \u201cpouco esclarecidos\u201d os cidad\u00e3os do presente ainda s\u00e3o.<\/p>\n

Nas entrelinhas, todavia, est\u00e1 o julgamento de que o presente \u2013 ou, ao menos, nossos valores \u2013 s\u00e3o perfeitos, e que a hist\u00f3ria \u00e9 o progresso em rela\u00e7\u00e3o a um futuro ut\u00f3pico. Um futuro que n\u00f3s, os seres mais corretos e esclarecidos que j\u00e1 pisaram sobre a terra, faremos acontecer \u2013 nem que por meio do\u00a0porrete.<\/p>\n

As coisas erradas do mundo s\u00e3o \u201cb\u00e1rbaras\u201d, \u201cmedievais\u201d, \u201cobsoletas\u201d. Se a vida n\u00e3o \u00e9 perfeita, a culpa \u00e9 do passado que custa a morrer.<\/p>\n

J\u00e1 para outros \u00a0a fic\u00e7\u00e3o hist\u00f3rica \u00e9 um rem\u00e9dio para a incerteza. Quando o \u201cprogresso\u201d que veneramos come\u00e7a a se mostrar perigoso e o futuro nos deixa d\u00favidas, o passado vira um porto seguro. \u00c9 um pa\u00eds estrangeiro<\/a>, um local onde podemos nos refugiar para encontrar respostas \u2013 e qui\u00e7\u00e1, recuperar algo do que nos foi perdido.<\/p>\n

\"last<\/p>\n

\u00c9 a mentalidade por tr\u00e1s das\u00a0\u201ceras douradas\u201d, da venera\u00e7\u00e3o aos derrotados em guerras perdidas, da ideia de que nosso passado, por mais abjeto que pare\u00e7a \u00e0 luz do presente, \u00e9 parte do que somos e n\u00e3o pode ser deixado para tr\u00e1s.<\/p>\n

Nos melhores casos, essa vis\u00e3o nos traz releituras quixotescas de um ontem\u00a0glorioso (e valioso). Nos piores, contudo, ela \u00e9 respons\u00e1vel pelo revisionismo, anti-intelectualismo e obscurantismo.<\/p>\n

Verdades conflitantes e desafios do mundo real trazem seus desassosegos. Se a resposta para cada ang\u00fastia for a fuga a um mundo de fantasia, regrediremos a uma sociedade\u00a0anterior \u00e0 raz\u00e3o.<\/p>\n

Eu j\u00e1 disse em outra ocasi\u00e3o<\/a> como ambas as vis\u00f5es podem ser vistas na\u00a0cultura pop quando o assunto \u00e9 o\u00a0Jap\u00e3o. Por\u00e9m, o que h\u00e1 de ainda mais interessante na terra dos samurais \u00e9 que ela inspirou tamb\u00e9m uma vis\u00e3o \u201cm\u00e9dia\u201d.<\/p>\n

O Jap\u00e3o dos pal\u00e1cios de Nagasaki, mas tamb\u00e9m\u00a0<\/strong>das cabanas infestadas de insetos. O Jap\u00e3o sofisticado, mas desumano; art\u00edstico, mas\u00a0insens\u00edvel; apaixonante, mas\u00a0amedrontador. O Jap\u00e3o, como Sebasti\u00e3o\u00a0Rodrigues\u00a0lamenta, promissor, mas terrivelmente cruel.<\/p>\n

Estranho em uma terra estranha<\/strong><\/h3>\n

\"shogun<\/p>\n

Endo n\u00e3o foi o \u00fanico a ilustrar esse passado amb\u00edguo, nem o que\u00a0teve o maior alcance.<\/p>\n

Shogun <\/em>\u00e9 um bestseller mais conhecido por inaugurar, ao lado de Ra\u00edzes<\/a><\/em>, a febre de mini-s\u00e9ries hist\u00f3ricas para a TV.\u00a0Um dos maiores sucessos editoriais\u00a0do s\u00e9culo passado, h\u00e1 quem credite o romance como respons\u00e1vel por abrir as portas do Ocidente ao Jap\u00e3o. E, por consequ\u00eancia, pela prolifera\u00e7\u00e3o de animes, kanjis e restaurantes japoneses que hoje\u00a0damos por normal.<\/p>\n

