H\u00e1 um motivo pelo qual hist\u00f3rias de vingan\u00e7a raramente terminam bem.<\/p>\n
O \u00f3dio n\u00e3o \u00e9 um sentimento passivo. Ele \u00e9 uma arma que corta dos dois lados. Ele cobra de n\u00f3s cada gota de sofrimento que infligimos aos outros \u2013 frequentemente, com juros inimagin\u00e1veis.<\/p>\n
A trag\u00e9dia dessas hist\u00f3rias n\u00e3o est\u00e1 tanto na morte que propele o her\u00f3i \u00e0 a\u00e7\u00e3o, e sim no fato de que nos deixam com uma perda ainda maior: uma vida inutilmente desperdi\u00e7ada honrando uma pessoa que jamais voltar\u00e1.<\/p>\n
My Broken Mariko, <\/em>mang\u00e1 de Waka Hirako, \u00e9 esse tipo de hist\u00f3ria.<\/p>\n <\/p>\n A Mariko do t\u00edtulo \u00e9 uma mulher de 26 anos que comete suic\u00eddio. Sua melhor amiga, Shii, fica a par da morte pelo notici\u00e1rio. H\u00e1 apenas algumas semanas elas haviam sa\u00eddo juntas. Mariko parecia perfeitamente normal.<\/p>\n \u201cNormal\u201d, claro, \u00e9 uma mentira que ambas combinaram em se contar. Mariko foi abusada pelo pai durante toda a inf\u00e2ncia e adolesc\u00eancia. Sua m\u00e3e a abandonou nos bra\u00e7os do marido, culpando-a pelo crime de \u201ct\u00ea-lo seduzido\u201d. Adulta, caiu nos bra\u00e7os do primeiro homem que lhe abriu um sorriso: um cafajeste que a espancava regularmente.<\/p>\n Shii entende que sua morte \u00e9 um \u2018mist\u00e9rio\u2019 apenas porque ela se recusava a enxergar a verdade escancarada diante de seus olhos. Uma vida de abusos e sil\u00eancios havia transformado Mariko em uma bomba rel\u00f3gio que finalmente explodira. E ela, a amiga que falhara em proteg\u00ea-la, em uma c\u00famplice da trag\u00e9dia.<\/p>\n <\/p>\n Dizer que My Broken Mariko<\/em> \u00e9 um soco no est\u00f4mago n\u00e3o chega perto de fazer jus ao seu impacto. Com uma hist\u00f3ria enxugada aos detalhes essenciais e um tra\u00e7o que salienta o descompasso emocional da protagonista, ele corta mais fundo que a exuber\u00e2ncia visual de Happy Sugar Life <\/em><\/a>ou mesmo a ironia de um Inio Asano<\/a>.<\/p>\n Hirako disse em entrevista<\/a> que baseou a hist\u00f3ria em sua m\u00e3e, uma sobrevivente de abuso dom\u00e9stico. \u201cEm vez de fazer pesquisa adicional\u201d ela disse ao ANN \u201ceu desenhei a hist\u00f3ria enquanto revivia os sentimentos e emo\u00e7\u00f5es que j\u00e1 estavam no meu cora\u00e7\u00e3o\u201d.<\/p>\n A inspira\u00e7\u00e3o salta aos olhos a cada p\u00e1gina. Mesmo seus quadros mais absurdos estremecem com o terror inapag\u00e1vel de quem experimentou aquilo de verdade.<\/p>\n <\/p>\n Shii decide que precisa fazer algo, qualquer coisa, <\/strong>para vingar a injusti\u00e7a sofrida pela amiga. Lembrando-se de f\u00e9rias que nunca chegaram a fazer em vida, ela resolve remediar o problema em morte, roubando as cinzas de Mariko e levando-a consigo para uma \u00faltima viagem juntas.<\/p>\n <\/p>\n O que se inicia como uma viagem de luto movida por amizade \u2013 ou, talvez, amor reprimido \u2013 logo sucumbe a um pesadelo. De sapatos perdidos a mochilas roubadas, tudo o que \u00e9 poss\u00edvel dar errado a Shii acontece. Insone e devastada, a protagonista \u00e9 rapidamente corro\u00edda pela inutilidade de seu plano.<\/p>\n Ela sabe que cinzas nenhuma preencher\u00e3o o vazio em seu peito. Ela jamais conseguir\u00e1 se perdoar se n\u00e3o fizer algu\u00e9m pagar pela morte de Mariko.<\/p>\n Mas quem, afinal de contas, seria essa pessoa?<\/p>\n O pai, que a abusou na adolesc\u00eancia?