\u00c9 um romance sobre uma crian\u00e7a seduzida a cruzar um portal a um mundo fant\u00e1stico. Mas tamb\u00e9m \u00e9 um romance que seduz a n\u00f3s pr\u00f3prios com imagens familiares de contos-de-fada para entregar algo profundo e desconfort\u00e1vel.<\/p>\n\n\n\n
\u00c9 um livro t\u00e3o honestamente m\u00e1gico<\/em>, no sentido ilusionista da palavra, que nos surpreende a cada virada ou revela\u00e7\u00e3o, muito embora saibamos que seus floreios existem apenas para nos desorientar.<\/p>\n\n\n\n Vencedor do prestigioso pr\u00eamio Honya Taisho<\/a><\/em>, cujos rol de ganhadores inclue Ryu Murakami e Yoko Ogawa, \u00e9 uma trama t\u00e3o diminuta quanto suas jovens personagens – e t\u00e3o capazes, como elas, de tomar nosso cora\u00e7\u00e3o de assalto. <\/p>\n\n\n\n\n\n\n\n Atrav\u00e9s do espelho<\/strong><\/p>\n\n\n\n Kokoro \u00e9 uma garota com um problema. Por motivos que escapam ao seu controle, ela se tornou alvo da ira de Miori Sanada, garota mais popular do col\u00e9gio.<\/p>\n\n\n\n Insatisfeita em humilh\u00e1-la na escola, Sanada decide pagar uma visita a sua pr\u00f3pria casa acompanhada de sua gangue habitual de meninas. A duras custas, Kokoro consegue se manter escondida at\u00e9 que o grupo se disperse.<\/p>\n\n\n\n O que, exatamente, era seu plano Kokoro nunca descobre. No grande esquema das coisas, tamb\u00e9m n\u00e3o importa. Ao violar a fortaleza que julgava inexpugn\u00e1vel \u2013 seu pr\u00f3prio lar \u2013 Sanada deixou claro \u00e0 Kokoro que n\u00e3o estaria segura em lugar nenhum.<\/p>\n\n\n\n Aterrorizada, a garota nunca mais vai \u00e0 escola.<\/p>\n\n\n\n A escolha vira seu mundo de ponta-cabe\u00e7a. Conforme as aulas perdidas se acumulam, Kokoro flerta com um futuro fora do sistema. A implica\u00e7\u00e3o n\u00e3o passa despercebida a sua m\u00e3e, que faz de tudo para devolv\u00ea-la aos trilhos.<\/p>\n\n\n\n Essa, por\u00e9m, n\u00e3o \u00e9 a \u00fanica transforma\u00e7\u00e3o que sacode sua vida. Certo dia, Kokoro encontra o espelho do seu quarto brilhando misteriosamente. Ao toc\u00e1-lo, \u00e9 magicalmente transportada a um castelo, recepcionada por uma garota mascarada que se apresenta como A Rainha Loba.<\/p>\n\n\n\n Sete outras crian\u00e7as est\u00e3o presentes. Todas, Kokoro descobre, tamb\u00e9m decidiram abandonar a escola. A Rainha Loba lhes conta que h\u00e1 uma chave no castelo capaz de realizar qualquer desejo. Qualquer um deles pode usar seu poder – a n\u00e3o ser que um dos outros a encontre primeiro.<\/p>\n\n\n\n Aqueles que esperam uma hist\u00f3ria de fantasia que lentamente se desdobra em uma met\u00e1fora para problemas reais, nas linhas de Eu Mato Gigantes<\/a>, <\/em>sair\u00e3o desapontados. Mizuki Tsujimura, a autora, \u00e9 uma conhecida por seus livros de suspense e emprega em seu romance todos os truques do g\u00eanero.<\/p>\n\n\n\n H\u00e1 momentos em que sua trama parece enveredar a um Battle Royale<\/em><\/a> entre as sete crian\u00e7as, na medida em que seus objetivos pessoais afloram e a disputa pela chave as transforma em oponentes. Em outros, o livro flerta com o mist\u00e9rio existencial, com suas personagens lentamente questionando a identidade do castelo, da Rainha Loba, da pr\u00f3pria realidade. Certas passagens s\u00f3 podem ser descritas como fic\u00e7\u00e3o cient\u00edfica.<\/p>\n\n\n\n \u00c9 prova do talento de Tsujimura que seu livro consiga flertar com tantas refer\u00eancias distintas sem perder a coer\u00eancia. Mais impressionante ainda, por\u00e9m, \u00e9 que autora nunca perca de vista aquele que \u00e9 seu tema principal: as ang\u00fastias sofridas por crian\u00e7as no Jap\u00e3o \u2013 em casos extremos, a ponto de transform\u00e1-las em p\u00e1rias sociais.