<\/p>\n
Madoka <\/em>foi inspirado em Fausto<\/em><\/a>. Ozamu Tezuka adaptou Crime e Castigo<\/em> aos mang\u00e1s. Miyazaki citou Paul Val\u00e9ry em Vidas ao Vento. Digimon <\/em>fez homenagem a H.P. Lovecraft<\/a>.<\/p>\n Refer\u00eancias a obras ocidentais n\u00e3o s\u00e3o raras nos animes e mang\u00e1s. Mais incomum \u00e9 topar com s\u00e9ries que fa\u00e7am o percurso oposto.<\/p>\n <\/p>\n \u00c9 o caso de Magical Girl<\/a>, <\/em>longa espanhol de Carlos Vermut, que trouxe o g\u00eanero\u00a0mahou shoujo<\/em>\u00a0– em especial, sua encarna\u00e7\u00e3o\u00a0dark<\/a> –\u00a0\u00a0<\/em>\u00e0s telas de cinema.<\/p>\n Em tempos em que o subg\u00eanero parece sucumbir ao seu pr\u00f3prio peso<\/a>, \u00e9 interessante descobrir o que foi feito das garotas m\u00e1gicas transpostas ao realismo do\u00a0live-action.\u00a0<\/em><\/p>\n <\/p>\n O filme foi lan\u00e7ado em 2014, mas voc\u00ea est\u00e1 perdoado se a estreia lhe passou batido.\u00a0Magical Girl\u00a0<\/em>\u00e9 um filme diminuto mesmo para os padr\u00f5es europeus, de um g\u00eanero que f\u00e3s de anime n\u00e3o necessariamente acompanham. Que seu diretor tenha escolhido um\u00a0thriller\u00a0<\/em>psicol\u00f3gico e n\u00e3o fantasia para contar sua hist\u00f3ria \u00e9 prova da ousadia – e estranheza – do longa.<\/p>\n Sua trama acompanha Lu\u00eds, pai de Al\u00edcia, uma garota com c\u00e2ncer terminal. Prestes a morrer, ela faz um \u00faltimo desejo: comprar um cosplay oficial de Magical Girl Yukiko, sua personagem favorita.<\/p>\n <\/p>\n Tal como nos animes, por\u00e9m, as coisas n\u00e3o s\u00e3o t\u00e3o simples quanto parecem. Al\u00edcia n\u00e3o quer uma fantasia qualquer, mas uma vers\u00e3o especial feita sob medida para uma idol<\/em>. Apenas uma unidade foi produzida, e o pre\u00e7o est\u00e1 acima do que Lu\u00eds, professor desempregado, \u00e9 capaz de pagar.<\/p>\n O destino o apresenta \u00e0 B\u00e1rbara, mulher que sofre de problemas psiqui\u00e1tricos. E um ato carnal precipitado (que leitores de Shuuzou Oshimi<\/a> achar\u00e3o dolorosamente familiar) o coloca em uma posi\u00e7\u00e3o de chantage\u00e1-la.<\/p>\n Desesperado para satisfazer o \u00faltimo desejo de sua filha, Lu\u00eds lhe exige dinheiro sob amea\u00e7a de destruir seu casamento. B\u00e1rbara, no entanto, possui seus pr\u00f3prios dem\u00f4nios, e na tentativa de pagar sua alforria se envolve em um espiral descendente de loucura, pervers\u00f5es e d\u00edvidas pessoais.<\/p>\n <\/p>\n O tributo \u00e0s\u00a0mahou shoujo\u00a0<\/em>\u00e9 evidente em sua bagagem visual, que pulula de refer\u00eancias a garotas m\u00e1gicas com pinceladas de ironia e humor negro. A vodka que B\u00e1rbara bebe para tentar se suicidar com comprimidos chama-se Sailor Moon<\/em>. E o vestido que Al\u00edcia tanto cobi\u00e7a \u00e9 um traje que f\u00e3s do g\u00eanero conhecem muito bem.<\/p>\n <\/p>\n N\u00e3o espere, por\u00e9m, o sadismo visual de um\u00a0\u00a0Mahou Shoujo Site<\/a>. Magical Girl <\/em>\u00e9 um filme ass\u00e9ptico como um piso de hospital, contado por palavras n\u00e3o ditas, sil\u00eancios pronunciados e cen\u00e1rios claustrof\u00f3bicos de t\u00e3o limpos.<\/p>\n Vermut \u00e9 um expoente do cinema low cost<\/em>, e \u00e9 fascinante como suas t\u00e1ticas para enxugar a produ\u00e7\u00e3o aproximam sua linguagem a dos animes \u2013 outra arte que aprendeu a fazer milagres com pouco recursos.<\/p>\n Suas tomadas est\u00e1ticas, em especial, lembram n\u00e3o poucas cenas de anime, paralelo que seus di\u00e1logos prolongados salienta ainda mais.