O livro\u00a0acompanha a hist\u00f3ria de ningu\u00e9m menos que Will Adams<\/a> (no livro, John Blackthorne), n\u00e1ufrago ingl\u00eas que se tornou amigo de Tokugawa Ieyasu, primeiro samurai ocidental\u00a0e o respons\u00e1vel pela centelha que fez eclodir as persegui\u00e7\u00f5es a cat\u00f3licos no shogunato.<\/p>\n

Resgatado do mar ap\u00f3s se chocar contra os rochedos japoneses, Blackthorne se v\u00ea cercado por inimigos. Protestante, piloto de\u00a0um navio holand\u00eas na \u00e9poca em que os Pa\u00edses Baixos estavam em guerra contra a Espanha,\u00a0sua mera presen\u00e7a \u00e9 uma amea\u00e7a \u00e0\u00a0imagem de uma Europa unida e pac\u00edfica que jesu\u00edtas tentavam pregar aos daimyos.<\/p>\n

Os mercadores portugueses (na \u00e9poca, sob autoridade<\/a> da\u00a0Espanha) o temem\u00a0porque\u00a0\u00e9 um concorrente e poss\u00edvel pirata. Os mission\u00e1rios o\u00a0temem\u00a0porque\u00a0previam (corretamente) que ele comprometeria os esfor\u00e7os de convers\u00e3o. E os nobres japoneses o detestam, pois seus h\u00e1bitos lhes parecem b\u00e1rbaros e ofensivos.<\/p>\n

Gra\u00e7as \u00e0 sua l\u00e1bia, ele encontra um ombro amigo em ningu\u00e9m menos que Tokugawa Ieyasu (no filme, Toranaga). Para o poderoso daimyo que desejava, ele pr\u00f3prio, virar o Jap\u00e3o de ponta cabe\u00e7a, Blackthorne parece o aliado perfeito.<\/p>\n

Sob a prote\u00e7\u00e3o de Toranaga, o piloto ingl\u00eas\u00a0se depara com uma cultura diferente de tudo o que conhecia. Por um lado, \u00e9 uma terra de luxo, beleza e fartura.\u00a0As\u00a0roupas e etiquetas de seu povo rivalizam em sofistica\u00e7\u00e3o com qualquer corte europeia. Pessoas n\u00e3o t\u00eam vergonha de seus corpos e n\u00e3o h\u00e1 tabus sobre a sexualidade.<\/p>\n

Por outro, \u00e9 uma pa\u00eds\u00a0cruel, desumano e opressor. Plebeus n\u00e3o t\u00eam nomes pr\u00f3prios e s\u00e3o designados pela sua profiss\u00e3o. Nobres “herdam” esposas de homens mortos e podem execut\u00e1-las ou for\u00e7\u00e1-las ao suic\u00eddio. A hierarquia \u00e9 absoluta, e a desobedi\u00eancia \u00e9 punida com inclem\u00eancia – e requintes de maldade.<\/p>\n

Acima de tudo, \u00e9 um pa\u00eds em que a vida humana n\u00e3o parece ter valor, e a morte \u00e9 onipresente. Traidores e derrotados abra\u00e7am a morte por seppuku<\/a><\/em>. Criminosos s\u00e3o sempre executados, independente da gravidade do delito. E samurais podem matar quem quiseram, da maneira que quiseram, pelo motivo que quiserem.<\/p>\n

\"shogun<\/p>\n

Em um dos segmentos mais chocantes, Blackthorne \u00e9 enviado a uma vila para aprender japon\u00eas. Se ele n\u00e3o estivesse fluente em 6 meses, diz seu superior, todos os habitantes seriam passados pela espada.<\/p>\n

N\u00e3o por acaso, \u00e9 a mesm\u00edssima imagem que\u00a0Shusaku Endo invoca\u00a0em sua f\u00e1bula sobre a crueldade:<\/p>\n