<\/p>\n\n\n\n Embora recheada de fantasia, sua hist\u00f3ria se passa no mundo real tanto quanto no castelo detr\u00e1s do espelho. A aventura de Kokoro no mundo da Rainha Loba acontece em paralelo com a tentativa de sua fam\u00edlia e professores de traz\u00ea-la de volta \u00e0 vida normal. E, por meio do espelho, dos dramas parecidos enfrentados por cada um de seus novos amigos.<\/p>\n\n\n\n Todos os convocados pela Rainha Loba possuem algum motivo para evitar a escola. H\u00e1 aqueles que sucumbem diante das expectativas dos pais. H\u00e1 o garoto que recusa a admitir ser v\u00edtima de bullying, <\/em>mesmo ap\u00f3s um espancamento coletivo quase levar para o hospital. H\u00e1 sobreviventes de abusos sexuais. H\u00e1 aqueles cujas vidas \u2013 e fam\u00edlias \u2013 foram destro\u00e7adas por uma morte.<\/p>\n\n\n\n Tsujimura narra cada epis\u00f3dio com uma franqueza que beira a crueldade. Sua prosa n\u00e3o doura p\u00edlulas ou refor\u00e7a horrores: apenas nos mostra a realidade nua e crua, simples e horripilante, como se vista pelos olhos de Kokoro.<\/p>\n\n\n\n O problema do futoukou<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n Uma nota inclu\u00edda na edi\u00e7\u00e3o em l\u00edngua inglesa<\/a> de Kagaki no Kojo <\/em>menciona que o Jap\u00e3o \u00e9 um dos piores pa\u00edses do mundo desenvolvido no que diz respeito \u00e0 sa\u00fade mental de suas crian\u00e7as.<\/p>\n\n\n\n A informa\u00e7\u00e3o vem de um levantamento da UNICEF<\/a> que pode ser consultado no site da organiza\u00e7\u00e3o. Segundo o documento, o Jap\u00e3o fica em pen\u00faltimo lugar <\/strong>entre todos os pa\u00edses da OCDE<\/a> e Uni\u00e3o Europeiaem quesitos como bullying<\/em> e satisfa\u00e7\u00e3o com a vida.<\/p>\n\n\n\n N\u00e3o \u00e9 de se espantar, assim, que a recusa de suas personagens em ir para a escola seja mais do que um artif\u00edcio liter\u00e1rio. Pelo contr\u00e1rio, segundo uma pesquisa publicada em 2020<\/a>, h\u00e1 quase 50 mil crian\u00e7as <\/strong>na situa\u00e7\u00e3o de Kokoro no Jap\u00e3o. A estat\u00edstica preocupante, contudo, \u00e9 outra: 70% dos estudantes japoneses v\u00e3o para escola contra a vontade<\/strong>.<\/p>\n\n\n\n N\u00e3o \u00e9 \u00e0 toa que o romance de Tsujimura virou um bestseller<\/em>.<\/p>\n\n\n\n Esse comportamento \u00e9 visto como um problema t\u00e3o s\u00e9rio que ganhou um nome pr\u00f3prio. Na verdade, nomes<\/strong>, no plural.<\/p>\n\n\n\n O fen\u00f4meno tem visibilidade desde pelo menos os anos 1980<\/a>, quando era chamado de tokokyohi<\/em> (“fobia escolar” ou “recusa em ir \u00e0 escola” ). Na \u00e9poca, era comum encar\u00e1-lo como um ato deliberado de rebeldia \u2013 \u00e0s vezes, com conota\u00e7\u00f5es pol\u00edticas. Um livro sobre o assunto lan\u00e7ado em 1999, por exemplo, trazia o sugestivo t\u00edtulo O Ensino M\u00e9dio Japon\u00eas: Sil\u00eancio e Resist\u00eancia.<\/em><\/p>\n\n\n\n Com o passar do tempo, por\u00e9m, especialistas passaram a diferenciar aqueles que abertamente desafiavam a escola daqueles, como Kokoro, que eram v\u00edtimas de bullying, <\/em>inseguran\u00e7a ou problemas familiares. Hoje, o fen\u00f4meno \u00e9 mais conhecido como futoukou <\/em>(\u201cN\u00e3o comparecimento \u00e0 escola\u201d).<\/p>\n\n\n\n Se voc\u00ea, como eu, nunca ouviu falar desse problema antes, est\u00e1 perdoado. O futoukou <\/em>\u00e9 uma das faces da educa\u00e7\u00e3o japonesas menos abordadas pela cultura pop, a despeito de sua apari\u00e7\u00e3o ocasional em mang\u00e1s em animes. Por exemplo, na figura de Jintan, protagonista de Anohana, <\/em>cujas experi\u00eancias foram baseadas no futoukou <\/em>da pr\u00f3pria autora<\/a>, Mari Okada.