Warning: Use of undefined constant CONCATENATE_SCRIPTS - assumed 'CONCATENATE_SCRIPTS' (this will throw an Error in a future version of PHP) in /home/finisgeekis/www/wp-config.php on line 98

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/rest-api/class-wp-rest-server.php on line 1648

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/rest-api/class-wp-rest-server.php on line 1648

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/rest-api/class-wp-rest-server.php on line 1648

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/rest-api/class-wp-rest-server.php on line 1648

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/rest-api/class-wp-rest-server.php on line 1648

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/rest-api/class-wp-rest-server.php on line 1648

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/rest-api/class-wp-rest-server.php on line 1648

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/rest-api/class-wp-rest-server.php on line 1648
{"id":22035,"date":"2019-10-15T19:13:41","date_gmt":"2019-10-15T22:13:41","guid":{"rendered":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/?p=22035"},"modified":"2019-10-17T12:46:51","modified_gmt":"2019-10-17T15:46:51","slug":"the-secret-commonwealth-e-a-era-da-pos-verdade","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/2019\/10\/15\/the-secret-commonwealth-e-a-era-da-pos-verdade\/","title":{"rendered":"“The Secret Commonwealth” e a era da p\u00f3s-verdade"},"content":{"rendered":"

“P\u00f3s-verdade” \u00e9 o nome que alguns d\u00e3o a uma falta de confian\u00e7a em rela\u00e7\u00e3o ao que \u00e9 verdadeiro – ou mesmo, \u00e0 ideia de que uma \u00fanica “verdade” existe de fato.<\/p>\n

O termo foi eleito a palavra do ano de 2016<\/a> pelo dicion\u00e1rio Oxford da l\u00edngua inglesa.\u00a0A escolha dispensa explica\u00e7\u00f5es. Poucos acontecimentos de mem\u00f3ria recente despertaram tanta aten\u00e7\u00e3o \u00e0s\u00a0fake news<\/em> quanto o referendo do Brexit e a elei\u00e7\u00e3o de Trump (e de todos os populistas que se seguiram).<\/p>\n

Era de se esperar que Philip Pullmann, cr\u00edtico ferrenho do <\/a>Brexit\u00a0<\/em>e\u00a0autor de A B\u00fassola Dourada<\/em>, tivesse uma palavra ou duas a dizer a respeito. A \u201cb\u00fassola\u201d de seu universo fant\u00e1stico, afinal de contas, \u00e9 um dispositivo chamada aleti\u00f4metro \u2013 do grego al\u00e9theia, <\/em>\u201cverdade\u201d- cuja fun\u00e7\u00e3o \u00e9 responder a qualquer pergunta que lhe seja feita.<\/p>\n

H\u00e1, por\u00e9m, sentido num aleti\u00f4metro numa \u00e9poca em que ningu\u00e9m se importa com a verdade? O que uma gera\u00e7\u00e3o que vive na Caverna de Plat\u00e3o de grupos de\u00a0whatsapp\u00a0<\/em>e panelas de Facebook tem a ganhar com uma hist\u00f3ria sobre o conhecimento do bem e do mal?<\/p>\n

\u00c9 o que pergunta seu \u00faltimo livro,\u00a0The Secret Commonwealth<\/em>. O mais angustiante – e, talvez,\u00a0melhor<\/strong>\u00a0– romance a nascer da s\u00e9rie\u00a0Fronteiras do Universo.<\/em><\/p>\n

<\/p>\n

Sinopse<\/strong><\/h3>\n

\"\"<\/p>\n

The Secret Commonwealth\u00a0<\/em>se passa sete anos depois dos eventos de\u00a0A Luneta \u00c2mbar,\u00a0<\/em>\u00faltimo livro da trilogia que introduziu daemons,\u00a0<\/i>Ursos de Armadura e\u00a0Para\u00edso Perdido<\/em> \u00e0 imagina\u00e7\u00e3o de leitores mundo afora. Nossa protagonista \u00e9 novamente Lyra L\u00edngua de Prata (n\u00e9e<\/em> Belacqua), agora uma estudante de vinte anos no col\u00e9gio St. Sophia em Oxford.<\/p>\n

