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videogame – finisgeekis http://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 02 Jun 2021 20:26:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32 videogame – finisgeekis http://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Mass Effect” e o fim da história http://www.finisgeekis.com/2021/06/02/mass-effect-e-o-fim-da-historia/ http://www.finisgeekis.com/2021/06/02/mass-effect-e-o-fim-da-historia/#respond Wed, 02 Jun 2021 20:20:56 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22880 Graças ao lançamento de sua legendary edition, a trilogia Mass Effect está de volta aos holofotes.

Era inevitável que esse dia fosse chegar. Remasters são uma necessidade no mundo dos games, uma solução – às vezes, a única – para garantir que jogos sobrevivam a seu hardware. E, de todos as obras que merecem esse tratamento, a franquia que ditou as regras de como games deveriam ser feitos – e apreciados – não podia ficar de fora.

Os ecos do furor popular que recebeu sua conclusão ainda ecoam nos confins da internet. Membros de seu elenco estão em listas de melhores personagens do mundo dos games. A franquia ganhou espaço em galerias de arte, sendo incluída em uma exposição no museu Smithsonian em 2012.

Louvada até hoje como um grande marco dos RPGs eletrônicos, Mass Effect ainda assim, é um enfant terrible de seu gênero. Desde o longínquo ano de 2008, quando deu as caras pela primeira vez, sua tão alardeada ‘liberdade de escolha’ não era lá essas coisas. Diálogos dublados, um protagonista semi-fixo e moral binária contribuíram para um enredo que parecia se desenrolar sobre trilhos.

Seu diferencial, contudo, estava no que foi capaz de fazer dentro desses limites. Poucos games antes – ou depois – usaram de forma tão robusta um sistema de importação de saves. Em Mass Effect, as escolhas carregadas de outros jogos chegam a mais de mil. Por mais que soubéssemos que estávamos vivenciando um roteiro, era difícil não sentir que as aventuras de Shepard e sua equipe pertenciam a nós.

Mas esse esforço em nos dar uma máscara que pudéssemos chamar de nossa vai mais longe do que imaginamos. Ao criar uma franquia construída, da cabeça aos pés, em ações e consequências, a Bioware fez mais do que entregar um game sci fi. Ela condicionou nossa imaginação a um gênero muito específico de ficção científica.

Que, quase uma década depois, mostra a sua idade – para o bem e para o mal.

O futuro nas nossas mãos

Mass Effect às vezes é zombada pelo quanto seu universo depende das ações de Shepard. A protagonista ronda a galáxia em uma missão contra o tempo e ainda assim encontra tempo para visitar centenas de planetas e resolver qualquer problema lançado em sua direção. Mesmo decisões que jamais deveriam caber a alguém na sua posição – o que fazer com a rainha rachni, salvar ou não o conselho —  terminam na mão de jogadores. Shepard ignora protocolos com a mesma energia com que fuzila inimigos, e o jogo nos induz a celebrar cada ato de protagonismo.

No que diz respeito a seu universo, contudo, celebrizar de tal forma sua protagonista traz uma consequência importante. Ao colocar o futuro de toda a galáxia nas mãos de uma única personagem, Mass Effect nos diz que o futuro, ele próprio, é maleável o suficiente para ser mudado por indivíduos.

Esqueça a paranoia de conservadores, que temem que consequências terríveis aconteçam se bagunçarmos as regras do mundo. Esqueça também o pessimismo de Karl Marx, que dizia que “os homens fazem a história, mas não da forma como desejam.” Em Mass Effect, nenhum esforço, por menor que seja, é em vão: nós fazemos a história – e a fazemos do nosso jeito.

Isso se deve em grande parte ao fato de seu “futuro” ser bastante familiar – e, justamente por isso, previsível e controlável. A Citadel é uma coalizão interplanetária não muito diferente da União Européia ou da ONU. O Almirante Hackett compara os sacrifícios necessários para vencer a Guerra contra os Reapers com a decisão de Harry Truman de lançar bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Não há decisão em toda a galáxia que não seja um dejà vu de um problema que nós terráqueos já enfrentamos no passado.

É como se a própria história tivesse esgotado seu baralho de novidades, e tudo o que lhe restasse fosse nos lançar reprises.

Nesse sentido, Mass Effect tem mais a ver com o universo de Star Trek, em que “aliens” não passam de humanos com maquiagem engraçada, do que com o Dr. Bowman de  2001: Uma Odisseia no Espaço, cuja jornada termina em um turbilhão metafísico em que a própria noção de “tempo” é posta em cheque. Shepard sabe exatamente o que enfrenta e o que deve fazer – mesmo quando as respostas chegam a ela em uma experiência transcendental.

É uma visão apaixonadamente otimista, mesmo quando as consequências são a aniquilação de tudo o que vive. O desenvolvimento não-sustentável dos Krogans, por exemplo, transformou seu planeta em uma cratera radioativa. Mesmo assim, eles têm o conforto de saber exatamente o que fizeram errado – e a receita para um dia fazer diferente, se a ocasião um dia surgir.

“[Tuchanka] foi um dia um mundo cheio de beleza” Eve diz a Garrus em Mass Effect 3. “Se lhe for dado uma chance, ele pode voltar a ser.”

O Fim da História e o Último Homem

Não foi a Bioware quem inventou essa maneira de enxergar o mundo – muito embora ela caiba feito uma luva na missão dos games de nos oferecer fantasias de poder. Nos anos 1990, ideias muito parecidas foram propostas por um historiador chamado Francis Fukuyama. O título de seu livro? O Fim da História e o Último Homem.

Não, Fukuyama não estava falando do fim literal dos tempos. Seu argumento era que o modelo de sociedade que temos hoje – a democracia liberal – era o destino inevitável para o qual marchava a humanidade. E, uma vez alcançado, nenhum outro sistema jamais o substituiria.

Sim, ditaduras ainda surgiriam aqui e ali. País sem tradições democráticas ou capitalistas demorariam mais para alcançar o mundo desenvolvido. Cedo ou tarde, porém, cada um desses regimes ou deixaria de existir ou se reformaria à imagem dos EUA e União Europeia.

