Senti que o entrevistador tinha lido minha mente. Eu sabia que Si\u00fal a R\u00fan<\/em> ( \u201cAnde, meu amor\u201d), \u00e9 uma m\u00fasica tradicional irlandesa. Mesmo ap\u00f3s ler oito volumes de seu mang\u00e1, por\u00e9m, n\u00e3o havia conseguido captar a conex\u00e3o.<\/p>\n Ser\u00e1 que a can\u00e7\u00e3o apareceria futuramente em algum momento de cl\u00edmax? Ser\u00e1 que o universo da hist\u00f3ria fict\u00edcio seria cindido por uma guerra, como aquela a que seus versos se referem?<\/p>\n A resposta de Nagabe foi t\u00e3o g\u00e9lida quanto um banho de mar na Irlanda durante uma tarde de chuva:<\/p>\n \u201cEu n\u00e3o conhecia nada dessa m\u00fasica […]. Foi meu respons\u00e1vel editorial que, um dia, me trouxe um CD me dizendo \u201cEscute bem essa can\u00e7\u00e3o, eu acho que a atmosfera corresponde ao seu mang\u00e1. Eu a escutei e achei que ela tinha uma linha mel\u00f3dica triste, mas ao mesmo tempo colorida de esperan\u00e7a, que ia perfeitamente com a atmosfera que eu gostaria de criar em \u201cA Menina do Outro Lado\u201d.<\/p><\/blockquote>\n Verdade seja dita, saber que Nagabe escolheu seu t\u00edtulo apenas porque soava bem n\u00e3o me impressona tanto assim. Rola na internet o rumor – talvez ap\u00f3crifo- de que Hideaki Anno teria escolhido o\u00a0 nome \u201cEvangelion\u201d porque a palavra soava dif\u00edcil. Miyazaki confessou que puxou sua Nausicaa de um dicion\u00e1rio de mitologia (embora, anos depois, tenha lido de fato a Odisseia).<\/p>\n N\u00e3o h\u00e1 nada errado em se inspirar em uma m\u00fasica por conta da vibe. Ainda mais em uma can\u00e7\u00e3o que tem alguma penetra\u00e7\u00e3o no Jap\u00e3o, tendo j\u00e1 sido gravada por int\u00e9rpretes locais.<\/p>\n \u00c1lbum da cantora KOKIA, com faixas em irland\u00eas, inclusive “Si\u00fal a R\u00fan”.<\/p><\/div>\n O que me chamou a aten\u00e7\u00e3o \u00e9 que esse est\u00e1 longe de ser um incidente isolado. Para cada Fate\/<\/em> ou Durarara!<\/em> que aborda diretamente a cultura ou mitologia irlandesa, h\u00e1 um punhado de animes e mang\u00e1 que parece se referir \u00e0 Ilha Esmeralda sem uma raz\u00e3o muito espec\u00edfica.<\/p>\n H\u00e1 um motivo para \u2018Legend of Galactic Heroes\u2019 possuir uma nave chamada Mannanan Mac Lir<\/em><\/a>? Ou \u2018Last Exile\u2019 retratar uma nau batizada de \u2018Clao\u00edmh Solais<\/em>\u2019<\/a>?<\/p>\n O que h\u00e1 na cultura irlandesa que atrai de tal forma os animes?<\/p>\n Para responder a essa pergunta, \u00e9 preciso voltar no tempo.<\/p>\n <\/p>\n Seja qual for esse feiti\u00e7o que une as duas culturas, els n\u00e3o \u00e9 novo. J\u00e1 no final do s\u00e9culo XIX, um escritor criado em Dublin largou tudo o que tinha para construir uma vida em terras nip\u00f4nicas.<\/p>\n Seu nome era Patrick Lafcadio Hearn<\/a>, e ele se tornou o primeiro ocidental a fazer fama escrevendo sobre o folclore e as tradi\u00e7\u00f5es japonesas. Sua obra mais conhecida, Kwaidan<\/em>, \u00e9 um comp\u00eandio de hist\u00f3rias de youkai, <\/em>criaturas fant\u00e1sticas \u2013 e muitas vezes assustadoras \u2013 da mitologia nip\u00f4nica.<\/p>\n Primeira edi\u00e7\u00e3o de “Kwaidan”, obra mais conhecida de Hearn<\/p><\/div>\n Hearn escrevia sobre temas japoneses, mas seu interesse em fantasmas e assobra\u00e7\u00f5es carregavam um toque da Dublin em que viveu. O escritor viveu nos anos da Renascen\u00e7a Liter\u00e1ria Irlandesa<\/a>, um importante movimento que repaginou as lendas e mitos ga\u00e9licos \u00e0s sensibilidades do final do s\u00e9culo XIX.<\/p>\n Em uma carta ao poeta e dramaturgo W.B. Yeats, um dos maiores expoentes do movimento, ele confessou<\/a> ter sido influenciado por contos de fada narrados por sua bab\u00e1 irlandesa.