\n

Ao chegar na entrada da aldeia, o miado baixo do gato se tornou cada vez mais aud\u00edvel. Em minhas narinas o vento soprou um terr\u00edvel fedor que quase me fez vomitar. Era como o de peixe podre. Por\u00e9m, quando eu adentrei a aldeia, eu me vi cercado por um sil\u00eancio estranho e amedrontador. N\u00e3o havia uma \u00fanica pessoa \u00a0l\u00e1.<\/p>\n

Eu n\u00e3o vou dizer que era uma cena de desola\u00e7\u00e3o vazia. Pelo contr\u00e1rio, era como se uma batalha tivesse recentemente devastado todo o distrito. Espalhados por toda a estrada estavam pratos e copos quebrados, enquanto que as portas haviam sido arrombadas, de maneira que as casas jaziam abertas. O miado baixo do gato da cabana vazia parecia de alguma forma impudente, como se o animal estivesse espreitando descaradamente pela aldeia.<\/p>\n

Por muito tempo eu permaneci aturdido e em sil\u00eancio no meio da aldeia. \u00c9 estranho de dizer, pois eu n\u00e3o sentia nenhuma ansiedade, nenhum medo. A \u00fanica coisa que continuava silencionamente a se repetir\u00a0em\u00a0minha cabe\u00e7a era: por que isso? Por qu\u00ea?<\/p>\n<\/blockquote>\n

Em\u00a0Shogun<\/em>, esse choque cultural n\u00e3o est\u00e1 s\u00f3 no conte\u00fado, mas tamb\u00e9m na produ\u00e7\u00e3o.\u00a0Em uma decis\u00e3o quase estapaf\u00fardia de t\u00e3o ousada, sua\u00a0miniss\u00e9rie\u00a0foi filmada em japon\u00eas\u00a0sem qualquer legenda ou dublagem.\u00a0<\/strong>Salvo os di\u00e1logos com seus inimigos ib\u00e9ricos e com uma charmosa int\u00e9rprete\u00a0pela qual\u00a0se apaixona, somos apresentado ao Jap\u00e3o como o foi Blackthorne: completamente no escuro.<\/p>\n

\"shogun<\/p>\n

Um presente ao inimigo<\/h3>\n

De certa forma, Shogun\u00a0<\/em>e\u00a0Sil\u00eancio\u00a0<\/em>n\u00e3o poderiam ser mais diferentes. Ainda que contado sob a perspectiva de um estrangeiro, o livro de Endo expressa a dor de um japon\u00eas fascinado por uma religi\u00e3o que se diz universal, mas que parece incompat\u00edvel a\u00a0sua cultura – em suas pr\u00f3prias palavras, “uma muda plantada em solo\u00a0est\u00e9ril”.<\/p>\n

Clavell vem de um mundo oposto, mas compartilha com Endo algo muito pessoal. Tal como o autor de\u00a0Sil\u00eancio <\/em>e sua discrimina\u00e7\u00e3o religiosa, ele teve de p\u00f4r a limpo seus pr\u00f3prios traumas pessoais.<\/p>\n

Na sua juventude, Clavell serviu no ex\u00e9rcito brit\u00e2nico e lutou na Segunda Guerra. Ele foi ferido em combate e capturado pelos japoneses,\u00a0cujos destratos com prisioneiros incluiam trabalho for\u00e7ado<\/a>, mortes por exaust\u00e3o<\/a>\u00a0e uso como cobaias humanas<\/a> para o desenvolvimento de armas bacteriol\u00f3gicas.<\/p>\n

Clavell teve sorte, pois foi remanejado para uma das pris\u00f5es menos dantescas<\/a> do Imp\u00e9rio Japon\u00eas. Entretanto, boa parte de seus colegas foi recrutada\u00a0como m\u00e3o de obra escrava e morreu por maus tratos. Em outra pris\u00e3o na mesma cidade, prisioneiros chegaram a ser\u00a0deixados sem \u00e1gua e sanita\u00e7\u00e3o<\/a> por 5 dias em retalia\u00e7\u00e3o pela\u00a0fuga de soldados.<\/p>\n

