(Aviso: cont\u00e9m SPOILERS para\u00a0<\/em>Made in Abyss)<\/em><\/p>\n A temporada de ver\u00e3o acabou, e temos um veredito.\u00a0Made in Abyss<\/em>, baseado no mang\u00e1 de Tsukushi Akihito, se tornou um dos animes mais pol\u00eamicos, comentados – e idolatrados – dos \u00faltimos tempos.<\/p>\n <\/p>\n N\u00e3o \u00e9 dif\u00edcil entender a fama. E n\u00e3o falo s\u00f3 da\u00a0 trilha primorosa<\/a> do australiano Kevin Penkin, que acaba de se al\u00e7ar ao pedestal de Yuki Kajiura, Yoko Kanno e Hiroyuki Sawano. Nem da falsa “vibe<\/em>\u00a0infantil”, com\u00a0justaposi\u00e7\u00e3o de tra\u00e7os cartunescos e\u00a0gore\u00a0<\/em>suficiente para arrepiar o mais insens\u00edvel dos otakus.<\/p>\n <\/p>\n Com um\u00a0worldbuilding\u00a0<\/em>bem feito e temas t\u00e3o chocantes quando curiosos, Made in Abyss\u00a0<\/i>uma s\u00e9rie que desafia nossa coragem a cada epis\u00f3dio – e entrega sempre mais que o prometido.<\/p>\n Mesmo assim, a saga da exploradora Riko em busca de sua m\u00e3e, acompanhada pelo rob\u00f4 Reg, \u00e9 um f\u00e1bula dif\u00edcil de explicar.<\/p>\n O que, afinal, \u00e9 essa jornada ao fundo de um abismo misterioso? Uma medita\u00e7\u00e3o sobre o valor da vida? Uma advert\u00eancia sobre a curiosidade humana? Uma met\u00e1fora para o amadurecimento? Uma pornografia da crueldade para f\u00e3s de 127 Horas<\/em>?<\/p>\n Uma desculpa de 13 epis\u00f3dios para as tomadas mais deslumbrantes fora de um filme do Makoto Shinkai?<\/p>\n <\/p>\n Talvez um pouco de tudo, talvez nada disso. De minha parte, tendo a acreditar que certas obras, muitas vezes, esclarecem outras. Nesse caso em especial, n\u00e3o consigo tirar da cabe\u00e7a outra hist\u00f3ria que li h\u00e1 alguns anos \u2013 e que at\u00e9 hoje me assombra.<\/p>\n <\/p>\n Jolies T\u00e9n\u00e8bres<\/em> (em franc\u00eas, \u201cBela Escurid\u00e3o\u201d) \u00e9 uma BD de Fabien Vehlmann e do casal Kerasco\u00ebt<\/a>\u00a0que mostra por que a Fran\u00e7a ainda \u00e9 a rainha dos quadrinhos.<\/p>\n Publicada no Brasil como Aurora nas Sombras<\/a>,<\/em> Sua trama come\u00e7a com uma morte. Uma crian\u00e7a morre em um bosque. De seu corpo caem pequenas criaturas, t\u00e3o confusas com o que est\u00e1 acontecendo quanto n\u00f3s que as observamos de longe.<\/p>\n <\/p>\n Misto de Arietty<\/a> <\/em>e Moomin<\/a><\/em>, Jolies Ten\u00e8bres<\/em> acompanha esse pequenos seres enquanto tentam sobreviver no malvado mundo real. Por\u00e9m, n\u00e3o \u00e9 preciso ter visto Made in Abyss <\/em>para entender que a hist\u00f3ria n\u00e3o tem nada de infantil.<\/p>\n A BD mistura estilos contrastantes. Enquanto que as criaturas t\u00eam tra\u00e7os cartunescos, a natureza que as cerca \u00e9 desenhada com todas as cores. Mesmo aquelas que n\u00e3o gostar\u00edamos de ver.<\/p>\n <\/p>\n O cad\u00e1ver, logo percebemos, \u00e9 um ve\u00edculo para coisas piores. Na medida em que o corpo se decomp\u00f5e, a sociedade dos pequeninos retrocede \u2013 literalmente \u2013 ao c\u00e3o come c\u00e3o<\/em>.<\/p>\n <\/p>\n Alguns de seus quadros, como uma garota cujo bra\u00e7o incha ap\u00f3s ser envenenada, parecem tirados diretos de Made in Abyss<\/em>. Que seu mundo seja familiar, e n\u00e3o uma extravaganza fant\u00e1stica, s\u00f3 o torna mais assustador.<\/p>\n <\/p>\n As semelhan\u00e7as terminam por a\u00ed. De certa forma, Jolies T\u00e9n\u00e8bres <\/em>\u00e9 o oposto da f\u00e1bula de Akihito.<\/p>\n Enquanto que Made in Abyss <\/em>traz um mundo vibrante e detalhado, a BD \u00e9 propositalmente vaga. Se a hist\u00f3ria de Akihito transborda de esperan\u00e7a (mesmo em seus momentos mais sombrios), a obra de Vehlmann e Kerasco\u00ebt<\/a>\u00a0 afunda no cinismo, desespero e humor negro.