<\/p>\n Lafcadio Hearn (tamb\u00e9m conhecido como Koizumi Yakumo) e sua esposa, Koizumi Setsuko<\/p><\/div>\n Hearn teve alguma influ\u00eancia na cena cultura japonesa. Um de seus maiores f\u00e3s foi Okuma Shigenobu<\/a>, fundador da Universidade de Waseda, que o convidou para lecionar l\u00e1.<\/p>\n Seu verdadeiro impacto, por\u00e9m, aconteceu no pr\u00f3prio Ocidente. Hearn estava na posi\u00e7\u00e3o privilegiada de ser um dos poucos ocidentais escrevendo em ingl\u00eas sobre um Jap\u00e3o, em uma \u00e9poca em que o interesse pelo pa\u00eds estava nas alturas.<\/p>\n Em grande parte, isso se deveu \u00e0 Exposi\u00e7\u00e3o Universal de 1900, de que o pa\u00eds participou com seu pr\u00f3prio pavilh\u00e3o. Todos os pa\u00edses da Europa queriam saber mais sobre essa na\u00e7\u00e3o misteriosa e sua cultura diferente.<\/p>\n Pavilh\u00e3o japon\u00eas na Exposi\u00e7\u00e3o Universal de 1900, em Paris<\/p><\/div>\n A Irlanda, em particular, levou o fasc\u00ednio a outro patamar. Yeats, conhecido de Hearn, ficou de tal forma fascinado com o teatro noh que decidiu escrever sua pr\u00f3pria pe\u00e7a em estilo japon\u00eas, At the Hawk\u2019s Well. <\/em><\/a><\/p>\n A obra passou no crivo dos pr\u00f3prios japoneses, que a adaptaram a sua l\u00edngua<\/a> duas vezes, em 1949 e 1967. Hoje, ela faz parte do repert\u00f3rio tradicional do teatro noh.<\/p>\n Montagem da pe\u00e7a Takahime<\/a>, “At the Hawk’s Well”, co-organizada pelo ator noh Gensho Umekawa e o grupo musical irland\u00eas An\u00fana.<\/p><\/div>\n Mas ser\u00e1 mesmo que \u00e9 da\u00ed que vem a fascina\u00e7\u00e3o com a Irlanda no dias de hoje?<\/p>\n Sim, Hearn n\u00e3o passou batido aos holofotes da cultura pop. Um de seus contos foi adaptado \u00e0s telas<\/a> nos anos 1980. O mangak\u00e1 Eiji Ohtsuka transformou sua vida em uma s\u00e9rie chamada Yakumo Hyakkai (em refer\u00eancia a Yakumo Koizumi, o nome que adotou ao se naturalizar japon\u00eas). Touhou Project<\/em> batizou duas de suas personagens<\/a> em sua homenagem.<\/p>\n Capa do manga Yakumo Hyakkai<\/p><\/div>\n Mas esses exemplos s\u00e3o gotas d\u2019\u00e1gua no oceano de C\u00fachullains, Diarmuid Ua Duibhnes e Cliffs of Mohers<\/a> na cultura pop. E nada disso parece ter muito a ver com Hearn.<\/p>\n O escritor foi uma sensa\u00e7\u00e3o no Jap\u00e3o de sua \u00e9poca. Por\u00e9m, como lembra Rie Kido Askew<\/a>, seu apelo sempre foi mais \u201ccult\u201d que mainstream. Por escrever em ingl\u00eas, suas obras ficavam restritas aos japoneses que dominavam a l\u00edngua estrangeira.<\/p>\n Ademais, o \u201cfator novidade\u201d que o tornou t\u00e3o popular no ocidente n\u00e3o existia no circuitos nacionais. Afinal de contas, n\u00e3o havia falta de escritores japoneses escrevendo \u2013 em japon\u00eas \u2013 sobre sua pr\u00f3pria cultura.<\/p>\n Se n\u00e3o fosse bastante, Hearn pode ter sido influenciado por hist\u00f3rias de fadas e deuses irlandeses, mas ele pouco fez para tornar esses mitos mais conhecidos no pa\u00eds em que escolheu morar.<\/p>\n De fato, por mais que olhamos as refer\u00eancias \u00e0 Irlanda nos animes, mais parece que elas est\u00e3o l\u00e1 justamente por serem obscuras.<\/strong><\/p>\n Segundo Rika Muranaka<\/a>, compositora de Metal Gear Solid, <\/em>a faixa The Best is Yet to Come <\/em>foi cantada em irland\u00eas porque Hideo Kojima disse que \u201cn\u00e3o queria ouvir letra em ingl\u00eas\u201d, nem em nenhuma outra l\u00edngua que ele reconhecesse.<\/p>\n Yoko Taro, criador da s\u00e9rie Nier, <\/em>deu instru\u00e7\u00f5es parecidas<\/a> aos compositores Keichi Okabe e Emi Evans. \u201c[T]er letras que voc\u00ea reconhece e entende pode distrai-lo do gameplay\u201d, ele justifica. O resultado foram m\u00fasicas cantadas em l\u00ednguas inventadas \u2013 uma delas baseadas no ga\u00e9lico escoc\u00eas.