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{"id":22962,"date":"2021-07-14T18:20:28","date_gmt":"2021-07-14T21:20:28","guid":{"rendered":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/?p=22962"},"modified":"2021-07-14T18:20:29","modified_gmt":"2021-07-14T21:20:29","slug":"hana-chan-e-a-forma-do-mundo-retrato-de-um-japao-que-nao-existe-mais","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/2021\/07\/14\/hana-chan-e-a-forma-do-mundo-retrato-de-um-japao-que-nao-existe-mais\/","title":{"rendered":"“Hana-chan e a forma do mundo” : retrato de um Jap\u00e3o que n\u00e3o existe mais"},"content":{"rendered":"\n

Quando era pequeno, o pr\u00e9dio em que eu morava pegou fogo.<\/p>\n\n\n\n

Acordei de madrugada com os gritos da minha m\u00e3e. Meu pai n\u00e3o esperou para que eu entendesse que aquilo n\u00e3o era um sonho. Fui puxado escada abaixo com tanta for\u00e7a que tive a impress\u00e3o de que vo\u00e1vamos.<\/p>\n\n\n\n

Nos raros momentos em que uma curva nos for\u00e7ava a aterrissar, lembro-me de ter sentido o ch\u00e3o frio e molhado. Estranho fogo aquele, que alagava em vez de queimar.<\/p>\n\n\n\n

Dias depois, quando j\u00e1 tinha me recuperado do susto, as pe\u00e7as entraram em seus lugares.<\/p>\n\n\n\n

Nosso inc\u00eandio havia, sim, espalhado labaredas \u2013 embora, felizmente, n\u00e3o a ponto de condenar o pr\u00e9dio. A quest\u00e3o \u00e9 que os vizinhos haviam espalhado toalhas molhadas para conter o fogo.<\/p>\n\n\n\n

A explica\u00e7\u00e3o me fez sentido, mesmo naquela \u00e9poca. Mas nem ela foi suficiente para apagar a mem\u00f3ria de que eu tinha escapado das chamas como quem desce um tobog\u00e3.<\/p>\n\n\n\n

\u00c9 sobre esse senso de maravilhamento, essa capacidade de tirar uma aventura das experi\u00eancias mais mundanas de que fala Hana-chan e a Forma do Mundo<\/em>.<\/p>\n\n\n\n\n\n\n\n

As formas do mundo<\/strong><\/p>\n\n\n\n

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N\u00e3o \u00e9 \u00e0 toa que o inc\u00eandio da minha inf\u00e2ncia foi a primeira coisa a me vir \u00e0 mente ao abrir o mang\u00e1 de Ryotaro Ueda. Hana-chan, <\/em>tamb\u00e9m, come\u00e7a com um desastre. Ou seria mesmo?<\/p>\n\n\n\n

Uma crian\u00e7a brinca na chuva. Sua professora para o carro ao seu lado e insiste para que saia dali. Um tuf\u00e3o est\u00e1 a caminho. A menina, Hana-chan, diz que j\u00e1 fez os preparativos, mas n\u00e3o parece se dar conta da severidade do que est\u00e1 por vir.<\/p>\n\n\n\n

Quando o tuf\u00e3o chega, suas consequ\u00eancias s\u00e3o t\u00e3o m\u00e1gicas<\/strong> \u2013 por falta de palavra melhor \u2013 que nos perguntamos se tudo aquilo n\u00e3o passou de uma fantasia.<\/p>\n\n\n\n

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O que, realmente, aconteceu com Hana-chan? Pergunta errada. O mang\u00e1 de Ueda n\u00e3o \u00e9 uma hist\u00f3ria sobre as experi\u00eancias de uma menina, e sim sobre as formas inusitadas, fabulosas que assumem quando s\u00e3o filtradas por sua mente.<\/p>\n\n\n\n

\u00c9 um mang\u00e1 sobre o que significa apreender o mundo quando ainda somos jovens o suficiente para escapar do cabresto da raz\u00e3o e do racioc\u00ednio abstrato. Justamente por isso, \u00e9 uma carta de amor \u00e0 imagina\u00e7\u00e3o \u2013 e \u00e0 import\u00e2ncia de cultiv\u00e1-la.<\/p>\n\n\n\n

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O mang\u00e1 \u00e9 uma s\u00e9rie de contos descrevendo epis\u00f3dios da vida de Hana-chan e seus amigos. Seria f\u00e1cil descrev\u00ea-lo como um slice of life<\/em>, mas isso n\u00e3o d\u00e1 conta de explicar o quanto a obra destoa das conven\u00e7\u00f5es do g\u00eanero. Na verdade, n\u00e3o fossem os nomes japoneses e arrozais espalhados pela paisagem, seria at\u00e9 f\u00e1cil esquecer de que se trata de um mang\u00e1.<\/p>\n\n\n\n