<\/p>\n\n\n\n Nenhuma obra que conhe\u00e7o, por\u00e9m, vai t\u00e3o fundo quanto Tsujimura na tentativa de representar \u2013 e explicar \u2013 esse fen\u00f4meno.<\/p>\n\n\n\n Lendo pesquisas cient\u00edficas a respeito do futoukou<\/em>, salta aos olhos o esmero da autora em capturar a realidade dessas crian\u00e7as.<\/p>\n\n\n\n Quando os pais e a escola de Kokoro entendem que sua aus\u00eancia n\u00e3o acabar\u00e1 t\u00e3o cedo, ela come\u00e7a a receber visitas de seu professor, o Sr. Ida. Sua casa tamb\u00e9m recebe regularmente folhetos da escola, muitas vezes entregues por Tojo-san, uma de suas \u00fanicas amigas.<\/p>\n\n\n\n Segundo uma orientadora escolar entrevistada por Nicolas Tarjan, pesquisador da Universidade de Kyoto<\/a>, tanto as visitas familiares quanto os folhetos s\u00e3o estrat\u00e9gias usadas por escolas japonesas para lidar com crian\u00e7as com problemas psicol\u00f3gicos ou familiares.<\/p>\n\n\n\n A visita tem at\u00e9 um nome, katei houmon. <\/em>Se a situa\u00e7\u00e3o \u00e9 delicada \u2013 ou h\u00e1 suspeitas de abuso \u2013 o professor pode ser tamb\u00e9m acompanhado pela pol\u00edcia. Em alguns lugares, professores tamb\u00e9m fazem rondas em bares de karaok\u00ea e outros locais frequentados por jovens para tentar flagrar alunos fora da aula.<\/p>\n\n\n\n Essas patrulhas explicam porque Kokoro n\u00e3o s\u00f3 abandona a escola, mas gradualmente se recusa a sair de casa de todo. Elas tamb\u00e9m desempenham um papel importante na hist\u00f3ria pessoal de um dos colegas que encontra no castelo.<\/p>\n\n\n\n J\u00e1 os folhetos, segundo a orientadora, foram uma solu\u00e7\u00e3o encontrada para situa\u00e7\u00f5es em que os professores n\u00e3o podem ou conseguem conversar com os alunos dentro de suas casas.<\/p>\n\n\n\n Tsukimura, no entanto, mostra claramente que o discurso \u00e9 muito diferente da pr\u00e1tica. E que as mesmas estrat\u00e9gias criadas para ajudar crian\u00e7as podem, em vez disso, apavor\u00e1-las mais ainda.<\/p>\n\n\n\n Longe de uma voz amiga o Sr. Ida, aos olhos da protagonista, est\u00e1 mais pr\u00f3ximo de um vil\u00e3o. \u201cSempre que o Sr. Ida aparecia, Kokoro ficava incrivelmente ansiosa\u201d Tsujimura escreve. \u201cEla come\u00e7ava a suar, sentindo como se ela estivesse prestes a sufocar\u201d.<\/p>\n\n\n\n O professor constrange Kokoro a fazer as pazes com Sanada, argumentando que tudo n\u00e3o passa de um mau-entendido. Nas sua opini\u00e3o, a invas\u00e3o domiciliar que tanto aterrorizou a protagonista foi uma simples \u2018discuss\u00e3o\u2019.<\/p>\n\n\n\n H\u00e1 uma sugest\u00e3o \u2013 presumida por Kokoro, \u00e9 verdade \u2013 de que Sr. Ida caiu no encanto de Sanada, tal qual todas as outras as meninas da sala. Esse favoritismo ganha toques sinistros porque Ida \u00e9 descrito como \u201cum jovem\u201d que sorri quando Sanada pergunta se tem namorada.<\/p>\n\n\n\n Os professors estavam sempre do lado de estudantes como Miori Sanada, que se destacavam. Aqueles que falavam com confian\u00e7a durante a aula, que brincavam com seus amigos no intervalo, os estudantes normais e cheios de energia. Ela desesperadamente queria contar a ele o que elas haviam feito, e v\u00ea-lo estupefato, mas ela tinha certeza de que mesmo depois que ele escutasse a hist\u00f3ria completa, ele ainda ficaria do lado delas. Na verdade, ela sabia disso.