The Promised Neverland, <\/em>destaque da temporada de inverno, tem cativado leitores e espectadores com sua distopia alucinante.<\/p>\n N\u00e3o \u00e9 dif\u00edcil entender por qu\u00ea. A ideia de um mundo em que crian\u00e7as s\u00e3o criadas para o abate \u00e9 tenebrosa o suficiente para comover qualquer um.<\/p>\n Ou seria mesmo?<\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n Obviamente, n\u00e3o me anima a ideia de que eu ou voc\u00ea, leitor, possamos terminar nossos dias em uma bandeja. E, embora meu peixetarianismo n\u00e3o seja ideol\u00f3gico, tampouco nego que os animais da ind\u00fastria de alimentos muitas vezes s\u00e3o tratados de forma horr\u00edvel.<\/p>\n Imagine, por\u00e9m, que nessa distopia hipot\u00e9tica n\u00f3s sejamos criados e abatidos com a m\u00e1xima humanidade. E que o fim chegue n\u00e3o na inf\u00e2ncia, como em Promised Neverland<\/em>, mas ao final dos nossos 20 anos.<\/p>\n Imagine, ainda, que n\u00e3o precisemos ficar confinados. Que possamos nos divertir, experimentar todos os prazeres da carne, viver a vida sem trabalhar. Fazer, enfim, tudo o que quis\u00e9ssemos. Menos escapar do rel\u00f3gio.<\/p>\n Esse mundo seria assim t\u00e3o ruim?<\/p>\n Pergunta errada: seria ele muito diferente da realidade que temos hoje? Labutando das 8h \u00e0s 18h, acatando escolhas feitas por outras pessoas, \u00e0 espera de uma morte que mais dia, menos dia, chegar\u00e1 de qualquer maneira?<\/p>\n N\u00e3o ser\u00edamos todos n\u00f3s uma esp\u00e9cie de \u201cgado\u201d, aguardando um \u201cabate\u201d de outra natureza?<\/p>\n <\/p>\n N\u00e3o se preocupe, leitor, eu n\u00e3o estou ficando louco (pelo menos, n\u00e3o ainda).<\/p>\n A met\u00e1fora \u00e9 obviamente uma provoca\u00e7\u00e3o. Por mais morosa que seja nossa vida, ela nunca se comparar\u00e1 ao pesadelo de Neverland<\/em>.<\/p>\n Mesmo assim, o fato dessa provoca\u00e7\u00e3o nos incomodar prova que ela traz um fundinho de verdade.<\/p>\n E Kaiu Shirai, escritor de\u00a0Neverland,\u00a0<\/em>n\u00e3o foi o primeiro a perceber isto.<\/p>\n <\/p>\n F\u00e3s do mang\u00e1 de Shirai talvez n\u00e3o saibam, mas essa reflex\u00e3o j\u00e1 foi feita por outra pessoa. E o resultado foi um dos romances mais impactantes dos anos 2000.<\/p>\n Escrito por Kazuo Ishiguro (que, a despeito do nome, \u00e9 mais brit\u00e2nico que o ch\u00e1 das cinco), N\u00e3o me Abandone Jamais <\/em>se tornou um best-seller <\/em>e ajudou seu autor a faturar um Nobel da literatura.<\/p>\n <\/p>\n Seu enredo acompanha Kathy, Tommy e Ruth, tr\u00eas crian\u00e7as do col\u00e9gio interno de Hailsham, no interior da Inglaterra. Narrado em primeira pessoa por uma das garotas, a trama parece, a princ\u00edpio, uma hist\u00f3ria qualquer de amadurecimento.<\/p>\n Kathy e seus amigos estudam, descobrem sua sexualidade, fazem planos para o futuro. At\u00e9 que as frestas em seu para\u00edso come\u00e7am a aparecer.