N\u00e3o seria surpreendente se Clavell desenvolvesse um \u00f3dio pelo Jap\u00e3o. Muitos veteranos\u00a0da Guerra do Pac\u00edfico\u00a0contaram ter sentido uma avers\u00e3o parecida<\/a>, a ponto de nunca terem conseguido perdo\u00e1-los<\/a>. O escritor, que registrou diretamente suas experi\u00eancias em outro livro,\u00a0Changi<\/a><\/em>, teria tudo para ser apenas mais um exemplo.<\/p>\n

A verdade, no entanto, n\u00e3o poderia ser mais diferente. Nas suas palavras,<\/p>\n

\n

Shogun <\/em>foi escrito com a expectativa de ser a ponte entre o Oriente e o Ocidente e para enriquecer e tentar explicar a Terra dos Deuses para o mundo ocidental. \u00c9 uma hist\u00f3ria apaixonadamente pr\u00f3-japonesa, concebida com carinho. De certo modo, \u00e9 o meu presente ao Jap\u00e3o.<\/p>\n<\/blockquote>\n

Que um ex-prisioneiro de guerra resolvesse dar “um presente”\u00a0\u00e0 na\u00e7\u00e3o dos seus velhos inimigos parece, \u00e0 primeira vista, uma grande loucura. Contudo, n\u00f3s talvez n\u00e3o dev\u00eassemos ficar t\u00e3o surpresos.<\/p>\n

A mente \u00e9 o seu pr\u00f3prio lugar<\/h3>\n

\"Empire-of-the-Sun-DI-02.jpg\"<\/p>\n

Eu j\u00e1 disse em outro artigo<\/a> como Saburo Sakai, famoso \u00e1s japon\u00eas da Segunda Guerra,\u00a0desenvolvou uma imensa admira\u00e7\u00e3o pelos Estados Unidos, a ponto de elogiar\u00a0Paul Tibbets, o piloto que lan\u00e7ou a bomba em Hiroshima.<\/p>\n

Caso ainda mais pr\u00f3ximo \u00e9 o do tamb\u00e9m escritor J.G. Ballard<\/a>, grande nome da fic\u00e7\u00e3o cient\u00edfica. Nascido\u00a0no distrito brit\u00e2nico de Shanghai, Ballard foi capturado pelos japoneses e confinado ao campo de concentra\u00e7\u00e3o de Lunghua<\/a>.<\/p>\n

Em uma fase da vida em que a maioria dos jovens s\u00f3 pensa em se divertir e ser popular com as garotas, o futuro escritor testemunhou coisas que ningu\u00e9m deveria ser obrigado a ver: espancamentos, falta de comida,\u00a0civis for\u00e7ados a caminhar em marchas intermin\u00e1veis, morrendo de exaust\u00e3o pelo caminho.<\/p>\n

Apesar de tudo isso, suas mem\u00f3rias do c\u00e1rcere n\u00e3o s\u00e3o ruins. Se ele frequentemente se deparou com o pior da crueldade humana, tamb\u00e9m p\u00f4de brincar, estudar, fazer amigos e ser um adolescente feliz. Sua rela\u00e7\u00e3o com os capatazes do campo de concentra\u00e7\u00e3o\u00a0era similar a\u00a0de um estudante rebelde para com a diretora\u00a0de escola.<\/p>\n

\"empire<\/p>\n

Tratando-se de Ballard, \u00e9 apenas l\u00f3gico que sua hist\u00f3ria fosse terminar em\u00a0literatura. Tal como Clavell, ele imortalizou sua experi\u00eancia no romance\u00a0Imp\u00e9rio do Sol<\/a><\/em>, adaptado ao cinema por Steven Spielberg e Tom Stoppard.<\/p>\n