\u00c0queles habituados ao universo de Pullman o cen\u00e1rio do romance soar\u00e1 imediatamente familiar. A morte da Autoridade pouco fez para reduzir o poder do Magist\u00e9rio, que continua a controlar o planeta com sua terr\u00edvel pol\u00edcia pol\u00edtica, o Tribunal Consistorial de Disciplina (TCD).\u00a0 Em sua capital em Geneva, um brilhante articulador chamado Marcel Delamere tenta reconstruir com l\u00e1bia pol\u00edtica o que Metatron e seus anjos conquistaram com for\u00e7a bruta. Seu objetivo \u00e9 dominar a produ\u00e7\u00e3o de um misterioso \u00f3leo de rosas que permitiria \u00e0s pessoas enxergar o P\u00f3, manifesta\u00e7\u00e3o do Pecado Original que o Magist\u00e9rio tem como miss\u00e3o destruir.<\/p>\n

Lyra, por\u00e9m, tem problemas mais imediatos. Desde que se separaram ap\u00f3s sua visita ao mundo dos mortos, ela e seu\u00a0daemon<\/em> Pantalaimon parecem estar perdendo a sintonia. O fasc\u00ednio de Lyra por autores extremistas e o estresse de uma emerg\u00eancia pessoal levam o\u00a0daemon\u00a0<\/em>a abandonar sua cara-metade. Desesperada por ser ver “incompleta” – e envolvida de gaiato nas tramoias do Magist\u00e9rio – Lyra decide viajar \u00e0 \u00c1sia Central em busca de uma cidade aonde, dizem as lendas,\u00a0daemons\u00a0<\/em>sem donos v\u00e3o para viver.<\/p>\n

Felizmente, Lyra tem pelo menos um aliado. Malcolm Polstead, protagonista de\u00a0La Belle Sauvage<\/a>,\u00a0<\/em>\u00e9 agora um historiador de Oxford e membro da Oakley Street, organiza\u00e7\u00e3o clandestina que combate a opress\u00e3o do Magist\u00e9rio. Ao saber que sua protegida corre perigo, ele segue em seu encal\u00e7o na esperan\u00e7a de encontr\u00e1-la antes do TCD.<\/p>\n

Com 637 p\u00e1ginas, The Secret Commonwealth\u00a0<\/i>\u00e9 um livro mais longo que sua\u00a0prequel<\/em>\u00a0La Belle Sauvage<\/em>,\u00a0mas tamb\u00e9m mais \u00e1gil, em enredo tanto quanto em ideias. Escrito para aqueles que cresceram lendo As Fronteiras no Universo, The Secret Commonwealth <\/em>\u00e9 definitivamente um livro para adultos, n\u00e3o s\u00f3 em conte\u00fado \u2013 que inclui viol\u00eancia gr\u00e1fica e uma tentativa de estupro coletivo \u2013 quanto na maturidade de sua discuss\u00e3o moral.<\/p>\n

Se A B\u00fassola Dourada <\/em>e suas sequ\u00eancias foram uma cr\u00edtica apaixonada contra a religi\u00e3o organizada, The Secret Commonwealth <\/em>\u00e9 uma reflex\u00e3o cuidadosa \u2013 e temerosa \u2013 sobre as cabe\u00e7as de hidra que brotam quando a f\u00e9 na raz\u00e3o \u00e9 levada longe demais.<\/p>\n

Os \u00f3rf\u00e3os da Autoridade<\/strong><\/h3>\n

\"\"<\/p>\n

Em The Secret Commonwealth<\/em>, essa f\u00e9 \u00e9 representada por dois livros que se tornam populares ap\u00f3s os eventos de A Luneta \u00c2mbar<\/em>. \u00c9 ao l\u00ea-los – e ficar obcecada com seu conte\u00fado – que Lyra cria o primeiro atrito que levar\u00e1 seu daemon\u00a0<\/em>a abandon\u00e1-la.<\/p>\n

O primeiro \u00e9 Os Hipercor\u00e1smios, <\/em>romance\u00a0best-seller\u00a0<\/em>sobre\u00a0um jovem que desejava matar Deus:<\/p>\n

