Se Deus existir, ele ter\u00e1 de implorar pelo meu perd\u00e3o.<\/em><\/p>\n A frase est\u00e1 gravada nas paredes de uma cela em Mauthausen, antigo campo de concentra\u00e7\u00e3o nazista. Quando pensamos nos horrores do Holocausto, \u00e9 f\u00e1cil entender o porqu\u00ea.<\/p>\n <\/p>\n De fato, n\u00e3o \u00e9 simples conciliar a exist\u00eancia de um Criador bondoso com todos os horrores que testemunhamos \u00e0 nossa volta. Ou pensar que a vida tem um “sentido” quando parece apontar a uma vala comum.<\/p>\n Hist\u00f3rias que invertem nossa rela\u00e7\u00e3o com o divino \u2013 colocando-o como uma \u201ccriatura\u201d \u00e0 imagem dos humanos \u2013 s\u00e3o um dos temas mais peculiares da fic\u00e7\u00e3o. Mesmo na cultura pop, elas podem ser vistas em todas as m\u00eddias, em n\u00edveis de seriedade que v\u00e3o da cr\u00edtica social (Deuses Americanos<\/em>) \u00e0 com\u00e9dia pastel\u00e3o (Noragami<\/em>).<\/p>\n Dies Irae<\/em>, criada pelos quadrinistas ga\u00fachos do Tesla HQ<\/a>, \u00e9 a \u00faltima tentativa de peitar o Criador. Que n\u00e3o perde, em ambi\u00e7\u00e3o, a nenhuma das obras que a precedem.<\/p>\n <\/p>\n A graphic novel <\/em>se passa em um futuro pr\u00f3ximo acometido por um desastre peculiar:\u00a0deuses come\u00e7am a chover do c\u00e9u<\/strong>.<\/p>\n <\/p>\n Sem aviso ou explica\u00e7\u00e3o, faces conhecidas das principais mitologias despencam na Terra. As apari\u00e7\u00f5es s\u00e3o acompanhadas de epis\u00f3dios de histeria – alguns explic\u00e1veis, outros nem tanto.<\/p>\n V\u00e1rias mulheres entram em transe e come\u00e7am a dan\u00e7ar at\u00e9 a exaust\u00e3o. Uma\u00a0 violinista autista p\u00f5e toda uma popula\u00e7\u00e3o em um frenesi mortal. Governos tentam fugir do planeta. Fan\u00e1ticos religiosos perseguem o apocalipse.<\/p>\n <\/p>\n Dies Irae<\/em> (em latim, \u201cDia de Ira\u201d) \u00e9 um dos nomes do Ju\u00edzo Final. Tamb\u00e9m \u00e9 um dos hinos que comp\u00f5em as missas de r\u00e9quiem – como o R\u00e9quiem de Mozart<\/a>, que serve de “trilha sonora” a um de seus cap\u00edtulos.<\/p>\n A\u00a0graphic novel\u00a0<\/em>de fato nos mostra julgamentos, embora n\u00e3o seja f\u00e1cil determinar quem est\u00e1 sendo julgado por quem. Vemos deuses provocando desastres – ora voluntariamente, ora \u00e0 revelia de suas vontades.<\/p>\n Contudo, tamb\u00e9m vemos mortais administrando sua pr\u00f3pria variedade de “justi\u00e7a” – contra si pr\u00f3prios e tamb\u00e9m contra o divino.<\/p>\n <\/p>\n A\u00a0HQ come\u00e7a com depoimentos dos pr\u00f3prios artistas, em que explicam sua miss\u00e3o de desafiar cren\u00e7as e n\u00e3o se fiar a certezas prontas. \u00c9 uma miss\u00e3o que executam bem demais e que peca, em alguns momentos, pela confus\u00e3o.<\/p>\n S\u00e3o tantos questionamentos, s\u00edmbolos e refer\u00eancias, acompanhados de textos t\u00e3o densos e uma arte t\u00e3o exuberante que transbordam das 104 p\u00e1ginas do quadrinho.<\/p>\n Uma HQ dessa complexidade se beneficiaria de um andamento mais c\u00f4modo – e uma janela mais ampla para nos introduzir os detalhes inquietantes de seu mundo. Hist\u00f3rias\u00a0 menos ambiciosas – e muito menos interessantes – j\u00e1 se estenderam por gibis muito mais longos.<\/p>\n Que\u00a0Dies Irae\u00a0<\/em>nos fa\u00e7a desejar mais \u00e9 prova do qu\u00e3o criativa \u00e9 sua proposta. Em tempos de g\u00eaneros engessados e gibis derivativos, a Tesla HQ trouxe uma obra que soa original, virtuosa e terrivelmente pertinente.<\/p>\n Seu roteiro nos mostra, com cinismo, como a humanidade perde seu caminho. \u00c9 dif\u00edcil ler a cacofonia de not\u00edcias, informes e memes que costuram seu enredo e n\u00e3o lembrar do retrato \u00e1cido da m\u00eddia de massa feita por Frank Miller em Cavaleiro das Trevas.<\/em><\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n Ou observar suas paisagens desoladas e n\u00e3o pensar em seu Ronin<\/em>, com seu futuro igualmente dist\u00f3pico; igualmente povoado \u2013 \u00e0 sua pr\u00f3pria maneira \u2013 por deuses ca\u00eddos.<\/p>\n H\u00e1, de fato, uma qualidade \u201cretr\u00f4\u201d em Dies Irae<\/em>, a despeito do uso sofisticado de cores e da quadriniza\u00e7\u00e3o elaborada.<\/p>\n A arte, assinada a seis m\u00e3os por Adan Marini, Thiago Danieli e Frank Tartarus, traz as linhas fortes e corpos esculpidos reminiscentes de her\u00f3is do fim da Era de Bronze<\/a>. Ao mesmo tempo, n\u00e3o tem medo de fugir do figurativismo para algumas de suas cenas mais cerebrais.<\/p>\n <\/p>\n Se o tributo ao passado recente foi proposital, n\u00e3o sei dizer ao certo. Fato \u00e9 que sua est\u00e9tica cai como uma luva ao roteiro de Tartarus e Rafael Rodrigues, que nos for\u00e7a a encarar quest\u00f5es nascidas, elas pr\u00f3prias, de outras \u00e9pocas.<\/p>\n Nas p\u00e1ginas de Dies Irae<\/em>, encontramos refer\u00eancias \u00e0 teoria das cordas<\/a>, ao\u00a0efeito borboleta<\/a>, e ao caos. O que estas ideias t\u00eam em comum \u00e9 terem nascido de um mesmo \u201cfim de s\u00e9culo\u201d marcado pelo fim das certezas – e o nascimento do \u201cpresente\u201d como o conhecemos hoje.<\/p>\n <\/p>\n Para as pessoas nos anos 1980, que perdiam o sono com a amea\u00e7a de um apocalipse nuclear, essas ideias ca\u00edram como um milagre. Afinal de contas, se a natureza \u00e9 \u201cincerta\u201d, \u201cincerto\u201d tamb\u00e9m \u00e9 o destino humano. Mesmo que todos os sinais \u00e0 nossa volta apontem para o pior.<\/p>\n <\/p>\nO Dia da Ira<\/h3>\n
O fim das certezas<\/h3>\n