Quando esse dia chegasse, a própria história deixaria de correr.  Pessoas continuariam a nascer e morrer, maus tempos seguir-se-iam aos bons, mas todas essas mudanças não seriam mais que variações sobre o mesmo tema; ondulações numa teia cujos fios nunca se romperiam.

Não é preciso ir muito longe para perceber o quanto sua visão era ingênua. Fukuyama escrevia em um Estados Unidos que acabavam de vencer a Guerra Fria e ainda não tinham experimentado o horror do 11/09. Seu livro é mais uma ode ao triunfo do capitalismo que uma profecia.

É, porém, justamente sobre essas ideias que Mass Effect constrói sua fantasia futurista. Illium é uma Hong Kong do espaço; Noveria, uma Suíça, com direito a lavagem de dinheiro e executivos inescrupulosos. A sociedade das Asari, descrita como a mais avançadas de sua geração, é ainda sim reconhecível como democracia; uma versão melhorada de um tipo de regime que conhecemos muito bem. Para os escritores da Bioware, como para Fukuyama, o futuro é liberal.

É verdade que existe uma boa explicação para isso. Os jogos nos contam que as sociedades da Via Láctea são parecidas por que todas foram guiadas por uma mesma civilização – os Protheans. E os próprios Protheans, descobrimos em Mass Effect 3, nada fizeram senão seguir as pistas deixadas pelos Reapers, que deliberadamente criaram a tecnologia dos mass relays para “afunilar” a vida sapiente – e, com isto, controlá-la.

Mas o simples fato desse plano funcionar sugere que a história, em Mass Effect, é um jogo de cartas marcadas.

Não encontramos em lugar algum a ousadia de uma Ursula le Guin, que ousou imaginar, já nos longuíquos anos 1960, sociedades em que noções de  “sexo” e “gênero” não existiam, ou onde relações humanas não eram baseadas na propriedade. Muito embora, tal como em Mass Effect, fossem oriundas do mesmo povo ancestral.

Nem, tampouco, o pessimismo de um Piquenique na Estrada ou Solaris, obras que sugerem que mesmo que o contato com uma inteligência superior ocorra, suas instruções seriam abstratas demais para nos fazer sentido.

Mais importantemente, a visão de mundo da trilogia mostra um terrível descompasso com os nossos tempos. Na esteira da grande recessão do mercado imobiliário americano, os anos 2008 – 2012 não foram nenhuma maravilha. Ainda assim, os jogos foram lançados em uma época que não tinha de se preocupar com os efeitos de uma pandemia, com tecnologias repressivas dignas de 1984 ou com os estragos em série de uma corja de uma populistas de extrema direita.

As ditaduras que Fukuyama previu que sumiriam continuam cada vez mais fortes e estáveis. O país que se diz símbolo da democracia sofreu uma tentativa televisionada de golpe de estado. Mesmo a ciência parece caminhar para trás, com invenções seculares – como a vacina – abertamente questionadas.

Até relativamente pouco tempo atrás, o mundo parecia tão consertável que cheguei a criticar a retórica apocalíptica da ficção young adult, dizendo que vivemos, pelo contrário, na época mais próspera, pacífica e tolerante que já existiu. Palavras que, hoje, soam terrivelmente infantis.

Tal infantis, na verdade, quanto os esforços que Mass Effect toma para nos convencer de que nossas escolhas importam. Tudo isto enquanto a vida real nos lembra que não temos sequer o poder de convencer nossos vizinhos a usar máscaras.

Mass Effect é uma série nostálgia, não só porque formou uma geração de gamers, mas porque é um fruto de uma época mais simples e otimista.

Uma época tão enamorada com a ciência que lançou cópias do jogo ao espaço como estratégia de marketing. Uma época em que podíamos sonhar que um dia as acompanharíamos a bordo de nossas próprias Normandies.

Uma época em que nutríamos a esperança de não apenas nos lançarmos ao futuro, mas de moldá-lo à nossa imagem. E que tínhamos a coragem, como dizia Shepard, de não deixar o medo comprometer aquilo que nós somos.

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Por que “Nier: Replicant” nos faz chorar http://www.finisgeekis.com/2021/05/26/por-que-nier-replicant-nos-faz-chorar/ http://www.finisgeekis.com/2021/05/26/por-que-nier-replicant-nos-faz-chorar/#respond Wed, 26 May 2021 21:21:55 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22862 Computadores podem te fazer chorar?

Essa foi a pergunta de um anúncio da Electronic Arts do início dos anos 1980, quando videogames ainda eram novidade.

Hoje, numa época em que games estão no acervo de museus e inspiram livros de poesia, é dífícil acreditar que isso um dia gerou dúvida. Pergunte a um gamer se já derramou lágrimas diante de uma tela e é provável que você precisará de um lugar para sentar. A resposta será longa – e, provavelmente, deixará você também em prantos.

Até que ponto nos emocionamos com um dado jogo depende de nossas experiências pessoais. Porém, não é segredo que alguns títulos forçam a barra para nos encolher à posição fetal.

Nier: Replicant, clássico cult de 2010 remasterizado esse ano aos novos sistemas, é um deles. Esquisito, avant-garde e não tão polido em termos de gameplay, o jogo de Yoko Taro é um exemplo da diferença que faz uma bela história. Não fosse sua capacidade sobrenatural de nos tocar pelas vísceras, é provável que acabasse tão abandonado e esquecido quanto as ruínas de seu universo pós-apocalíptico.

Qual, é o segredo? Como era de se esperar de um game com cinco finais diferentes, a resposta é mais complexa do que parece.

(AVISO: Contém SPOILERS de Nier: Replicant)

1) Ele nos motiva a fazer coisas. As mesmas coisas. Muitas vezes

Até seu mais ardente fã reconhece: Nier eleva o grinding a níveis estratosféricos, mesmo para o padrão de JRPGs. E não falo apenas das múltiplas vezes que somos obrigados a completar suas missões para acessar todo seu conteúdo.