\u00a0\u201cComo tantas outras pessoas, Lyra fora enfeiti\u00e7ada, hipnotizada pela for\u00e7a da hist\u00f3ria e sentiu a cabe\u00e7a zunir com as marteladas da den\u00fancia do protagonista contra tudo e todos que ficavam no caminho da raz\u00e3o pura. At\u00e9 mesmo sua miss\u00e3o para encontrar Deus e mat\u00e1-lo era expressada em termos da mais feroz racionalidade: era irracional que tal ser pudesse existir, e racional elimin\u00e1-lo. De linguagem figurativa, de met\u00e1fora ou compara\u00e7\u00e3o n\u00e3o havia qualquer tra\u00e7o. No final do romance, enquanto o her\u00f3i olhava das montanhas o nascer do sol, que nas m\u00e3os de outro escritor poderiam representar a aurora de uma nova era das luzes, livre de supersti\u00e7\u00e3o e escurid\u00e3o, o narrador desviava de simbolismos daquela esp\u00e9cie com repulsa. A \u00faltima frase dizia \u201cN\u00e3o era nada mais do que era\u201d.<\/p>\n

Aquela frase era uma esp\u00e9cie de pedra angular do pensamento progressista entre os pares de Lyra. Ela havia se tornado o termo da moda para ridicularizar qualquer rea\u00e7\u00e3o emocional excessiva ou qualquer tentativa de encontrar sentido em alguma coisa que acontecera ou qualquer argumento que n\u00e3o podia ser justificado com a raz\u00e3o.<\/p><\/blockquote>\n

Com mais de 900 p\u00e1ginas e \u201cuma rigidez intransigente de estilo\u201d, Os Hipercor\u00e1smios<\/em> \u00e9 uma refer\u00eancia \u00f3bvia a\u00a0A Revolta de Atlas<\/a>, <\/em>obra mais conhecida da escritora\u00a0Ayn Rand<\/a>. Criadora de uma filosofia conhecida como objetivismo<\/strong><\/a>, Rand foi uma defensora apaixonada das liberdades individuais, da busca pelo interesse pr\u00f3prio e da rejei\u00e7\u00e3o de tudo o que fosse emocional ou subjetivo. <\/strong><\/p>\n

Na pol\u00edtica, seu pensamento inspirou ideologias favor\u00e1veis \u00e0 meritocracia e ao minarquismo<\/a>, e contr\u00e1rias \u00e0 caridade e \u00e0 assist\u00eancia social.<\/p>\n

“\u00c9 uma hist\u00f3ria engajante que encoraja pessoas a n\u00e3o se sentirem mal por serem ego\u00edstas\u201d diz Malcolm Polstead, em uma descri\u00e7\u00e3o que poderia estampar a orelha de\u00a0A Revolta de Atlas<\/em>. N\u00e3o \u00e9 uma coincid\u00eancia que o autor de Os Hopercor\u00e1smios<\/em>\u00a0se chame Gottfried Brande, <\/strong>refer\u00eancia tanto \u00e0 Rand<\/strong> quanto ao seu principal disc\u00edpulo (e eventual amante), Nathaniel Branden<\/strong>.<\/p>\n

\"\"

Ayn Rand (primeira \u00e0 direita) e Nathaniel Branden (segundo \u00e0 direita) em 1953. Fonte: New York Times<\/a><\/p><\/div>\n

O oponente intelectual de Brande \u00e9 Simon Talbot, um pensador que acredita que a realidade objetiva \u00e9 uma ilus\u00e3o: <\/strong><\/p>\n

Simon Talbot era um fil\u00f3sofo de Oxford cujo livro mais recente era muito discutido na universidade. Enquanto que Os Hipercor\u00e1smios<\/em> era um sucesso popular desmerecido como tolice por cr\u00edticos e lido sobretudo pelos mais jovens, O Enganador Constante<\/em> era um favorito entre experts liter\u00e1rios, que elogiavam a eleg\u00e2ncia de estilo e a perspic\u00e1cia jocosa. Talbot era um c\u00e9tico radical, a quem verdade e at\u00e9 a realidade eram, como o arco-\u00edris, epifen\u00f4menos sem nenhum sentido ulterior. No charme prateado de sua prosa, tudo o que era s\u00f3lido flu\u00eda e corria e arrebentava como merc\u00fario derramando de um bar\u00f4metro.<\/p><\/blockquote>\n