Estamos na linha Minha Experi\u00eancia L\u00e9sbica com a Solid\u00e3o<\/a> <\/em>de obras que bebem dos BDs franceses e HQs independentes americanas tanto quanto dos quadrinhos japoneses. Pela personalidade tanto quanto pelo visual, Hana-chan chega a lembrar uma personagem do Ziraldo. Ponha uma panela em sua cabe\u00e7a e ela se camuflaria perfeitamente em um volume de Menino Maluquinho.<\/em><\/p>\n\n\n\n

Um Jap\u00e3o que n\u00e3o existe mais<\/strong><\/p>\n\n\n\n

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Mang\u00e1s sobre \u201cgarotas fofas fazendo fofices\u201d muitas vezes s\u00e3o escritos para adultos. A \u201cinf\u00e2ncia\u201d idealizada que retraram \u00e9 um exerc\u00edcio de escapismo: um contraste aos perrengues, horas extras e boletos que o dia a dia nos lan\u00e7a.<\/p>\n\n\n\n

Hana-chan <\/em>tem uma proposta diferente. Alguns de seus contos, como aquele sobre um plano da prefeitura para eliminar ervas daninhas com rob\u00f4s, come\u00e7a e termina no mundo da fantasia. Outros, como a trama sobre uma mulher cujo visual lembra a Sadako de O Chamado, <\/em>apenas molham os p\u00e9s no surreal, quando muito.<\/p>\n\n\n\n

Ueda nunca tra\u00e7a a linha que separa uma coisa da outra, e seu trabalho \u00e9 mais bem sucedido por isto. N\u00e3o s\u00f3 porque faz jus \u00e0 magia dos primeiros anos das nossas vidas, mas tamb\u00e9m porque eleva esse mist\u00e9rio acima da mera fantasia.<\/p>\n\n\n\n

\u00c9, de fato, incr\u00edvel o quanto aprendemos da vida \u2018real\u2019 \u00a0Hana por meio de uma hist\u00f3ria que nos diz t\u00e3o pouco. Hana-chan e seus amigos vivem em uma cidade escondida nas montanhas que diminui a cada ano que passa. Abandonados pela popula\u00e7\u00e3o em decl\u00ednio, arrozais s\u00e3o consumidos pela natureza. Hana-chan e seus amigos brincam em ruas n\u00e3o asfaltadas, terrenos baldios, carca\u00e7as de fuscas abandonados.<\/p>\n\n\n\n

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Quando o escoamento de uma represa amea\u00e7a destruir a vila de Hana, tive a impress\u00e3o de estar lendo uma vers\u00e3o japonesa de As Cidades Afundam em Dias Normais<\/a>.<\/em><\/p>\n\n\n\n

H\u00e1 de fato mais em comum entre o mang\u00e1 e esse romance de Aline Valek. Tal como a escritora brasileira fez com seu retrato do cerrado, Ueda escreve sobre um Jap\u00e3o que n\u00e3o existe mais \u2013 apagado por \u00e1guas, reais e metaf\u00f3ricas.<\/p>\n\n\n\n

\u201cA chuva \u00e9 quando o mundo troca de pele\u201d diz Hana-chan. Cedo ou tarde, tudo o que conhecemos passa por esta metamorfose. <\/p>\n\n\n\n

Muitas vezes, o que encontramos do outro lado \u00e9 irreconhec\u00edvel.<\/p>\n\n\n\n

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Todos n\u00f3s temos um lugar a que n\u00e3o podemos voltar. Mesmo que n\u00e3o desapare\u00e7a de maneira t\u00e3o dram\u00e1tica quanto o Jap\u00e3o rural de Ueda.<\/p>\n\n\n\n

Isso porque jamais voltaremos a enxergar o mundo com a imagina\u00e7\u00e3o de Hana-chan. O pr\u00e9dio onde morava quando minha casa pegou fogo continua firme e forte. Na verdade, continuo morando no mesmo andar de onde levantei v\u00f4o com meu pai naquela noite.<\/p>\n\n\n\n

Mas onde o Vinicius de sete anos via uma experi\u00eancia de outro mundo, eu enxergo apenas tijolo e cimento, escadas e extintores de inc\u00eandio. Para o mal, mas tamb\u00e9m para o bem, a perda de inoc\u00eancia \u00e9 um caminho sem retorno. <\/p>\n\n\n\n

O mang\u00e1 de Ueda, por\u00e9m, sugere que n\u00e3o \u00e9 necess\u00e1rio lutar contra a corrente.<\/p>\n\n\n\n

Mem\u00f3rias se remetem ao passado, mas n\u00e3o pertencem a ele. Elas existem tamb\u00e9m no presente, no futuro, em qualquer tempo em que pessoas estiverem dispostas a relembr\u00e1-las e compartilh\u00e1-las. <\/p>\n\n\n\n

E, ao salpic\u00e1-las de magia, podemos garantir que nosso futuro, tamb\u00e9m, preserve algo de m\u00e1gico.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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