\"Empire<\/p>\n

Quebrando o “Sil\u00eancio”<\/h3>\n

Em dado momento no romance de Endo, o “sil\u00eancio” que tanto angustia seu her\u00f3i finalmente \u00e9 rompido, e Cristo fala\u00a0a Sebasti\u00e3o Rodrigues. Sobre o que ele diz, n\u00e3o darei spoilers. Se o contato com a divindade \u00e9\u00a0um al\u00edvio ou o \u00faltimo dos tormentos – o abismo que nos olha de volta depois de ser encarado por muito tempo – caber\u00e1 ao leitor julgar.<\/p>\n

Mais importante \u00e9 notar que esse foi\u00a0um desafio que tamb\u00e9m Clavell e Ballard, cada qual \u00e0 sua maneira, enfrentaram. Em suas guerras pessoais, cada um desses autores teve, assim como Rodrigues, de achar for\u00e7as onde n\u00e3o sabiam se a iriam encontrar.<\/p>\n

Como escreveu o cr\u00edtico Roger Ebert<\/a> sobre a adapta\u00e7\u00e3o\u00a0de\u00a0Imp\u00e9rio do Sol<\/em>,<\/p>\n

\n

O filme cai na armadilha de tantas hist\u00f3rias de guerra e transforma terror em nostalgia. O processo \u00e9 familiar. Experi\u00eancias de guerra s\u00e3o brutais, dolorosas e tr\u00e1gicas, mas \u00e0s vezes elas convocam o melhor nos seres humanos. E quando a guerra acaba, os sobreviventes eventualmente come\u00e7am a sentir saudades daquele tempo em que eles haviam se superado, quando, nos melhores e piores momentos, eles viveram no seu auge.<\/p>\n<\/blockquote>\n

O jovem Padre Rodrigues, zarpando ao Jap\u00e3o em uma miss\u00e3o suicida, disposto a virar m\u00e1rtir para ajudar crist\u00e3os perseguidos, n\u00e3o poderia concordar mais.<\/p>\n

O ser humano tem\u00a0uma enorme facilidade<\/a> para aceitar a viol\u00eancia. Por incr\u00edvel que pare\u00e7a, isto vale tamb\u00e9m para a viol\u00eancia que sofremos. \u00c9 apenas quando a dor se torna arbitr\u00e1ria, quando sentimos que o mart\u00edrio n\u00e3o levar\u00e1 a nada, quando duvidamos da causa pela qual est\u00e1vamos disposto a perder tudo, que o calafrio corre por nossas espinhas.<\/p>\n

Quando percebemos que palavras grandes como “Deus”, “justi\u00e7a”, “ordem”, “p\u00e1tria” e tantas outras s\u00e3o bengalas para caminharmos por um mundo indiferente, precisamos buscar\u00a0meios para “romper”\u00a0o sil\u00eancio. Ou, ent\u00e3o, aprender a aceit\u00e1-lo.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

F\u00e3s de Martin Scorsese sabem que 2016 \u00e9 um ano para n\u00e3o esquecer.\u00a0Silence, seu projeto pessoal em desenvolvimento desde 1991,\u00a0cujo storyboard\u00a0inspirou o cartaz da 39a Mostra de Cinema de S\u00e3o Paulo, \u00a0finalmente dar\u00e1 as caras ao grande p\u00fablico. Entusiastas de cultura japonesa t\u00eam motivo redobrado para acompanhar o lan\u00e7amento. Trata-se da adapta\u00e7\u00e3o de um dos […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":5989,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"spay_email":"","jetpack_publicize_message":"","jetpack_is_tweetstorm":false},"categories":[580,17],"tags":[53,175,181,190,191,192,226,357,360,361],"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/i2.wp.com\/www.finisgeekis.com\/wp-content\/uploads\/2016\/05\/silence-header.png?fit=1145%2C742","jetpack_publicize_connections":[],"jetpack_shortlink":"https:\/\/wp.me\/p9rUzW-1sG","_links":{"self":[{"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/5622"}],"collection":[{"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=5622"}],"version-history":[{"count":1,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/5622\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":21310,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/5622\/revisions\/21310"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/media\/5989"}],"wp:attachment":[{"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=5622"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=5622"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=5622"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}