Se Brande \u00e9 uma refer\u00eancia a Rand, Talbot \u00e9 uma caricatura do p\u00f3s-modernismo<\/a>, <\/strong>nome gen\u00e9rico para uma s\u00e9rie de correntes que ganharam popularidade a partir dos anos 1960. O que t\u00eam em comum \u00e9 a cren\u00e7a de que o mundo exterior est\u00e1 fora do nosso alcance, pois ele\u00a0\u00e9 filtrado pelos nossos sentimentos, que s\u00e3o parciais e fal\u00edveis.<\/p>\n

Todos n\u00f3s temos prefer\u00eancias, valores e preconceitos que afetam como enxergamos o mundo. Mais do que isso, todos n\u00f3s dependemos da linguagem para nos expressar e comunicar com os outros, e a linguagem varia de povo para povo, quando n\u00e3o de pessoa para pessoa. A “verdade” de um cientista alem\u00e3o do s\u00e9culo XXI n\u00e3o \u00e9 a mesma “verdade” de um pastor de ovelhas na Mong\u00f3lia do XIX. E todas s\u00e3o igualmente v\u00e1lidas.<\/p>\n

Se Rand e seus sucessores deram lenha ao realismo mais bruto, o p\u00f3s-modernismo, na pol\u00edtica, inspirou ideologias focadas na cr\u00edtica \u00e0s\u00a0constru\u00e7\u00f5es sociais, na hostilidade a no\u00e7\u00f5es como “ess\u00eancia” ou “natureza” humana e no controle da linguagem para fins pol\u00edticos.<\/p>\n

Como Lyra eventualmente descobre, essas duas correntes partem de pontos diferentes, mas chegam\u00a0ao mesm\u00edssimo lugar:<\/strong> um ceticismo que\u00a0reduz tudo o que pode \u00e0 raz\u00e3o\u00a0<\/strong>e nega aquilo que n\u00e3o \u00e9 capaz de reduzir. Mesmo que estas coisaa sejam o pr\u00f3prio Pantalaimon, sem o qual ela n\u00e3o \u00e9 capaz de viver.<\/p>\n

Lyra se flagrou continuando a ler, embora sua vontade fosse negar cada palavra. Talbot tinha uma explica\u00e7\u00e3o para tudo. O fato de que os daemons<\/em> das crian\u00e7as pareciam mudar de forma, por exemplo, era n\u00e3o mais que uma representa\u00e7\u00e3o da grande maleabilidade da mente infantil e juvenil. Que eles eram geralmente, mas nem sempre, opostos em sexo a sua pessoa era meramente uma proje\u00e7\u00e3o inconsciente do senso de incompletude sentido pelo sujeito humano: ansiando pelo seu inverso, a mente encarnava o papel complementar de g\u00eanero em uma criatura sexualmente n\u00e3o amea\u00e7adora, que poderia cumprir tal papel sem evocar desejo sexual ou inveja. A inabilidade do daemon<\/em> de se afastar da pessoa era simplesmente a express\u00e3o psicol\u00f3gica de um sentimento de unidade e integridade. E da\u00ed por diante.<\/p><\/blockquote>\n

Pullman reconhece que o realismo sem freios e o relativismo absoluto, por mais que seus dogmas sejam opostos \u2013 e as ideologias que inspiraram, inimigas \u2013 s\u00e3o frutos de uma mesma \u00e1rvore envenenada.<\/p>\n

Um acredita que n\u00e3o existem vieses, ent\u00e3o propaga preconceitos que toma por verdades absolutas. Outro, que tudo s\u00e3o vieses e, justamente por isso, n\u00e3o devemos nos preocupar em separar a verdade do preconceito.<\/p>\n

Um nutre um fasc\u00ednio autorit\u00e1rio com pessoas excepcionais que est\u00e3o, segundo eles, destinados a reger o mundo. Outro tenta coloc\u00e1-lo em pr\u00e1tica com sectarismo acad\u00eamico, jarg\u00e3o incompreens\u00edvel e uma cultura de cancelamento contra todos que os ameacem.<\/p>\n

Um “pensa que pode fazer a verdade desaparecer chacoalhando seus paradoxos por a\u00ed”, diz Pantalaimon a Lyra durante sua briga. Outro “pensa que pode fazer [o mesmo]\u00a0 com uma nega\u00e7\u00e3o obstinada”:<\/p>\n

