N\u00e3o sei o suficiente de gal\u00eas para saber se Hiraeth, <\/em>mang\u00e1 hom\u00f4nimo de Yuhki Kamatami, faz jus a todos os seus significados. O que posso dizer \u00e9 que \u00e9 sim uma hist\u00f3ria sobre nostalgia, saudade de casa e a tristeza de pensar em algo que \u00e9 imposs\u00edvel ou que j\u00e1 passou.<\/p>\n\n\n\n Mais do que isso, \u00e9 uma hist\u00f3ria sobre qual dif\u00edcil \u00e9 saber o que de fato queremos – e de onde v\u00eam as aus\u00eancias que nos correm por dentro.<\/p>\n\n\n\n\n\n\n\n O fim da jornada<\/strong><\/p>\n\n\n\n Como seu subt\u00edtulo indica, Hiraeth: The End of the Journey <\/em>\u00e9 uma road trip<\/em>, embora seus protagonistas sejam tudo menos \u00f3bvios.<\/p>\n\n\n\n Mika \u00e9 uma adolescente que desistiu de viver ap\u00f3s a morte da melhor amiga. Ela tenta se suicidar, no que \u00e9 impedida por Hibino, um homem que, ironicamente, n\u00e3o consegue morrer.<\/p>\n\n\n\n Hibino, por sua vez, acompanha Hani (nome fantasia), um deus que busca o caminho para Yomi, a terra dos mortos da mitologia xinto\u00edsta. \u201cSim, at\u00e9 os deuses morrem\u201d, ele relembra seus companheiros. Quando os s\u00e9culos levam consigo seus \u00faltimos fieis, divindades embarcam de bom grado em sua \u00faltima viagem. Primeiro, fazem uma peregrina\u00e7\u00e3o at\u00e9 o santu\u00e1rio de cada outro deus que conhecia, agradecendo-o por favores passados. Depois, abandonam o mundo terreno.<\/p>\n\n\n\n N\u00e3o \u00e9 exatamente a mesma coisa que mortais entendem como “morte”. Mika e Hibino, no entanto, decidem apostar na chance que, ao acompanhar o deus misterioso, eles tamb\u00e9m ser\u00e3o aben\u00e7oados com seu fim.<\/p>\n\n\n\n O mang\u00e1 de Kamatami est\u00e1 em boa companhia, a despeito – ou talvez por causa – de seu car\u00e1ter m\u00f3rbido. De Noragami <\/a><\/em>a Gekijou Ningyo no Mori<\/a><\/em> (baseado na lenda de Yaobikuni, citada diretamente em Hiraeth), o peso da imortalidade e a depend\u00eancia de mitos naqueles que os contam s\u00e3o temas t\u00e3o classicos na cultura pop japonesa quanto na mitologia que a precedeu.<\/p>\n\n\n\n O que Hiraeth <\/em>agrega \u00e0 f\u00f3rmula \u00e9 a confusa, bela e tr\u00e1gica s\u00e9rie de n\u00f3s que entrela\u00e7a as motiva\u00e7\u00f5es de seu trio principal. Embora persigam o mais ego\u00edsta de todos os objetivos – a morte – Mika, Hibino e Hani acabam por depender completamente um no outro.<\/p>\n\n\n\n Hibino \u00e9 fascinado por Mika pois, em todos os seus s\u00e9culos de vida, nunca experimentou um afeto t\u00e3o s\u00e9rio a ponto de desejar morrer por outra pessoa. Para sua pr\u00f3pria prote\u00e7\u00e3o, nunca permanece muito tempo com o mesmo parceiro, preferindo um vida sem compromissos \u00e0 inevitabilidade de continuar jovem enquanto seus entes amados envelhecem.<\/p>\n\n\n\n Hani, um deus, n\u00e3o entende a morte da mesma forma que os humanos. A tristeza, o luto e o medo que mortais t\u00eam do fim inevit\u00e1vel desperta nele uma imensa curiosidade. Curiosidade que parece, aos olhos das pessoas, insens\u00edvel e opressiva.<\/p>\n\n\n\n N\u00e3o fosse o bastante, ele tem o poder de enxergar a morte das pessoas. Mais especificamente, todas as mem\u00f3rias que ligam o nascimento ao \u00faltimo suspiro. Se isto \u00e9 conveniente para ele – e para o leitor, que se aproveita de seu conhecimento – \u00e9 aterrorizante para qualquer um que tenha o desprazer de cruzar seu caminho. Pior do que carregar uma culpa vergonhosa \u00e9 saber que seu cora\u00e7\u00e3o \u00e9 um livro aberto a estranhos.