<\/p>\n A m\u00e3e, que a abandonou nas suas garras, imputando a ela a culpa pela viol\u00eancia que sofria?<\/p>\n O namorado que a espancava \u2013 e a quem Mariko insistia em retornar, surra ap\u00f3s surra, a despeito dos aviso de Shii?<\/p>\n Da pr\u00f3pria Shii, por n\u00e3o ter sido capaz o suficiente, \u00a0atenta o suficiente para impedir que a pessoa que amava cometesse suic\u00eddio?<\/p>\n Nas suas noites mal-dormidas, Shii \u00e9 assombrada por mem\u00f3rias de seus anos com Mariko:\u00a0 momentos em que a amiga lhe deu todas as pistas de que sofria, conversas em que implorou por sua ajuda.<\/p>\n A culpa de ter negado tais pedidos d\u00e1 lugar ao desespero de que eles eram inaceit\u00e1veis. <\/strong>Em uma dos flashbacks<\/em> mais chocantes, Mariko amea\u00e7a se matar se Shii arranjasse um namorado.<\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n A cena n\u00e3o \u00e9 uma confiss\u00e3o de amor.\u00a0 Mariko nunca demonstrou interesse em Shii, por mais que ela, entre solu\u00e7os e copos de cerveja, tenha vez ou outra sugirido que aceitaria ser sua parceira.<\/p>\n Mas a ideia de que poderia entregar-se a um terceiro <\/strong>\u2013 de que poderia, enfim, curtir a felicidade de que ela fora privada \u2013 a move a ponto de cortar os pulsos em p\u00fablico.<\/p>\n Estaria Mariko realmente \u00a0pedindo socorro? Ou n\u00e3o seria tudo aquilo uma tentativa de pux\u00e1-la consigo ao abismo? De empurrar a Shii, a \u00fanica pessoa que lhe demonstrou amor, uma culpa que ela sabia n\u00e3o ser sua, mas que n\u00e3o sabia a quem mais entregar?<\/p>\n Shii chega ao auge de sua dor quando contempla ela pr\u00f3pria se matar, movida n\u00e3o por \u00f3dio pr\u00f3prio, mas por rancor \u00e0 pr\u00f3pria Mariko.<\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n A mensagem n\u00e3o seria mais clara se fosse escrita com um estilete em nossa pele. A viol\u00eancia n\u00e3o \u00e9 uma pessoa que possa ser derrotada , <\/strong>um mal que possa ser extirpado com um estalar de dedos. \u00c9 algo que nos corroi aos poucos, de maneiras que sequer enxergamos, at\u00e9 n\u00e3o haver mais diferen\u00e7a entre a ferida inicial e as pequenas rachaduras que se seguem — e, lentamente, nos demolem.<\/p>\n <\/p>\n Uma obra menor se daria por satisfeita largando-nos desamparados nesse po\u00e7o de amargura, apostando na visceralidade de seu material para chocar os leitores. Hirako, por\u00e9m, encara o abismo de frente e se recusa a ceder ao desespero.<\/p>\n E \u00e9 nessa f\u00e9 valente – quase insana – no melhor da natureza humana que My Broken Mariko<\/em> se mostra uma obra-prima.<\/p>\n Surpreendentemente para um mang\u00e1 sobre abuso e suic\u00eddio, My Broken Mariko <\/em>\u00e9 recheado de humor e ironia visual.<\/p>\n Fiel \u00e0 etiqueta japonesa, Shii tira os sapatos antes de entrar na casa dos pais de Mariko. Ao fugir com a urna debaixo dos bra\u00e7os, \u00e9 obrigada a correr descal\u00e7a e pisa em uma barata. Na praia onde pretende espalhar as cinzas da amiga encontra a seguinte placa: \u201cSuic\u00eddio n\u00e3o \u00e9 crime, mas espalhar lixo \u00e9\u201d.<\/p>\n <\/p>\n Em parte, esse humor funciona para avivar o desespero que Shii enfrenta. Como na literatura de Franz Kafka<\/a>, as personagens de Hirako habitam um mundo desalmado que insiste em girar \u00e0 revelia de suas dores.<\/p>\n <\/p>\nUma trag\u00e9dia anunciada<\/h3>\n
O mundo gira, indiferente<\/strong><\/h3>\n