Se colocarmos na ponta do lápis, veremos que a maior parte do jogo não passa de fetch quests. Muitas vezes, envolvendo itens raros, que exigem que visitemos os mesmos cenários incontáveis vezes, lutando contra hordas de inimigos idênticos.

Curiosamente, o que parece à primeira vista seu grande defeito é também a principal razão de seu charme.

Isso porque repetição não serve apenas para encher linguiça. Como todos aqueles que já choraram com um refrão de uma música sabem, ela é uma excelente maneira de nos fazer lembrar das coisas. Inclusive de sentimentos.

É fácil tratar NPCs em um RPG como meios a um fim: ferramentas, com máscaras humanas, que usamos para descansar, obter quests, vender itens e mais. Muitos são os games em que pessoas são reduzidas a objetos, vending machines à nossa conveniência.

As quests de Nier, pelo contrário, nos forçam a encarar NPCs como pessoas. E funcionam justamente porque são repetitivas.

Úrsula, a mulher do farol, não nos pareceria tão ingrata se não tivéssemos de subir e descer uma escadaria para atender a cada um de seus pedidos. A morte do velho pescador só nos parece significativa porque gastavamos horas a fio completamento cada uma de suas nove missões.

Popola e Devola não seriam tão parte da vida de Nier – e sua virada final jamais seria tão impactante – se não tivessem agido como quest givers de tantas tarefas banais ao longo de todo o jogo.

Mesmo os upgrades de armas, maior fonte de griding do jogo, são deveres “humanizados” que nos presenteiam com histórias. Muitas delas relacionadas a personagens e cidades que visitamos.

Nier: Replicant cria esses laços afetivos desde seu prólogo, mas é na segunda parte que entendemos,  visceralmente, o que eles significam. É apenas quando a vila de Popola é atacada que sentimos o vazio deixado pelos NPCs que morreram.

A mudança também afeta o meio-ambiente. Na medida em que as sombras se tornam mais forte, animais ficam mais raros. As focas na praia de Seafront desaparecem – talvez ( o jogo não nos conta) comidas pelos aldeões, cujos suprimentos minguam dia após dia.  

Estamos diante de um mundo em colapso. E é apenas por conhecê-lo tão bem que sentimos a gravidade de sua decadência.

2) Ele soa como se tívessemos acabado de chegar no paraíso. No meio do ensaio da orquestra angelical

Ainda mais que sua sensibilidade, Nier: Replicant é renomado por sua música. Mesmo aqueles que nunca jogaram o game já devem ter ouvido algumas de suas belas faixas.

Mas a música de Okabe não é apenas marcante. É marcante de uma maneira  muito específica. A combinação de uma orquestra bombástica, instrumentos eletrônicos e vocais líricos estaria mais em casa em um clipe velho do Nightwish do que em uma história que se pretende séria.

Tente imaginar Song of the Ancients embalando Nomadland ou Gods Bound by Rules na trilha de The Last of Us: Part 2 e entenderá o que quero dizer.

O SAY EEM MANOWEN EE SO HEE I

Sua trilha tem, sim, muito a ver com o universo do anime. Em especial, com o tipo de música industrial e vocalizada que compositores como Yuki Kajiura e Hiroyuki Sawano transformaram em sua marca registrada.

Isso não é uma coincidência.

Filmes live action contam com edição de primeira, cinematografia e expressividade de seus atores para contar uma história. Embora a trilha ajude, não esperamos que ela venda o peixe por si só. Um simples close no rosto de uma personagem pode passar mais emoção que todos os instrumentos do mundo.

Não é à toa que estudantes de cinema às vezes recebem a dica de que precisam assistir a filmes no mudo.  Sem a música para ajudar, fica claro se os elementos visuais estão fazendo seu trabalho direito.

Animes para a TV  são uma mídia bastante diferente. Estúdios operam a toque de caixa, dando espaço limitado a diretores para que exercitem toda sua criatividade. Por mais que contem com olhos gigantes e designs exagerados, suas personagens não chegam aos pés da expressividade de um ser humano. Movimentos labiais são simples e não tem a intenção de “bater” com o diálogo que está sendo dito.

Como disse a própria Yuki Kajiura – que tem no currículo trilhas como Fate/Zero, Madoka e Noir:

Na animação, a música desempenha um papel mais importante que em filmes de verdade porque filmes têm som e atmosfera. Mas às vezes a animação sofre com a falta de alguma coisa. Se é apenas a imagem, é difícil de entender, mas a música adiciona atmosfera e cria uma atmosfera completa para a cena em aprticular. […] A melhor trilha sonora não é apenas sobre a música, mas transmite muitas emoções e sentimentos em uma cena em particular.

Com Nier: Replicant é a mesma coisa.

Mesmo para os padrões de 2010, quando foi originalmente lançado, o game de Yoko Taro não era uma produção das primeiras. Sua fidelidade gráfica não é das melhores. O jogo conta com pouquíssimos modelos de personagem. Sua animação é tão limitada que seus NPCs sequer mexem os lábios – coisa que o jogo esconde, com uma câmera que nos impede de ver seus rostos de perto.

Mas animação fina é desnecessária em um jogo que conta com faixas como Emil / Sacrifice, Grandma ou Song of the Ancients. É difícil não se emocionar quando nosso próprio corpo reage com calafrios.

3) Ele nos lembra que, no grande esquema das coisas, somos insignificantes

Esse é um ponto que o jogo tem em comum com sua sequel – sobre a qual já escrevi no passado. Ainda assim, não dá para não mencioná-lo de novo. Replicant/Gestalt, afinal de contas, é o tubo de ensaio onde a criatividade errática de Yoko teve a oportunidade de amadurecer na genialidade de Automata.

Nier nos sacode nas bases porque nos lembra que somos insignificantes. Para mudar o mundo, para perpetuar nossas comunidades – até mesmo, para salvar a nossa consciência.

Sim, nós ações têm consequências. Algumas, como a exploração não-sustentável do meio-ambiente, podem bem trazer um apocalipse como o retratado pelo jogo.