<\/p>\n <\/p>\n \u00a0\u00a0<\/p>\n Mesmo seu enredo parece despido de qualquer bagagem extra \u2013 incluindo a verossimilhan\u00e7a. O conflito que une a trama, e as a\u00e7\u00f5es desconcertantes de suas personagens, s\u00e3o implaus\u00edveis a ponto de parecerem par\u00e1bolas.<\/p>\n Veja por exemplo Lu\u00eds, que o filme nos introduz discutindo com um vendedor de sebo. A loja compra livros \u201cpor quilo\u201d, sem discriminar o conte\u00fado. Lu\u00eds se recusa a aceitar que Camilo Jos\u00e9 Cela<\/a>, vencedor do Nobel, valha o mesmo que um manual de bricolagem. Por uma pilha de livros, recebe 5 euros. O cosplay de Magical Girl Yukiko custa 7 mil.<\/p>\n Lu\u00eds volta ao sebo mais tarde no filme. Movido pelo desespero, vende toda a sua biblioteca. Os livros n\u00e3o valem nada, como n\u00f3s sabemos muito bem.<\/p>\n Ele tamb\u00e9m sabe, mas sua quest\u00e3o \u00e9 outra. Ex-professor de literatura, sua biblioteca \u00e9 seu maior patrim\u00f4nio. E ele n\u00e3o pode deixar a filha morrer sem saber que abriu m\u00e3o do que lhe era mais valioso.<\/p>\n Ou veja ent\u00e3o Al\u00edcia, que ao receber seu vestido, ap\u00f3s tanto esfor\u00e7o, olha para a caixa desanimada. Procura atr\u00e1s do sof\u00e1 por um segundo presente. Finge um sorriso amarelo.<\/p>\n Seu pai n\u00e3o entende por que ela, que tanto quis o vestido, se recusa a vesti-lo. Mas n\u00f3s, f\u00e3s de mahou shoujo, <\/em>entendemos. O poder de uma garota m\u00e1gica n\u00e3o vem de seu vestido, mas de seu b\u00e1culo. E o b\u00e1culo de Yukiko, recoberto de brilhantes, custa outros 20 mil euros.<\/p>\n O filme est\u00e1 cheio de refer\u00eancias a mitos modernos, de Al\u00edcia (Alice) e seu pai Lu\u00eds (Lewis Carroll) a Oliver Zoco (Oz), que leva B\u00e1rbara a um mundo paralelo de onde n\u00e3o haver\u00e1 retorno.<\/p>\n Vermut disse em entrevista<\/a> que sua ideia era fazer um conto de fadas, com Al\u00edcia com princesa e B\u00e1rbara como madrasta. Tal como a rainha m\u00e1 de Branca de Neve<\/em>, B\u00e1rbara tamb\u00e9m pede aux\u00edlio a um espelho m\u00e1gico. Para sua infelicidade, ele se recusou a respond\u00ea-la.<\/p>\n <\/p>\n Essas n\u00e3o s\u00e3o pessoas normais, mas almas torturadas com um vazio espiritual. \u00c9 a ang\u00fastia que encontramos nas p\u00e1ginas de Dostoi\u00e9vski: na paranoia do narrador de Mem\u00f3rias do Subsolo<\/em><\/a> ou no crime \u201cjusto\u201d (e tragicamente executado) de Raskolnikov em Crime e Castigo<\/em>.<\/p>\n Infelizmente, o estilo de Magical Girl <\/em>\u00e0s vezes atropela seu conte\u00fado. Veja Dami\u00e1n, ex-professor de B\u00e1rbara nos tempos de col\u00e9gio, para quem ela pede ajuda quando tudo parece dar errado.<\/p>\n <\/p>\n N\u00f3s sabemos que ele foi preso por proteg\u00ea-la, que a estima tal qual uma filha e que morre de medo de rev\u00ea-la. Como a personagem de Clint Eastwood em\u00a0\u00a0Menina de Ouro, <\/em>est\u00e1 disposto a fazer o sacrif\u00edcio final se isso trouxer \u00e0 protegida algum al\u00edvio.<\/p>\n Qual teria sido seu crime? O que B\u00e1rbara teve a ver com isso? Por que tem medo de rev\u00ea-la, a ponto de implorar a sua agente penitenci\u00e1ria que o deixasse ficar preso mais um pouco?<\/p>\n S\u00e3o respostas que o filme n\u00e3o nos d\u00e1 e logo entendemos que n\u00e3o nos dar\u00e1. Em uma de suas primeiras cenas, n\u00f3s o vemos completando um quebra-cabe\u00e7a at\u00e9 se tocar de que falta uma pe\u00e7a. N\u00e3o \u00e9 o roteiro que est\u00e1 furado: \u00e9 sua pr\u00f3pria vida. Algumas pessoas s\u00e3o incompletas, e devemos aceit\u00e1-las assim.<\/p>\n \u00c9 uma met\u00e1fora \u00f3bvia demais para seu pr\u00f3prio bem e importante demais para o que est\u00e1 em jogo.<\/p>\n