<\/em><\/p><\/blockquote>\n\n\n\n Para aqueles que leram a Voz do Sil\u00eancio<\/a>,<\/em> em que um professor faz vista grossa ao bullying <\/em>de seus alunos, esse relato n\u00e3o tem nada de novo. Tarjan<\/a> acrescenta ainda que a proibi\u00e7\u00e3o de medidas duras de puni\u00e7\u00e3o escolar levam muitos docentes ao extremo oposto, tornando-os relutantes em antagonizar seus alunos.<\/p>\n\n\n\n Mas, segundo o pesquisador, a principal causa do futoukou <\/em>\u00e9 um problema muito mais s\u00e9rio: uma disciplina escolar estrita e totalit\u00e1ria, que governa a vida das crian\u00e7as dentro e fora da escola.<\/p>\n\n\n\n Uma ideologia, em outras palavras, que reduz indiv\u00edduos a estudantes.<\/strong><\/p>\n\n\n\n We don\u2019t need no education<\/strong><\/p>\n\n\n\n No fundo, o problema de Kokoro e seus amigos atrav\u00e9s do espelho n\u00e3o s\u00e3o as viol\u00eancias que sofrem na escola. Ele vem, sim, da incapacidade de se enxergar como qualquer coisa al\u00e9m de um membro de sua escola.<\/p>\n\n\n\n Estar matriculado no col\u00e9gio Yushikina No. 5, como o lugar \u00e9 chamado, \u00e9 toda a sua identidade. Eles s\u00e3o<\/strong> a escola. De onde que, quando esta mesma escola se prova um inferno, troc\u00e1-la por outra n\u00e3o \u00e9 uma op\u00e7\u00e3o. A alternativa ao bullying <\/em>e ao sofrimento \u00e9 deixar de existir.<\/strong><\/p>\n\n\n\n Tojo-san olhou para Kokoro. \u2018\u00c9 apenas escola, no final das contas\u2019.<\/em><\/p> \u2018Apenas escola?\u2019<\/em><\/p> \u2018Sim.\u2019<\/em><\/p> A frase rodopiou na sua mente. Ela nunca, de modo algum, havia pensado naquilo daquela maneira.<\/em><\/p> A escola era tudo para ela, e tanto ir quanto n\u00e3o ir tinha sido excruciante. Ela n\u00e3o podia consider\u00e1-la <\/em>apenas escola.<\/p><\/blockquote>\n\n\n\n Ler Kagaki no Kajo <\/em>como um f\u00e3 de animes \u00e9 uma experi\u00eancia que provoca ang\u00fastia, quando n\u00e3o uma pontada de culpa. \u00c9 impressionante o quanto a m\u00eddia serve de vitrine para essa concep\u00e7\u00e3o t\u00f3xica do valor do ser humano.<\/p>\n\n\n\n A escola, nessas s\u00e9ries, n\u00e3o \u00e9 apenas o espa\u00e7o que crian\u00e7as habitam. \u00c9 o alfa e o \u00f4mega de sua exist\u00eancia.<\/p>\n\n\n\n Poucos animes refletem isso de forma mais caricata que Angel Beats, <\/em>onde o pr\u00f3prio al\u00e9m-vida \u00e9 representado por uma escola. Nem a morte \u00e9 o suficiente para libertar os alunos de seu fardo como estudantes \u2013 e a \u201csalva\u00e7\u00e3o\u201d s\u00f3 \u00e9 obtida por meio da formatura.<\/p>\n\n\n\n Pensar nisso nesses termos nos faz reavaliar os animes e mang\u00e1s em que isso n\u00e3o <\/strong>acontece, da misantropia de um Flores do Mal <\/em>\u00e0 sexualidade fora de controle de um A Garota da Praia<\/a>; <\/em>da fuga f\u00edsica, via trem, dos jovens de The Gods Lie<\/a> <\/em>\u00e0 fuga mental de uma Haruhi Suzumiya.<\/p>\n\n\n\n As personagens de Tsujimura s\u00e3o rebeldes menos apaixonados, mas seu livro \u00e9 mais radical que qualquer uma dessas obras. Radical porque escancara o castelo solit\u00e1rio em que se refugiam essas crian\u00e7as – e n\u00e3o tem medo de apontar onde os adultos erraram para que elas se vissem sob cerco.<\/p>\n\n\n\n \u00c9 uma obra escrita para mudar o mundo. Ou, pelo menos, for\u00e7\u00e1-lo a olhar para aqueles que escapam por suas frestas.<\/p>\n\n\n\n Considerando seu sucesso editorial, d\u00e1 para dizer que foi uma miss\u00e3o cumprida.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" Kagami no Kojo ( The Lonely Castle in the Mirror na sua edi\u00e7\u00e3o em ingl\u00eas ) \u00e9 um obra enganosamente simples. \u00c9 um romance sobre uma crian\u00e7a seduzida a cruzar um portal a um mundo fant\u00e1stico. 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