Porém, mesmo a humanidade que perecerá nesse cataclisma é um ínfimo segundo diante da eternidade do universo. Um dia morreremos. Um dia, todos que nos conheceram morreremos. Um dia, não existirá mais sequer uma “Terra” para preservar as ruínas do que um dia fomos.

Essa é a linha mestra que une cada decisão criativa do jogo. Nier luta para proteger a vida de uma irmã, sem se dar conta de que ela não está mais viva. Os últimos habitantes da Terra se esforçam para preservar o que restou da civilização, sem se dar conta de que não são humanos e a verdadeira sociedade já há muito desapareceu.

Todos os inimigos que derrotamos? Em vão. Todos as armas que aprimoramos, os itens que colecionamos? Inúteis. Todas as pessoas que ajudamos? Meros replicantes, desprovidos de alma.

No fundo, nada importa.

Esse pessimismo está longe de ser novidade. Poucos deram voz a ele melhor que Percy Shelley em Ozimandias – um poema tão querido pela cultura pop que influenciou de Watchmen a Breaking Bad:

Ao vir de antiga terra, disse-me um viajante:

Duas pernas de pedra, enormes e sem corpo,

Acham-se no deserto. E jaz, pouco distante,

Afundando na areia, um rosto já quebrado,

De lábio desdenhoso, olhar frio e arrogante:

Mostra esse aspecto que o escultor bem conhecia

Quantas paixões lá sobrevivem, nos fragmentos,

À mão que as imitava e ao peito que as nutria

No pedestal estas palavras notareis:

“Meu nome é Ozymandias, e sou Rei dos Reis:

Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!”

Nada subsiste ali. Em torno à derrocada

Da ruína colossal, a areia ilimitada

Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.

É um texto que poderia servir de epitáfio à cidade de Façade, mas que cai como uma luva à vida de Nier e seus amigos. Nossas ações podem parecer relevantes no momento em que as tomamos. Porém, nos quase 14 mil anos que separam Replicant de Automata, serão completamente esquecidas, como os obras de Ozimandias.

E o game torce a faca nesse ponto, literalmente apagando nossos saves tão cedo chegamos no final.  

Mas é justamente aí que a versão 1.22474487139…, como seu remake é chamado, mostra a que veio.

Seu novo epílogo, inédito no jogo original, deixa claro que a mesma insignificância que nos condena pode ser nossa maior salvação.

Se o futuro longínquo nos reserva apenas o vazio, estamos livres para construir nossa felicidade no aqui e no agora.

Se a vida não tem sentido, cabe a nós dar a ela o sentido que escolhermos.

Se a marcha da história nos leva a um caminho sem fim, não há por que vivermos sob as amarras da tradição, dos rancores, do passado.

O rei de Façade pode abandonar seu posto, sacrificando a vida em nome de Nier. Yonah pode ceder lugar a sua replicante, condenando à morte toda a humanidade. E Kainé pode abandonar o ódio que a alimentou desde a morte da avó, pois seu coração finalmente descobriu algo mais forte.

Um instante, conquanto efêmero,  em que ela sabe que está completa.

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“The Life and Suffering of Sir Brante”: A História não é um simples dominó http://www.finisgeekis.com/2021/03/24/the-life-and-suffering-of-sir-brante-a-historia-nao-e-um-simples-domino/ http://www.finisgeekis.com/2021/03/24/the-life-and-suffering-of-sir-brante-a-historia-nao-e-um-simples-domino/#respond Wed, 24 Mar 2021 20:53:44 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22722 Muito tempo atrás, quando videogames ainda eram novidade, estudiosos da mídia se perguntavam qual era a melhor “caixinha”, no mundo da arte, em que deveriam ser colocados.

Alguns defendiam que eles eram apenas outro tipo de jogo, igual ao xadrez ou mesmo ao futebol.

Outros argumentavam que eram uma forma de contar histórias, comparável ao cinema, a literatura e ao teatro.

Não demorou para que ambos percebessem que estavam errados. Videogames eram uma mistura das duas coisas – e mais tantas outras que não haviam antecipado. Tentar separá-las ia justamente contra aquilo que os tornava uma arte tão fascinante.

Mas ambos também estavam certos – em relação a outra coisa. A despeito de seus códigos e interfaces gráficas, games não são uma mídia completamente “nova”. Eles remontam a tradições – de narrativas, de divertimentos, de maneiras de entender o mundo – que acompanham a humanidade desde os seus primórdios.

De vez em quando surge um jogo para nos provar que isso sempre será verdade, não importa quão sofisticados fiquem nossos computadores e consoles.

The Life and Suffering of Sir Brante, RPG baseado em texto desenvolvido pelo estúdio Sever, é um desses games.

Roleplay em tempos de revolta

Que Sir Brante não é um RPG como os outros fica claro já em sua primeira tela. Enquanto que muitos títulos do gênero se contentam em ser um pastiche de J.R.R. Tolkien, dando ao seu universo um tom vagamente europeu e medieval, Sir Brante mira uma época mais recente. Seu estilo artístico parece se inspirar em xilogravuras e águas-fortes dos séculos XVI e XVII.

A referência tem um porquê que se torna evidente quando jogamos o game. Sua história nos leva auma monarquia fictícia conhecida como o Abençoado Império Arkniano. Mais precisamente, como o subtítulo revela, na época em que esse império encontra seu fim.

No que consiste essa derrocada é um mistério que Sir Brante guarda para o final. O jogo é um RPG baseado em texto no estilo de Fallen London, que acompanha retrospectivamente a vida de um homem que virou seu mundo de ponta cabeça.

Seu enredo é organizado em cinco capítulos, correspondentes às fases da vida de seu protagonista. Desde o primeiro, – “Infância” – observamos as tensões que mais tarde se tornarão críticas.

O Abençoado Império, aprendemos, é um mundo cruel cuja sociedade é dividida em três estados: os nobres (que mandam), os plebeus (que sofrem) e o clero (que justificam a desigualdade perante à lei como parte de um plano divino).