<\/p>\n Em outras palavras, a l\u00edngua irlandesa \u00e9 conveniente porque n\u00e3o significa nada<\/strong>. Ou melhor, ela passa uma vibe gen\u00e9rica de \u201cexotismo\u201d<\/strong> capaz de intrigar at\u00e9 mesmo os japoneses mais viajados.<\/p>\n Ironicamente, \u00e9 exatamente como muitas produ\u00e7\u00f5es ocidentais lidam com a cultura japonesa de uma maneira cotidiana. Se obras do nosso hemisf\u00e9rio usam samurais, geishas e flores de cerejeira para carimbar uma personagem como \u201cestrangeira\u201d, animes e games nip\u00f4nicos fazem o mesmo com os T\u00faatha D\u00e9 D\u00e1nnan <\/em><\/a>e viaturas da Garda Sioch\u00e1na<\/a>.<\/p>\n Fractale<\/p><\/div>\n Mas isso tamb\u00e9m n\u00e3o explica tudo. Por que a Irlanda e n\u00e3o qualquer outro lugar da Europa \u2013 ou do Ocidente como um todo?<\/p>\n Talvez, porque Jap\u00e3o e Irlanda tenham mais em comum do que salta aos olhos \u00e0 primeira vista. E n\u00e3o falo apenas de serem cercados pelo mar.<\/p>\n A Irlanda \u00e9 um pa\u00eds min\u00fasculo nos confins da Europa \u2013 at\u00e9 recentemente, paup\u00e9rrimo para os padr\u00f5es do mundo desenvolvido. Por\u00e9m, ela tem uma vantagem gigantesca sobre qualquer um de seus vizinhos: h\u00e1 irlandeses por toda parte.<\/strong><\/p>\n O censo dos Estados Unidos<\/a> estima que quase um em cada dez<\/b>\u00a0americanos<\/strong> tenham ascend\u00eancia irlandesa, incluindo presidentes como John Kennedy, Barack Obama e Joe Biden. O primeiro ministro da Austr\u00e1lia declarou hoje<\/a> que um ter\u00e7o do pa\u00eds t\u00eam ra\u00edzes irlandesas. Isto sem contar imigrantes em pa\u00edses como Canad\u00e1, Chile, \u00c1frica do Sul e muitos outros.<\/p>\n Essa comunidade age como um \u201cmegafone\u201d global para a cultura, l\u00edngua e folclore do pa\u00eds. Al\u00e9m disso, gera um imenso mercado consumidor para as obras vindas da ilha, sejam os livros da Sally Rooney<\/a> ou filmes do Cartoon Saloon<\/a>.<\/p>\n E n\u00e3o falo apenas de gente com ascend\u00eancia irlandesa, mas pessoas sem nenhum v\u00ednculo com a ilha que decidem provar uma Guiness ou arriscar uma c\u00fapla focal<\/a> <\/em>depois de participarem de uma festa de S\u00e3o Patr\u00edcio.<\/p>\n Tal como, aqui no Brasil, muita gente se apaixona pelo Jap\u00e3o porque cresceu frequentando a feirinha da Liberdade ou visitando o Kinkaku-Ji do Brasil.<\/p>\n Ambos os pa\u00edses t\u00eam de sobra o que cientistas pol\u00edticos chamam de soft power: <\/em>a capacidade de projetar sua influ\u00eancia n\u00e3o disparando balas, mas espalhando cultura. No caso da Irlanda, esse \u00e9 um poder que chegou at\u00e9 \u00e0 realeza japonesa.<\/strong><\/p>\n Segundo o jornal Irish Times<\/a>, a ex-imperatriz Michiko fala um pouco de irland\u00eas, toca harpa e era amiga do poeta S\u00e9amus Heaney.<\/a> Uma de suas filhas, a princesa Mako, fez parte de seus estudos no University College Dublin.<\/p>\n Se nada mais, as aristocratas est\u00e3o afinadas com o interesse de seus s\u00faditos. Organizado pela primeira vez em 1992, a Festa de S\u00e3o Patr\u00edcio j\u00e1 \u00e9 um evento nacional no Jap\u00e3o. Em 2019, nada menos que 15 cidades organizavam paradas \u2013 em T\u00f3quio, 130 mil pessoas tomaram as ruas<\/a>.<\/p>\n Parada do dia de S\u00e3o Patr\u00edcio em T\u00f3quio, 2015. Foto de Yoshiaki Miura<\/a><\/p><\/div>\n![\"\"](\"https:\/\/i0.wp.com\/www.finisgeekis.com\/wp-content\/uploads\/2021\/03\/20210317-kokia-cd.jpg?resize=600%2C600\")
Do Jap\u00e3o \u00e0 Irlanda…<\/strong><\/h3>\n
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… <\/strong>e da Irlanda ao Jap\u00e3o<\/strong><\/h3>\n
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<\/p>\n![\"\"](\"https:\/\/i0.wp.com\/www.finisgeekis.com\/wp-content\/uploads\/2021\/03\/20210317-garda-fractale.jpg?resize=635%2C356\")
Soft power<\/strong><\/h3>\n
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