<\/p>\n A verdade chega com Miss Lucy, uma professora rebelde, ao escutar um aluno dizer que sonha em ser ator de Hollywood:<\/p>\n \u201cSe ningu\u00e9m mais for falar para voc\u00eas\u201d ela continuou \u201cfalo eu. O problema, ao meu ver, \u00e9 que eles contaram para voc\u00eas, mas n\u00e3o contaram para voc\u00eas. Eles contaram para voc\u00eas, mas nem um de voc\u00eas realmente entendeu, e, eu ouso dizer, algumas pessoas est\u00e3o bem felizes em deixar as coisas desse jeito. Mas eu n\u00e3o vou. Para que voc\u00eas tenham vidas decentes voc\u00eas precisam saber e saber propriamente. Nenhum de voc\u00eas vai para os Estados Unidos, nenhum de voc\u00eas ser\u00e1 uma estrela de cinema. E nenhum de voc\u00eas trabalhar\u00e1 em supermercados como eu ouvi alguns de voc\u00eas falando outro dia. Suas vidas foram decididas para voc\u00eas. Voc\u00eas se tornar\u00e3o adultos, ent\u00e3o, antes de envelhecerem, antes de chegarem \u00e0 meia idade, voc\u00eas come\u00e7ar\u00e3o a doar seus \u00f3rg\u00e3os vitais. \u00c9 para isso que cada um de voc\u00eas foi criado.\u201d<\/p><\/blockquote>\n N\u00e3o me Abandone Jamais <\/em>se passa em um futuro alternativo em que fazendas de clones foram estabelecidas para suprir \u00f3rg\u00e3os de transplante. A medida provocou um avan\u00e7o inconceb\u00edvel na medicina, a troco de um tenebroso custo humano.<\/p>\n Nas palavras de Miss Emily,\u00a0 a diretora de Hailsham:<\/p>\n \u201cDepois da guerra, no in\u00edcio dos anos cinquenta, quando as grandes descobertas da ci\u00eancia seguiam uma \u00e0 outra t\u00e3o rapidamente, n\u00e3o houve tempo para refletir, para perguntar as quest\u00f5es delicadas. Subitamente existiam todas essas novas possibilidades \u00e0 nossa frente, todas essas maneiras de curar tantas doen\u00e7as que antes eram incur\u00e1veis. […] Mas, quando as pessoas come\u00e7aram a se preocupar com os…estudantes,<\/em> quando come\u00e7aram a se preocupar com como voc\u00eas eram criados, se voc\u00eas deviam ou n\u00e3o existir, j\u00e1 era tarde demais. Como voc\u00ea pode pedir a um mundo que passou a tratar o c\u00e2ncer como cur\u00e1vel, como voc\u00ea pode pedir a um mundo desses para se desfazer dessa cura, voltar para a idade das trevas?\u201d<\/p><\/blockquote>\n A genialidade de Ishiguro \u00e9 que a verdade n\u00e3o nos aparece at\u00e9 as p\u00e1ginas finais. Esse n\u00e3o \u00e9 um livro de fic\u00e7\u00e3o cient\u00edfica. \u00c9 uma medita\u00e7\u00e3o sobre o livre arb\u00edtrio, a finitude da vida \u2013 e, em \u00faltimo caso, aquilo que nos faz humanos.<\/p>\n Os clones de Ishiguro passam suas inf\u00e2ncias nos col\u00e9gios internos, protegidos do mundo exterior. Na adolesc\u00eancia, s\u00e3o remanejados a chal\u00e9s, de onde podem sair e se divertir desde que retornem de noite.<\/p>\n Assim que se tornam adultos, seus \u00f3rg\u00e3os come\u00e7am a ser colhidos, uma cirurgia por vez. Clones ainda n\u00e3o operados servem de cuidadores para seus colegas, acompanhando-os durante suas horas finais.<\/p>\n Por motivos que n\u00e3o s\u00e3o explicados, nem as v\u00edtimas, nem a sociedade que as explora demonstra a menor revolta ou remorso. A distopia mexe seus pauzinhos com uma frieza hospitalar.<\/p>\n N\u00e3o \u00e9 dif\u00edcil entender o porqu\u00ea. Por tr\u00e1s das brumas da fic\u00e7\u00e3o especulativa, o romance de Ishiguro \u00e9 uma alegoria contundente da nossa pr\u00f3pria vida: da gaiola dourada dos anos de escola \u00e0 liberdade da adolesc\u00eancia e, finalmente, \u00e0 idade adulta, quando somos mo\u00eddos pelas engrenagens do Sistema.<\/p>\nN\u00e3o me abandone jamais<\/strong><\/h3>\n