As coisas começam a mudar quando a própria Igreja  começa a questionar sua doutrina. Da opressão aos camponeses nasce um movimento dissidente – a Nova Fé – que prega o livre acesso às escrituras e defende o dever de cada um buscar sua própria salvação.

Se você entende de história – ou é fã de Europa Universalis –  já deve ter entendido do que Sir Brante realmente se trata. Seus “padres dissidentes” são uma referência óbvia a Martinho Lutero e os primeiros protestantes. O próprio “Abençoado Império Arkniano” nada mais é que o Sacro Império Romano-Germânico, antigo estado na Europa Central onde Lutero nasceu. E cuja resistência em aceitar sua “nova fé” mergulhou a Europa em uma das piores guerras de sua história.

“O Enforcamento” por Jacques Callot (1633)

As Guerras de Religião

Dissidentes enforcados em “Sir Brante”

Como escrevi em outro artigo tempos atrás, RPGs são um gênero complicado. Vivem nos prometendo “liberdade de escolha”, mas esquecem de nos dizer que as “escolhas” em questão quase sempre estão “sobre trilhos”.

Na maioria das vezes, elas consistem apenas em escolher entre duas ou três alternativas opostas. Geralmente bem identificadas, para que saibamos exatamente o que estamos escolhendo.

Sir Brante joga essa convenção pela janela. Nada mais justo para um game inspirado nas Guerras Europeias de Religião,  uma série de conflitos super-complexos que não podem ser resumidos a paragons e renegades.

O jogo contém um número surpreendente de caminhos, mesmo para um RPG sem uma interface gráfica propriamente dita.

Como em visual novels, há uma série de “rotas” principais, correspondentes aos três estados que regem o Império Arkniano. Dependendo das escolhas que tomar em seus anos de formação, Brante pode se tornar um nobre, um padre ou continuar um plebeu.

Dentro de cada caminho, porém, é possível se posicionar a favor ou contra o status quo. E no seio de cada uma dessas lutas, é possível optar pela via reformisma ou pela violência desenfreada.

Obviamente, nada é tão simples quanto parece. Isto porque o cabo de guerra entre situação e revolução é representado como métricas distintas, cada qual com seus valores máximos e mínimos.

Se qualquer um desses termômetros políticos chegar no extremo, em qualquer uma das direções, o resultado invariavelmente será um banho de sangue – seja no sentido da anarquia, seja de uma reação brutal contra os oprimidos.

Há aqui uma lição importante sobre a natureza do populismo. Lute pelos seus direitos e você pode mudar o mundo para o melhor. Porém, se sua luta violar essa frágil malha de civilidade que chamamos de Estado de Direito, é muito provável que sua cabeça termine ao lado das dos tiranos que almejava depor.

De um ponto de vista de game design, o que impressiona nesses desenlaces é como a equipe do estúdio Sever conseguiu escrever uma história coesa sem que saibamos, até o último momento, que rumo nossa jornada tomará.

Isso jamais seria possível sem o imensa sensibilidade de seu roteiro e o carinho com que trata suas personagens.

Casos de família

“Esteja pronto a aceitar que Sir Brante não conseguirá vencer cada desafio em seu caminho” o jogo nos avisa ao começarmos a campanha, “Cada vitória será uma luta – um caminho calcado por derrotas amargas e fracassos torturantes.”

“O que será de Sir Brante, seus entes amados, e seu mundo?”

Essas palavras salientam bem a natureza do jogo da Sever: essa não é uma história sobre ideias, e sim sobre pessoas.

Boa parte da trajetória de nosso protagonista é passada ao lado de sua família, ao longo de três décadas de crises, tragédias e alegrias compartilhadas.

Brante é filho de Robert, membro da baixa nobreza, e Lydia, camponesa que trouxe à casa sua filha Glória, fruto de um estupro por um nobre abusador. Eles também vivem com Stephan, filho de Robert com sua primeira esposa, uma nobre “da espada” – i.e. que pertence ao alto escalão do Império e tem o direito de passar seu título aos filhos. Por conta disso, ele goza dos privilégios da aristocracia, enquanto seus irmãos, apesar de morarem na mesma casa, são seus inferiores.

Robert é um reformista de coração, mas nunca teve coragem de peitar seu próprio pai, alpinista social disposto a sacrificar tudo para não ser confundido com um plebeu  – em uma cena, ele literalmente tenta colocar fogo na própria casa com a família dentro.

Stephan constantemente humilha seus irmãos plebeus, em especial Glória, que considera a culpada por todos os problemas da família. Cada esporro, porém, torna a irmã mais hostil – e desdenhosa dos esforços de Stephan para erguer a reputação dos Brante.

Lydia, a mãe, faz o possível para manter a família unida, muito embora ela seja a que mais sofra nas mãos de Stephan e do sogro. Paradoxalmente, ela é também uma religiosa devota que acredita que sua opressão é obra de Deus e não deve ser resolvida.

Não é preciso dizer que seja qual for a revolta que Sir Brante vier a armar, ela não descerá bem com sua família.

Esses conflitos trazem à mente We. The Revolution, outro jogo que usou a família do protagonista para dar um rosto humano a um período conturbado da história. No caso, a Revolução Francesa.

Porém, se naquele jogo a ruína da família era uma tragédia anunciada – um lembrete de que revoluções invariavelmente decapitam até mesmo aqueles que manejam a guilhotina – em Sir Brante temos a opção de evitar o pior.

Nenhuma dos caminhos para isso é fácil. O que só torna nossa derrota mais amarga quando nossos esforços para salvar a família fracassarem. Ou quando descobrimos, tarde demais, o preço terrível que teremos de pagar por eles.

O dilema não acaba na família. Virtualmente todas as pessoas com que Brante se relaciona em sua vida pessoal desempenharão um papel na arquitetura de sua revolta. Para ajudá-lo – ou, às vezes, opondo-se a ele até as últimas consequências.

Nesse sentido, Sir Brante é praticamente um anti-Dragon Age II. Se o muito criticado game da Bioware nos obrigava a assistir uma revolução que acontecia à nossa revelia, no jogo da Sever todo o combustível da revolta já está presente desde a nossa infância, esperando apenas nosso movimento estabanado para espalhá-lo e incendiá-lo.

