Das imagens que minha v\u00f3 trouxe da Segunda Guerra, uma se destaca das demais. De tempos em tempos, avi\u00f5es aliados sobrevoavam seu vilarejo, metralhando tudo o que encontravam pela frente.<\/p>\n
Minha v\u00f3 nunca ficava para o espet\u00e1culo: ao primeiro som das h\u00e9lices, ela e suas amigas corriam para as montanhas.<\/p>\n
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\u201cEles nunca acertavam\u201d ela dizia \u201cAcho que no final s\u00f3 queriam assustar\u201d.<\/p>\n
Ouvi essa hist\u00f3ria incont\u00e1veis vezes, mas ela nunca deixou de me embasbacar. \u00a0Ali estava uma mulher que n\u00e3o fazia ideia de como funcionava uma \u201cguerra\u201d, mesmo quando as balas zumbiam acima de sua cabe\u00e7a.<\/p>\n
\u00c9 um relato inocente, mas ao mesmo tempo aterrorizante. E gra\u00e7as ao diretor Sunao Katabuchi, ex-Studio Ghibli<\/em>, pude vivenci\u00e1-lo em primeira m\u00e3o.<\/p>\n Kono Sekai no Katasumi ni<\/em>, filme de sua autoria lan\u00e7ado esse ano, traz a mesm\u00edssima cena<\/strong>.<\/p>\n <\/p>\n Lan\u00e7ado no Jap\u00e3o ano passado e no Ocidente esse ano, o filme vem colecionando pr\u00eamios e at\u00e9 recordes de crowdfunding<\/em><\/a>. O anime \u00e9 baseado em um mang\u00e1 de Fumiyo Kouno, que brasileiros devem reconhecer como autora de Hiroshima \u2013 A Cidade da Calmaria<\/a><\/em>.<\/p>\n Kono Sekai no Katasumi ni\u00a0<\/em>(“Nesse Canto do Mundo”) conta a hist\u00f3ria de Suzu, uma garota de 18 anos que se muda para Kure, uma cidade militar pr\u00f3xima de Hiroshima.<\/p>\n Tudo vai bem, at\u00e9 n\u00e3o estar mais. Como sabemos da hist\u00f3ria, Hiroshima seria aniquilada no dia 6 de agosto de 1945. Sede de uma importante base da marinha, Kure experimentaria seus pr\u00f3prios dem\u00f4nios: de bombardeios incendi\u00e1rios a voleios de artilharia.<\/p>\n <\/p>\n N\u00e3o pense, por\u00e9m, que est\u00e1 diante de um filme de sofrimento. Kono Sekai no Katasumi ni <\/em>n\u00e3o \u00e9 Gen P\u00e9s Descal\u00e7os <\/em>nem O T\u00famulo dos Vagalumes. <\/em>Em uma decis\u00e3o artisticamente ousada \u2013 e original \u2013 o filme de Katabuchi se desenrola como um slice of life<\/em>, recheado de picuinhas, cenas cotidianas e \u00a0at\u00e9\u00a0humor<\/strong>.<\/p>\n Sua \u201cguerra\u201d n\u00e3o \u00e9 feita s\u00f3 de batalhas ou carnificinas, mas de pessoas reais, lutando para fazer o melhor de suas vidas. \u00c9 uma \u201cguerra\u201d, tal como a da minha v\u00f3, em que meninas podem ver sua cidade metralhada e ca\u00e7oar da mira dos pilotos. E casais podem se amar mesmo na claustrofobia de um abrigo anti-bombas.<\/p>\n <\/p>\n O filme \u00e9 estruturado em forma de di\u00e1rio, com datas que tanto anunciam o passar do tempo quanto d\u00e3o a contagem regressiva para a trag\u00e9dia que sabemos que vir\u00e1.<\/p>\n Muito antes da primeira bomba cair, n\u00f3s assistimos \u00e0 vida de suas personagens mudando na medida em que o Imp\u00e9rio do Jap\u00e3o caminha para a derrota.