No mundo p\u00f3s-Gabe Newell em que vivemos, a cultura geek j\u00e1 se comporta como o entretenimento mainstream. \u00a0\u00c0s vezes, os destaques nos chegam sem que fa\u00e7amos nada (quem sobreviveu \u00e0 semana passada sem falar dos Vingadores que atire a primeira pedra). Outras vezes, no entanto, somos surpreendidos por fontes das mais obscuras. \u00c9 o caso de Tower of God<\/em><\/a>, manhwa (quadrinho coreano) de Lee Jong-hui, ou SIU.<\/p>\n Quem, como eu, perdeu o lan\u00e7amento da s\u00e9rie em 2010 est\u00e1 perdoado. A obra\u00a0\u00e9 um line webtoon<\/em>, formato de quadrinho feito para ser visto em browser, e tem sido distribu\u00eddo gratuitamente desde ent\u00e3o. Se a inova\u00e7\u00e3o impressiona aos olhos cansados do leitor acostumado ao papel jornal dos mang\u00e1s e \u00e0 visualiza\u00e7\u00e3o\u00a0horrenda das scanlations, a obra n\u00e3o deixa de pertencer ao nicho que recebe\u00a0aten\u00e7\u00e3o reduzida dos principais canais de \u00a0divulga\u00e7\u00e3o.<\/p>\n <\/p>\n A trama segue Bam, um garoto que entra inadvertidamente em uma torre misteriosa \u00e0 procura de sua mentora, Rachel. Os problemas o encontram logo de cara. Ele \u00e9 um irregular, indiv\u00edduo cuja presen\u00e7a n\u00e3o \u00e9 bem-vinda no edif\u00edcio. Para encontrar sua amiga, \u00e9 preciso que circule na torre. Para circular, precisa subir. Para que suba, precisa provar o seu valor em testes cada vez mais engenhosos. O leitor que busque mais esclarecimento ficar\u00e1 desapontado. Quase tudo, da origem da torre aos seus habitantes, passando pela pr\u00f3pria natureza do mundo que a circunda \u2013 se algo parecido com um \u201cmundo\u201d de fato existe em primeiro lugar – \u00e9 deixado a cargo da imagina\u00e7\u00e3o. O que se segue \u00e9 um espet\u00e1culo de estrat\u00e9gia\u00a0capaz de trazer l\u00e1grimas aos olhos de qualquer enxadrista. Cap\u00edtulo a cap\u00edtulo\u00a0Bam, acompanhado por uma legi\u00e3o de personagens ex\u00f3ticos, participa de desafios que exigem de l\u00e1bia e disciplina o mesmo que de for\u00e7a e intelig\u00eancia.<\/p>\n C\u00edrculos M\u00e1gicos<\/strong><\/p>\n \u201cNenhum ceticismo \u00e9 poss\u00edvel no que concerne \u00e0s regras de um jogo, pois o princ\u00edpio que as subscreve \u00e9 uma verdade inabal\u00e1vel.\u201d A frase \u00e9 de Paul Val\u00e9ry, citada pelo \u201cpai\u201d da ludologia, Johan Huizinga, e soar\u00e1 familiar a todos que j\u00e1 enfrentaram sua cota de desafios. Tal como a torre do manhwa de SIU, todo jogo \u00e9 um mundo \u00e0 parte, com suas pr\u00f3prias leis e crit\u00e9rios de verdade. Pela breve exist\u00eancia de uma partida, suas regras s\u00e3o elevadas a c\u00f3digos inquebr\u00e1veis. Tentativas de viol\u00e1-las \u2013 por trapaceiros, cheaters<\/em> ou favorecidos de toda esp\u00e9cie \u2013 s\u00e3o vistas como crimes. Da\u00ed o receio em rela\u00e7\u00e3o a Bam. Como estrangeiro \u00e0 torre, ele n\u00e3o est\u00e1 preso \u00e0s suas regras. Suas a\u00e7\u00f5es s\u00e3o regidas por outras l\u00f3gicas; seus limites, impostos por outras entidades. Irregulares t\u00eam o poder de causar o mais aterrador cen\u00e1rio de caos a um jogo: a chance de ser invadido pelo \u201cmundo real\u201d.<\/p>\n <\/a><\/p>\n \u00c9 curioso que uma atividade cultural com tanta \u00eanfase no cumprimento de regras tenha sido associada \u00e0 malandragem.\u00a0 Dizer que algo \u00e9 \u201capenas um jogo\u201d \u00e9 uma express\u00e3o recorrente para atacar sua relev\u00e2ncia, e zombar de jogadores por levarem a s\u00e9rio seus hobbies \u00e9 um dos argumentos de for\u00e7a mais recorrentes da m\u00eddia atual. Este valor negativo (na melhor das hip\u00f3teses, amb\u00edguo) \u00e9 a norma na fic\u00e7\u00e3o. Na recente trilogia Dragon Age<\/em>, para n\u00e3o citar um exemplo muito antigo, \u201cO Jogo\u201d \u00e9 o ritual de etiqueta versaillesco que rege a corte orlesiana, um baile de m\u00e1scaras em escala nacional no qual reputa\u00e7\u00f5es s\u00e3o tanto alvos\u00a0quanto armas de guerras. O princ\u00edpio \u00e9 claro. Um conflito resolvido por uma atividade l\u00fadica\u00a0\u00e9 uma adaga a menos a se fincar nas costas de um inimigo. Uma vit\u00f3ria pol\u00edtica numa festa ou parlamento \u00e9 um ex\u00e9rcito a menos a se enviar ao front<\/em> e litros de sangue a menos a sujar as ruas. Jogos s\u00e3o virtuais, e esta virtualidade os faz incrivelmente subversivos, em especial para aqueles que gostariam de exercer seu poder sobre os outros.<\/p>\n