Cada uma de nossas ações – mesmo as mais inconsequentes – terão um papel a desempenhar na Hora H.

“Como uma pessoa normal se torna uma figura história?” escreveu Fyodor Slusarchuk, autor do cenário de Sir Brante, no artbook oficial. “Que caminho alguém percorre para ganhar o poder de remodelar o muito inteiro ao seu redor? Estas são as questões que quisemos fazer ao público”.

De que essas perguntas foram feitas, não há dúvidas.

Mas será que são as perguntas certas?

O dilema das decisões importantes

 

O problema de se acreditar que “cada decisão importa” é que, no mundo real, isso não podia ser mais longe da verdade. Boa parte das coisas que fazemos, dizemos e sofremos não significa coisa alguma.

Mesmo as pessoas que de fato mudaram o mundo não passaram toda sua vida planejando seu grande ato. Não são raros aqueles que se imortalizaram por um único ato de heroísmo. Às vezes, fruto da mera sorte; outras, contrário a tudo o que haviam feito antes.

“Deus escreve certo por linhas tortas” e “há males que vêm para o bem” não seriam ditados populares se não tivessem um fundo de verdade.

Isso não vale apenas para as pessoas, mas também para a própria história. Não é porque nosso presente veio na sequência de épocas passadas que todos os problemas que enfrentamos hoje são resultados de um dominó iniciado quando o primeiro humano descobriu o fogo.

Foto: os responsáveis pela lentidão no combate à Covid-19 em 2020

Admitir o contrário implica em aceitar a conclusão simplista  – e terrivelmente conservadora – de que somos escravos de nosso passado. E que, por consequência, ninguém é responsável de verdade pelas próprias ações.

Se todos os problemas do Brasil vêm da época colonial – como dizem ingenuamente certos professores de história, desesperados para que seu trabalho seja levado a sério – não há por que nos responsabilizarmos pelos erros e desastres do presente.

Se a crise ambiental que enfrentamos é resultado direto da Revolução Industrial, não adianta mexermos um dedo para salvar o planeta. Trezentos anos de desenvolvimento não-sustentável nos trouxeram até aqui. Não será a retórica de uma Greta Thunberg que nos desviará desse caminho.

Se o futuro de uma pessoa é determinado já na sua infância, é inútil investir em educação, assistência ou formação profissional. Afinal, uma vez miserável, sempre miserável.

Se nossa sociedade é desigual e injusta, é porque “tem de ser”. Milênios de civilização nos trouxeram até esse ponto. O que seria um punho erguido perto de toda essa ação humana acumulada?

Tudo o que nos resta a fazer é baixar nossa cabeça e aceitar calados nosso estado como os plebeus do Império Arkniano.

Mas há outra forma de ler Sir Brante que vira de ponta-cabeça essa interpretação. E sua chave está na própria interface do jogo.

Sir Brante é um livro. Mais precisamente, um livro de memórias escrito pelo próprio Brante, na tentativa de entender sua própria vida.

O game deixa isso claro desde o primeiro momento, obrigando-nos a responder “quem determina o destino de um homem?” Pergunta esta que ele repete em diversos da história, como se nos desafiasse a mudar de opinião.

Essa “história dentro da história” esconde uma lição ainda mais importante do que as mensagens que o jogo traz sobre política, história ou relações humanas. Nossa passagem por esse mundo – e a de todas as pessoas  – não é apenas uma lista de lavanderia de coisas que aconteceram. É, também, uma narrativa.

Uma tentativa de agrupar nossas alegrias e sofrimentos, conquistas e derrotas, de uma maneira que faça sentido: que nos convença de que não vivemos à toa, de que seremos lembrados, perdoados, vingados; de que mundo que deixamos não é o mesmo de quando nascemos – para o bem ou para o mal.

A história não é um dominó inevitável que une o Homo erectus às eleições de 2018. Somos nós que escolhemos encará-la dessa forma, seja porque isso permite prever minimamente o futuro (ainda que com uma grande margem de erro), seja apenas porque tememos um Deus que joga dados.

É essa decisão que Sir Brante nos convida a tomar. Certas eventos com que nos deparamos ao longo do jogo nos dá a entender que estamos no controle. Outros tantos acontecem à nossa revelia. Há sinais de que a divisão da sociedade em três estados é mesmo parte de um plano divino. Outras pistas sugerem que não existem deuses – e que a própria realidade não passa de um sonho.

Certas pistas são melhores que outras. Mas decidir quais segui-las, e qual história com elas escrever, depende apenas de nós.

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“If All the World and Love Were Young”: o amor aos games para além da nostalgia http://www.finisgeekis.com/2021/02/03/if-all-the-world-and-love-were-young-o-amor-aos-games-para-alem-da-nostalgia/ http://www.finisgeekis.com/2021/02/03/if-all-the-world-and-love-were-young-o-amor-aos-games-para-alem-da-nostalgia/#respond Wed, 03 Feb 2021 17:56:47 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22589 Semanas atrás, enquanto dava uma aula, alguém me perguntou se os games já haviam influenciado a literatura.

Essa pessoa não se referia às inúmeras novelizações de jogos eletrônicos, às light novels isekai ou a fenômenos como The WitcherO que ela queria saber é se jogos já apareciam na literatura dito “séria”: Guimarães Rosa e Shakespeare mais do que Ernest Cline e George R.R. Martin.

Millennials Gen-Zs, afinal de contas, nasceram e cresceram com um controle em mãos. Será que os novos clássicos da literatura que essas gerações virão a produzir serão influenciados por essa mídia?

É uma pergunta interessante, que muitos amantes de literatura e games talvez já tenham se feito.

Graças a Stephen Sexton, porém, não precisamos mais adivinhar a resposta.

It’s a me, Mario!

Não há maneira de descrever a obra de Stephen Sexton que faça jus à simplicidade – e ousadia – de sua proposta: If All the World and Love Were Young conta a história real da batalha de sua mãe contra o câncer, narrada como uma releitura de Super Mario World.