Ela colocou O Enganador Constante<\/em> de lado e pensou no outro livro que havia deixado Pan nervoso, o romance Os Hipercor\u00e1smios<\/em> de Gottfried Brande. Pela primeira vez ela se deu conta que os dois escritores tinham mais em comum do que ela imaginara. A famosa frase que terminava Os Hipercor\u00e1smios<\/em> \u2013 \u201cN\u00e3o era nada mais do que era\u201d \u2013 era constru\u00edda exatamente como uma frase de Talbot. Por que ela n\u00e3o percebera isto antes?<\/p><\/blockquote>\n

No mundo de The Secret Commonwealth, <\/em>o sucesso desses dois pensadores n\u00e3o \u00e9 apenas um fen\u00f4meno editorial. Tudo se trata de um plano do Magist\u00e9rio para eliminar sua oposi\u00e7\u00e3o, destruindo aquilo que ela tem de mais poderoso: o discernimento.<\/p>\n

Nas palavras de Marcel Delamare, aspirante a papa (e ditador do mundo):<\/p>\n

Revelar a verdade da forma como eu descrevi n\u00e3o funcionaria. Existiam muitos h\u00e1bitos, modos de pensar, institui\u00e7\u00f5es comprometidos com a maneira como as coisas sempre foram. A verdade seria varrida de imediato. Em vez disso, n\u00f3s dever\u00edamos delicada e sutilmente minar a idea de que verdade e fatos s\u00e3o poss\u00edveis em primeiro lugar. Uma vez que as pessoas se tornarem incr\u00e9dulas da verdade de qualquer coisa, todos os tipos de coisas se abrir\u00e3o para n\u00f3s.<\/p><\/blockquote>\n

Nosso mundo, felizmente, n\u00e3o possui um Magist\u00e9rio. Mas n\u00f3s, tamb\u00e9m, vivemos em uma \u00e9poca de pequenos Delamares, em que relativismos e dogmatismos se alimentam mutuamente. Muitas vezes, como no caso de Lyra, sem que percebamos at\u00e9 ser tarde demais.<\/p>\n

De onde alguns de meus colegas de profiss\u00e3o, historiadores, defenderem que \u201cn\u00e3o h\u00e1 hierarquia de conhecimento\u201d e depois se surpreenderem quando negadores do Holocausto ou dos crimes da Ditadura saem de suas frestas nos confins da web. Como se n\u00e3o fosse \u00f3bvio que ao abrir m\u00e3o dos crit\u00e9rios que diferenciam a boa informa\u00e7\u00e3o da ruim far\u00edamos proliferar absurdos odiosos.<\/p>\n

De onde, tamb\u00e9m, os radicais que nos consideram \u201cpouco objetivos\u201d por conta dos nossos \u201cvieses ideol\u00f3gicos\u201d defenderem, no mesmo f\u00f4lego, o aparelhamento do ensino mediante dogmas religiosos.<\/p>\n

E de onde, fechando o c\u00edrculo, acad\u00eamicos que respondem a essas cr\u00edticas dizendo que \u201cningu\u00e9m \u00e9 objetivo de verdade, pois \u2018objetividade\u2019 n\u00e3o existe\u201d Como se lan\u00e7ar um julgamento destes a militantes que equiparam o Criacionismo ao Darwinismo n\u00e3o fosse o mesmo que derramar gasolina sobre um pr\u00e9dio que j\u00e1 queima.<\/p>\n

Se nada existe de verdade, a \u201cverdade\u201d em si \u00e9 reduzida \u00e0 pol\u00edtica, no seu sentido mais cru. Ela se torna apenas uma ideia qualquer que conseguiu se impor sobre as outras. E que pode, com a ajuda de uma for\u00e7a ainda maior, ser rebaixada a uma mentira.<\/p>\n

Num cen\u00e1rio como esse, ganham apenas os tiranos.<\/p>\n

\"\"

Tropas do Magist\u00e9rio na s\u00e9rie “His Dark Materials” da BBC<\/p><\/div>\n

\u201cDelamare sabia que a filosofia de Talbot mantinha que nada era qualquer coisa, fundamentalmente, mas ele n\u00e3o questionava o que o homem de Oxford dizia\u201d escreve Pullman. \u201cSe a frase ‘idiota \u00fatil’ existisse no mundo deles, teria expressado precisamente sua opini\u00e3o de Talbot.\u201d<\/p>\n