<\/p>\n Made in Abyss <\/em>\u00e9 uma viagem ao abismo contada a partir da luz. Jolies T\u00e9n\u00e8bres\u00b8<\/em>como o pr\u00f3prio t\u00edtulo j\u00e1 diz, fala de um mundo em que a escurid\u00e3o impera.<\/p>\n <\/p>\n Mesmo assim \u2013 e talvez justamente por ser t\u00e3o contr\u00e1ria \u2013 a HQ traz uma pe\u00e7a que complementa a odisseia de Riko e Reg. Uma chave para entender seu “abismo”, em toda sua escurid\u00e3o.<\/p>\n <\/p>\n O abismo, o anime nos conta, \u00e9 como uma planta carn\u00edvora. Entrar nele \u00e9 f\u00e1cil. Quanto mais fundo penetramos, no entanto, mais dif\u00edcil de sair.<\/p>\n Nas camadas mais altas, a “maldi\u00e7\u00e3o da ascens\u00e3o”, como \u00e9 chamada, causa v\u00f4mito e sangramentos. Para os que descem \u00e0 base, no entanto, o pre\u00e7o \u00e9 a pr\u00f3pria humanidade.<\/p>\n <\/p>\n Na s\u00e9rie, a “maldi\u00e7\u00e3o” pode ser algo concreto, mas n\u00e3o \u00e9 dif\u00edcil v\u00ea-la como uma li\u00e7\u00e3o maior.<\/p>\n O abismo – seja ele qual for – muda as pessoas. Quem desce \u00e0 escurid\u00e3o est\u00e1 fadado a carreg\u00e1-la consigo. \u00c0s vezes, para o resto de suas vidas.<\/p>\n <\/p>\n \u00c9 um ponto que fica ainda mais claro em Jolies T\u00e9n\u00e8bres, <\/em>embora seja contado de forma muito mais sutil. Cada uma de suas criaturas, logo percebemos, \u00e9 um aspecto da garota que morreu.<\/p>\n Uma delas, a independente, parte como uma amazona para trilhar seu pr\u00f3prio caminho. Outra, a medrosa, se recusa a sair do cad\u00e1ver: alimenta-se de vermes e de sua pr\u00f3pria carne podre.<\/p>\n <\/p>\n N\u00e3o demora para que percebamos que algumas \u00edndoles s\u00e3o mais fortes que outras. Tymoth\u00e9e, a insegura, logo \u00e9 assassinada. E Zelie, a manipuladora, veste – literalmente – o manto de Senhora das Moscas.<\/p>\n <\/p>\n Aurora, a protagonista, \u00e9 uma menina que acredita em fazer o bem. Por\u00e9m,\u00a0 na medida em que as coisas avan\u00e7am, mesmo ela \u00e9 obrigada a se entregar aos seus dem\u00f4nios.<\/p>\n <\/p>\n \u00c9 uma li\u00e7\u00e3o muito antiga, ensinada desde Jo\u00e3o e Maria,<\/em>\u00a0a obra-prima do terror infantil.\u00a0<\/em>Como dizem os autores<\/a>:<\/p>\n Nossa hero\u00edna \u00e9 uma esp\u00e9cie de princesa de conto de fadas que se v\u00ea confrontada pela realidade: ela \u00e9 obrigada a fazer as escolhas dif\u00edceis. Isto nos permite invocar a aprendizagem da crueldade, a obriga\u00e7\u00e3o de perder sua inoc\u00eancia para poder sobreviver. Para imaginar tudo isso, n\u00f3s nos lembrados da nossa forma de nos comportar perante os outros quando \u00e9ramos crian\u00e7as.<\/em><\/p>\n<\/blockquote>\n Aurora desceu ao fundo do abismo. E, como os apitos brancos de Made in Abyss<\/em>, est\u00e1 claro que sua viagem \u00e9 de via \u00fanica.<\/p>\n Quando a encontramos vestindo a carca\u00e7a de um rato que matou, a \u00fanica sobrevivente do grupo original, percebemos que ela nunca mais ser\u00e1 a “princesa” das primeiras p\u00e1ginas.<\/p>\n <\/p>\n Aurora amadurece. Mas seu rito de passagem n\u00e3o \u00e9 algo gen\u00e9rico, como a morte ou a puberdade.<\/p>\n \u00c9 uma transi\u00e7\u00e3o bastante espec\u00edfica, dolorosa e cruel. Que muitos, inebriados pela fic\u00e7\u00e3o de um mundo perfeito,\u00a0vivem e morrem sem conhecer.<\/p>\n Olhe muito tempo para o abismo, dizia Nietzsche<\/a>, e o abismo olhar\u00e1 de volta para voc\u00ea. O horror n\u00e3o \u00e9 s\u00f3 uma experi\u00eancia. \u00c9 algo que nos morde e n\u00e3o larga. Um fantasma que, quando despertado, nos assombrar\u00e1 at\u00e9 o final dos tempos.<\/p>\nJolies T\u00e9n\u00e8bres<\/strong><\/h3>\n
A natureza do abismo<\/h3>\n
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