Não, você não leu errado. Escrito em verso, o livro é uma coletânea de poesia diretamente inspirada pelo clássico da Nintendo. Cada um dos 96 poemas empresta seu título e vocabulário de uma das fases do game, divididos em nove partes correspondentes aos seus “mundos”: Yoshi’s Island, Donut Plains, Vanilla Dome, Twin Bridges, Forest of Illusion, Chocolate Island, Valley of Bowser, Star World e Special World.

A história que contam, porém, não tem nada de inocente.

O “precinto de tefra cuspida a rocha como/ mel negro dobrando-se” de Iggy’s Castle, por exemplo, vira uma metáfora para as terríveis dores causadas pelo tratamento da mãe, “alguém de pé cercada de fogo que / diz para seguirmos em frente / sem mim”.

As enfermeiras indo e vindo no hospital são comparadas aos fantasmas da Vanilla Ghost House; as correntes de seus relógios aos morcegos que dormem de ponta-cabeça. Já a mesa de operação, com suas tesouras e bisturis, se transforma nas armadilhas afiadas de Morton’s Castle, “ […] onde ro-/chedos sorriem e/ quicam abaixo/ uma maça que balança girando seu mais cheio círculo.”

O médico em si é descrito com uma aura de terror que apenas uma criança diante de uma boss fight iminente é capaz de entender:

No castelo está o cirurgião magro e elegante

como um garfo.

É assim que se faz precisamente ele diz

afiando seu dedo

até um gume tão fino mais fino que qualquer brilho

em seu olho.

Como diz o próprio autor no prefácio, a ideia de aplicar referências tão meigas a um episódio tão mórbido veio de uma velha foto de 1998, tirada pela mãe, em que ele aparece jogando seu SNES. Honrar a memória daquele momento de alegria se tornou uma missão depois que o câncer tolheu a vida de sua progenitora.

Mas Sexton, cuja obra faturou o Forward Prize (um dos prêmios mais prestigiosos dedicados a novos poetas), não se limitou a reciclar imagens de Super Mario. Parte do motivo que fez seu livro conquistar um público tão amplo – e, de certa forma, tão tradicional – foi sua capacidade de combinar sua nerdice com imagens que dispensam explicações.

Nascido na Irlanda do Norte em uma época em que seu país ainda sofria sob o terrorismo, seu livro é recheado de referências aos pesadelos que testemunhou quando crescia.

Em Forest of Illusion 3, ele nos conta como “no rádio/na cozinha há uma devastação de Omagh bem a-/lém do lago”, uma referência ao atentado de Omagh de 1998, o episódio mais sangrento das Troubles.

Já em Donut Plains 4, os goombas — “avelãs [ que ] desmaiam e rolam por aí e / outras caem de paraquedas / de árvores” são comparados às nozes coletadas para a produção de munição na Primeira Guerra Mundial:

Durante as guerras do século sombrio eu lia que cri-

anças enchiam seus bolsos

Com avelãs para transformar em acetona para

transformar em

cordite em ogivas esperando armadas nos fu-

zis de seus primos.

Nós, que crescemos jogando games e vivemos nossas vida sob seu prisma, sabemos que a mídia é bem mais que uma brincadeira de criança. Jogos como Mass Effect, Majora’s Mask, Life is Strange, Nier: Automata e tantos ganharam espaço no cânone por trazerem a mesma sensibilidade humanista oferecida pelo melhor da ficção.

Sexton vai além e nos mostra que mesmo um simples platformer visto através de uma TV de tubo pode ser uma ajuda para encaramos – e aceitarmos – as verdades mais dolorosas que enfrentaremos na vida.

Com isso, ele passa uma lição que todos que se dizem “nerds” deveriam urgentemente escutar.

A doença da nostalgia

A despeito de suas pretensões de progressismo – e da juventude daqueles que se identificam com ela – a cultura nerd é obcecada pelo passado.

A doença tem um nome – “nostalgia” – e um modus operandi – a adoração de qualquer obra, brinquedo ou personagem, que tenha feito parte de nossa juventude. Nem que ela tenha sido apenas uma desculpa descarada para vender brinquedos.

A religião da nostalgia encontra sua expressão máxima no livro Jogador No 1 de Ernest Cline, uma “carta de amor” à nerdice que cita mais referências do que cabem em todo o MCU, mas não é capaz de dizer por que elas são importantes.

Essa devoção ao entretenimento do passado age quase como fim em si, como se estivéssemos mais preocupados em justificar o tempo perdido fazendo “coisas de fã” que tirando dessas obras alguma coisa engrandecedora.

O que Cline e outros nostálgicos não percebem é que a nostalgia que sentimos, no fundo, não vem dos desenhos, brinquedos e jogos que de nossa infância. Vem, sim, da própria época em que éramos jovens o suficiente para apreciá-las.

Sentimos falta de uma época mais simples em que passávamos às tardes no tapete, assistindo a desenhos por horas a fio sem se preocupar com contas a pagar, pandemias ou presidentes facínoras.

Sentimos faltas de sermos crianças com um futuro ainda pela frente, não adultos que desperdiçaram a vida assistindo animes moe enquanto nossos pares fundaram empresas, revolucionaram a ciência, publicaram livros e deixaram sua marca no mundo.

Sentimos falta de sermos pequenos demais para entendermos de política ou termos alguma consciência social – e de não percebermos, portanto, que as obras que assistíamos haviam sido feitas por pessoas reais, falando de coisas reais à sombra de violências reais. De onde o incômodo de tantos nerds reacionários para que seu entretenimento “para de falar de coisa séria” e volte a ser um escapismo vazio.

Sentimos falta da nossa avó, hoje falecida, que nos preparava um lanche enquanto jogávamos Mario Kart com o coleguinha de escolaDe nosso pai, hoje divorciado e morando em outro estado, que nos levava na loja de brinquedo para comprar um boneco de Power Rangers. De amigos que pensávamos inseparáveis, mas de que hoje só nos lembramos do nome. Às vezes, nem mesmo isso.