\u201cIdiota \u00fatil\u201d ele pode ser, mas \u00e9 poss\u00edvel fazer diferente? Se tanto o objetivismo quanto o relativismo extremo nos levam \u00e0 p\u00f3s-verdade, para onde devemos nos voltar?<\/p>\n

The Secret Commonwealth\u00a0<\/em>\u00e9 apenas o segundo volume de sua trilogia, e suas conclus\u00f5es, tal como seu enredo, terminam em um\u00a0cliffhanger.\u00a0<\/em>Mesmo assim, ele parece apontar para um solu\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Uma solu\u00e7\u00e3o mais antiga – e arcana – do que poder\u00edamos imaginar a princ\u00edpio.<\/p>\n

O mundo das fadas<\/strong><\/h3>\n
\"\"

A Briga de Oberon e Titania, de Joseph Noel Paton (1846)<\/p><\/div>\n

A resposta vem da boca de \u201cFarder\u201d Coram van Texel, personagem de Pullman que acompanha a jovem Lyra desde os eventos de A B\u00fassola Dourada:<\/em><\/p>\n

\u00a0Voc\u00ea tem de pensar sobre isso do mesmo jeito como se voc\u00ea quisesse ver. Voc\u00ea tem de olhar pra isso de lado. Do canto do seu olho. Ent\u00e3o voc\u00ea tem de pensar sobre isso com o canto da sua mente. Est\u00e1 l\u00e1 e num t\u00e1, os dois ao mesmo tempo. Se voc\u00ea quiser de ver os jacky lanterns<\/em>, o pior jeito de todos \u00e9 ir no p\u00e2ntano com uma lanterna. Voc\u00ea vem com uma maldita luz forte, e todos os\u00a0 will o\u2019 the wykeses<\/em> e os pequeninos brilhantes, eles v\u00e3o pra debaixo d\u2019\u00e1gua. E se voc\u00ea quiser de pensar neles, num faz bem nenhum de fazer lista e classificar e analisar. Voc\u00ea s\u00f3 vai coletar um monte de besteira morta e que n\u00e3o significa nada. O jeito de pensar sobre a Commonwealth<\/em> Secreta \u00e9 com hist\u00f3rias. S\u00f3 hist\u00f3rias funcionam.<\/p><\/blockquote>\n

“A Commonwealth <\/em>Secreta” de que fala Coram\u00a0 \u00e9 um apelido ao mundo das fadas<\/strong>. O nome vem de um tratado escrito por Robert Kirk entre 1691 e 1692, baseado no folclore das\u00a0highlands\u00a0<\/em>escocesas.<\/p>\n

\"\"<\/p>\n

O fato de ter sido escolhido como t\u00edtulo do romance, contudo, deixa claro que \u00e9 muito mais que isso.<\/p>\n

A Commonwealth<\/em>\u00a0de Pullman n\u00e3o \u00e9 apenas o conjunto de elfos, faunos e fadas, mas tamb\u00e9m a curiosidade <\/strong>e a criatividade<\/strong> que nos faz querer imagin\u00e1-los em primeiro lugar. A humildade<\/strong> de saber que nem tudo pode \u2013 ou precisa \u2013 ser explicado.\u00a0 A sabedoria em admitir, como o soci\u00f3logo Andrew Abbott<\/a>, que \u201ca ci\u00eancia \u00e9 uma conversa entre o rigor e a imagina\u00e7\u00e3o\u201d<\/strong>.<\/p>\n

Ou, como coloca Lyra:<\/p>\n

A raz\u00e3o j\u00e1 criou um poema, ou uma sinfonia ou uma pintura? Se a racionalidade n\u00e3o conseguia ver coisas como a Commonwealth<\/em> Secreta era porque a vis\u00e3o da racionalidade era limitada. A Commonwealth<\/em> Secreta est\u00e1 l\u00e1. N\u00f3s n\u00e3o podemos ver com a racionalidade mais do que podemos pesar alguma coisa com um microsc\u00f3pio: \u00e9 o tipo diferente de instrumento. N\u00f3s precisamos imaginar tanto quanto medir.<\/p><\/blockquote>\n