<\/p>\n\n\n\n \u00c9 uma premissa que garante que esse trio de protagonistas jamais estar\u00e1 na mesma p\u00e1gina. Consequentemente, at\u00e9 a mais banal das revela\u00e7\u00f5es se mostra uma fonte de surpresas e conflitos.<\/p>\n\n\n\n \u201cA estrada at\u00e9 a morte \u00e9 um caminho conectado pelas mem\u00f3rias dos vivos\u201d Hani explica. E tal caminho n\u00e3o \u00e9 nem t\u00e3o curto nem t\u00e3o previs\u00edvel quanto imaginam \u00e0 primeira vista.<\/p>\n\n\n\n A vida dos outros<\/strong><\/p>\n\n\n\n N\u00e3o bastassem suas bagagens pessoais, Mika, Hibino e Hani s\u00e3o confrontados por todo um elenco de personagens vivendo \u00e0 sombra da morte. Uma idosa que viveu uma vida plena, mas anseia conhecer o mundo para al\u00e9m da cidade onde mora. Um oficial do shogunato que descumpre suas ordens para ajudar o povo afetado por uma calamidade, condenando-se \u00e0 morte por seppuku. Uma jovem com c\u00e2ncer terminal que busca o segredo de Hibino para que ela, pr\u00f3pria, possa ganhar mais uns anos. <\/p>\n\n\n\n Nenhum dos tr\u00eas sai de cada encontro do mesmo jeito que entrou. Com o passar dos cap\u00edtulos, \u00e9 quest\u00e3o de tempo at\u00e9 que comecem a repensar ou o objetivo de sua jornada ou os motivos que os levaram at\u00e9 ali. <\/p>\n\n\n\n Nesse sentido, Hiraeth <\/em>funciona como uma vers\u00e3o mais breve e menos movimentada de A Vida Imortal: <\/em>uma s\u00e9rie de vinhetas que continuamente for\u00e7am suas personagens -e a n\u00f3s mesmos \u2013 a nos questionarmos sobre o final da vida. Que Kamatami tenha conseguido inserir tanto conte\u00fado em t\u00e3o pouco espa\u00e7o \u00e9 prova de sua habilidade. Se com certos mang\u00e1s sentimos que as p\u00e1ginas <\/em>voam diante de nossos olhos, cada volume de Hiraeth <\/em>nos atinge como uma pedrada. Esta n\u00e3o \u00e9 uma leitura leve, pois mais fofas que suas personagens e capas floridas sugiram o contr\u00e1rio.<\/p>\n\n\n\n Uma “obra Covid?<\/strong>“<\/p>\n\n\n\n Hiraeth come\u00e7ou a ser publicado em outubro de 2020. \u00c9 tentador \u2013 e, provavelmente, n\u00e3o de todo errado \u2013 encar\u00e1-lo como uma \u201cobra Covid\u201d: uma de tantas hist\u00f3rias sobre a morte, o luto e a culpa de sobrevivente que calamidades recentes tornaram populares. Se isto n\u00e3o passou pela cabe\u00e7a de Kamatami, sem d\u00favida o fez pelas de quem resolveu traz\u00ea-lo ao Ocidente \u2013 pelo menos em l\u00edngua angl\u00f3fona<\/a> \u2013 esse ano.<\/p>\n\n\n\n Mas julgar demais o mang\u00e1 pelo nosso zeitgeist <\/em>pode nos levar a deixar de lado o mais importante. Como a road trip <\/em>de Mika, Hibino e Hani deixam claro, calamidades n\u00e3o t\u00eam, nem nunca tiveram, o monop\u00f3lio sobre a dor e a morte.<\/p>\n\n\n\n A pandemia trouxe um holofote para a perda e o sofrimento. Por\u00e9m, o desafio de viver em um mundo onde a vida vale pouco e a morte \u00e9 arbitr\u00e1ria \u00e9 um velho conhecido de muitas pessoas. Em especial, aquelas que vivem nas margens.<\/p>\n\n\n\n![\"\"](\"https:\/\/i1.wp.com\/www.finisgeekis.com\/wp-content\/uploads\/2022\/08\/20200804-hiraeth-manga-cover.jpg?resize=500%2C711&ssl=1\")
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