<\/p>\n Racionamento de comida. Um irm\u00e3o morto em campanha. Os efeitos da priva\u00e7\u00e3o de sono, ap\u00f3s noites a fio se protegendo de bombardeios. E as consequ\u00eancias terr\u00edveis de quando, num momento de desaten\u00e7\u00e3o, Suzu esquece de seguir o protocolo.<\/p>\n <\/p>\n Katabuchi conta sua hist\u00f3ria em um passo lento, fiel ao ritmo do mang\u00e1 original. O resultado \u00e9 um longa quase epis\u00f3dico, sem um grande conflito central.<\/p>\n Isto pode parecer estranho, considerando o que o filme trata do conflito mais \u201ccentral\u201d da hist\u00f3ria do Jap\u00e3o moderno. No entanto, justamente por sua leveza, ele consegue soprar uma lufada de ar fresco a um g\u00eanero batido.<\/p>\n Em uma de suas melhores cenas, o kempetai<\/em> (pol\u00edcia pol\u00edtica) flagra Suzu desenhando um navio de guerra. Ela \u00e9 arrastada at\u00e9 sua casa, onde ela e suas parentes sofrem uma humilhante batida policial. Isto \u00e9 espionagem, eles dizem. As mulheres abaixam os olhos, e sentimos em sua tens\u00e3o um misto de pavor e \u00f3dio incontido.<\/p>\n Assim que os policiais v\u00e3o embora, no entanto, todas come\u00e7am a gargalhar. E descobrimos que as caretas n\u00e3o eram de \u00f3dio, mas de dificuldade em segurar as risadas. A tonta da Suzu, uma espi\u00e3? Nem em um milh\u00e3o de anos!<\/p>\n O epis\u00f3dio, logo descobrimos, \u00e9 um de muitos. Quando um porta-avi\u00f5es naufraga e os peixes morrem por conta do \u00f3leo, ela celebra: hoje teremos pescada! Quando os americanos lan\u00e7am panfletos sobre a cidade, ela n\u00e3o se preocupa com as batidas do kempetai<\/em>: acabam de ganhar papel higi\u00eanico!<\/p>\n O texto n\u00e3o se prende a dramas \u00f3bvios. O casamento de Suzu \u00e9 arranjado, mas isto n\u00e3o impede que ela e seu marido, Shusaku, acabem se apaixonando. Personagens morrem, mas o luto nunca degringola ao melodrama.<\/p>\n Kono Sekai no Katasumi ni <\/em>foi criticado por Hideaki Anno<\/a> por dar holofotes a uma mulher que \u201cn\u00e3o faz nada\u201d. Ledo engano. Suzu possui um poder que nenhum dos adolescentes birrentos de Evangelion<\/em> \u00e9 capaz de igualar: o de sempre sorrir, independente das circunst\u00e2ncias.<\/p>\n <\/p>\n Se essa sutileza funciona, \u00e9 porque est\u00e1 ancorada em uma arte primorosa, que tira o m\u00e1ximo do que a anima\u00e7\u00e3o tem a oferecer. Katabuchi j\u00e1 trabalhou no Studio Ghibli em filmes como O Servi\u00e7o de Entregas de Kiki<\/em>. Em suas tomadas, ele prova que aprendeu as li\u00e7\u00f5es de seus mestres.<\/p>\n O tra\u00e7o \u00e9 cartunesco, um meio-termo entre o realismo kawaii<\/em> de O T\u00famulo dos Vagalumes <\/em>e o impressionismo de Princessa Kaguya<\/a>. <\/em>Suzu \u00e9 uma desenhista amadora, que nunca sai de casa sem um l\u00e1pis. Ao longo do filme, as cenas s\u00e3o interpoladas com as imagens de seu bloquinho.<\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n \u00c9 uma t\u00e9cnica usada para efeito extremo, que torna o filme n\u00e3o apenas competente, mas inesquec\u00edvel.<\/p>\n<\/h3>\n
Nesse canto do mundo<\/strong><\/h3>\n
A import\u00e2ncia da leveza<\/strong><\/h3>\n