Racionalista t\u00e3o fervoroso quanto \u00e9 um amante do folclore, Pullman n\u00e3o acredita que essas duas tarefas – a imagina\u00e7\u00e3o e a medida – sejam incompat\u00edveis. Como ele explica em um artigo (republicado na colet\u00e2nea\u00a0Daemon Voices<\/em><\/a>):<\/p>\n

Diferentes tipos de hist\u00f3ria esperam<\/em> diferentes tipos de p\u00fablico e certos tipos de atitude daquele p\u00fablico. Eu n\u00e3o quero dizer uma rela\u00e7\u00e3o de gosto ou respeito, embora todo contador de hist\u00f3rias goste destas; o que eu quero dizer \u00e9 que h\u00e1 alguma coisa na circunst\u00e2ncia do contar que diz “Esta hist\u00f3ria deve ser tomada literalmente” ou “Isto \u00e9 uma met\u00e1fora. Uma coisa significa outra coisa.”<\/p>\n

(…)<\/p>\n[John] Milton[, em\u00a0Para\u00edso Perdido,<\/em>]\u00a0retrata o anjo Rafael falando com Ad\u00e3o e Eva e contando-lhes o que aconteceu antes deles pr\u00f3prios terem sido criados e o faz em palavras que celebram a sensual beleza f\u00edsica do mundo t\u00e3o vividamente que \u00e9 imposs\u00edvel, para esse ateu, pelo menos, segurar um surto de empatia imaginativa. Eu sei que n\u00e3o \u00e9 literalmente verdade e ainda assim eu consigo apreciar a cena por completo. A maioria de n\u00f3s \u00e9 capaz desta esp\u00e9cie de dupla vis\u00e3o mental, e esta capacidade n\u00e3o deve ter evolu\u00eddo apenas na semana passada. Eu acho que \u00e9 t\u00e3o antiga quanto a linguagem e a pr\u00f3pria humanidade.<\/p><\/blockquote>\n

Brande e seus racionalistas, tal como Talbot e seus relativistas, n\u00e3o possuem essa “dupla vis\u00e3o”. Os primeiros n\u00e3o v\u00eaem valor nesta met\u00e1foras, que rejeitam como baboseiras supersticiosas. Os segundos as l\u00eaem literalmente, chegando \u00e0 conclus\u00e3o de que a ci\u00eancia e a supersti\u00e7\u00e3o est\u00e3o no mesmo patamar.<\/p>\n

\u201cVoc\u00ea est\u00e1 vivendo em um mundo cheio de cor e voc\u00ea quer enxerg\u00e1-lo em preto e branco\u201d resume Pantalaimon.\u00a0Fazer diferente, enxergar tais met\u00e1foras com o canto dos olhos, como aconselha Farder Coram, talvez n\u00e3o nos salve do estrago que seus textos – e seus equivalentes, no mundo real – provocaram no discurso p\u00fablico.<\/p>\n

Mas pode, com sorte, trazer um pouco de cor \u00e0s sombras que nos rodeiam.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

“P\u00f3s-verdade” \u00e9 o nome que alguns d\u00e3o a uma falta de confian\u00e7a em rela\u00e7\u00e3o ao que \u00e9 verdadeiro – ou mesmo, \u00e0 ideia de que uma \u00fanica “verdade” existe de fato. O termo foi eleito a palavra do ano de 2016 pelo dicion\u00e1rio Oxford da l\u00edngua inglesa.\u00a0A escolha dispensa explica\u00e7\u00f5es. Poucos acontecimentos de mem\u00f3ria recente […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":22045,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"spay_email":"","jetpack_publicize_message":"","jetpack_is_tweetstorm":false},"categories":[580,17],"tags":[631,226,309,386,630],"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/i2.wp.com\/www.finisgeekis.com\/wp-content\/uploads\/2019\/10\/20191015-secret-commonwealth-cover-article.jpg?fit=1836%2C1551","jetpack_publicize_connections":[],"jetpack_shortlink":"https:\/\/wp.me\/p9rUzW-5Jp","_links":{"self":[{"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/22035"}],"collection":[{"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=22035"}],"version-history":[{"count":7,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/22035\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":22050,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/22035\/revisions\/22050"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/media\/22045"}],"wp:attachment":[{"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=22035"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=22035"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=22035"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}