Como Thanos de posse da manopla do infinito, o que realmente queremos – mas não admitimos – é estalar os dedos e voltar os ponteiros do relógio de nossa própria vida, de maneira a curtir de novo a idade da inocência.

O problema é que essa inocência jamais voltará, ainda que nos enganemos vestindo camisetas de heróis e encarando a vida como se tivéssemos superpoderes.

Quando o mundo e o amor eram jovens

Sexton sabe disso muito bem, e é por isso que seu livro é uma das melhores – se não a melhor obra literária já escrita sobre o mundo dos games.

Como ele próprio disse, “[eu] logo percebi que esse jogo em particular era de tal forma parte da minha infância que eu não podia escrever sobre ele sem pensar na minha infância e não podia pensar na minha infância sem pensar na tristeza”.

O poeta irlandês Stephen Sexton. Fonte: Belfast Telegraph.

Cada um dos poemas que compõem sua narrativa é uma tentativa de fazer as pazes com o fato que todos os power ups e vidas extras do mundo não trarão sua mãe de volta.

Aquela tarde de 1998 em que foi fotografado jogando Super Mario World jamais será mais que uma foto, uma memória cada vez mais distante e inacessível. Tudo o que nos resta fazer é nos inspirar no momento em que a luz de uma tela nos iluminou e encontrar nossa própria luz para nos guiar na jogatina que chamamos de vida:

 

e a voz dela se movia pela borda do

mundo e agora eu

acho eu

lembro o que eu quero dizer que é apenas

dizer aquilo uma vez

quando todo o mundo e o amor era jovem eu

o vi belo brilhando

uma vez no canto da sala uma vez eu estava

sentado em sua luz

 

If  All the World and Love Were Young é um primor literário, um tesouro que faz aos games o que As Incríveis Aventuras de Kavalier e Clay fez aos quadrinhos de herói e A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao fez à nerdice como um todo. Mais do que um tributo à cultura pop, é a chave de que ela precisa para escapar do reacionarismo das fanbases, do ultracomercialismo das convenções e da obsessão trivial, fanática por “referências”.

A cultura nerd é capaz de mais do que isso. A princesa está em outro castelo. E Sexton acaba de nos mostrar o caminho.

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O problema emocional de “Cyberpunk 2077” http://www.finisgeekis.com/2021/01/06/o-problema-emocional-de-cyberpunk-2077/ http://www.finisgeekis.com/2021/01/06/o-problema-emocional-de-cyberpunk-2077/#respond Wed, 06 Jan 2021 21:00:41 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22497 (Aviso: contém SPOILERS de Cyberpunk 2077)

Tive um amigo parecido com Johnny Silverhand.

Não, ele não era um roqueiro, nem terrorista, tampouco tinha um braço cibernético. Mas ele tinha, como o deuteragonista de Cyberpunk 2077, a gana de “encarar a morte”.

Meu amigo sofreu uma grande decepção amorosa enquanto prestava o serviço militar. O fora o transformou em um guerreiro exemplar. Permaneceu nas Forças Armadas muito mais do que a lei o obrigava.

Não se engane: ele não era um patriota. O que o movia era o perigo. Para se distrair da dor que sentia, passou a se voluntariar para todo tipo de missão. Era como se, lá no fundo, desejasse morrer durante um resgate ou treinamento na selva.

Um dia, sua dedicação o colocou no hospital. Imediatamente depois ele deu adeus à carreira militar. Quando perguntei por quê, ele me confessou:

“Eu tenho uma namorada agora. Quando estive internado, o rosto dela não saía da minha cabeça. Eu não posso mais fazer isso sabendo que há alguém me esperando em casa.”

Ao jogar Cyberpunk 2077, não pude deixar de lembrar de meu amigo. E quanto mais avançava em sua história futurista sobre vida e morte, violência e redenção, mais eu percebia que havia algo de profundamente errado na mensagem que o game quis passar.

Never fade away

Se tirarmos de Cyberpunk 2077 sua roupagem sci-fi e implantes cibernéticos, veremos que a história por baixo segue um caminho bastante familiar: a jornada de uma pessoa que descobre ter os dias contados.

Conflitos como esse estão longe de ser novos. É possível que você, leitor, já o tenha enfrentado, ou conheça pessoas que o fizeram. É o drama que sentem aqueles diagnosticados com câncer, que se submetem a cirurgias arriscadas ou que se voluntariam para uma guerra de que não esperam retornar.

A ficção está cheia daqueles que aproveitam esse dilema para fazerem a diferença em suas vidas. Seja aos outros ou a si mesmos.

É o que fez Michael Furey, personagem do conto Os Mortos de James Joyce, que preferiu “atravessar corajosamente ao outro mundo no serviço de alguma paixão a desaparecer e definhar tristemente com a idade”. É o que fez Johnny Silverhand ao ficar para trás durante seu atentado terrorista para garantir que seu manifesto circulasse.

Mantidas as proporções, é o que tentou fazer também meu amigo, lançando-se aos perigos da carreira militar para não ter de sofrer uma vida desiludida.

Cyberpunk, à primeira vista, conta a história de uma pessoa assombrada por essa mesma decisão. Dexter deShawn, o inescrupuloso fixador que lança V à missão que lhe custará a vida, apresenta-se com a seguinte pergunta: “Você prefere viver na paz como um zé-ninguém e morrer de velhice ou apostar tudo pra ditar a história e nem chegar na casa dos trinta?”

Dexter, que prefere a primeira opção, acaba morto no mesmo lixão em que V ativa a consciência de Johnny Silverhand. Esse mesmo lugar, descobrimos depois, esconde o cadáver de Rache Bartmoss, lendário hacker que também morreu “ditando a história.”

Não é preciso ser um adivinho, nem ter lido spoilers, para entender que algo parecido marcará o destino de V.

Histórias como essa são naturalmente poderosas. A morte chega a todos um dia, e a perspectiva de morrer em vão nos apavora mais do que bater as botas.

Como escreveu Alasdair Gray em seu romance Lanark, “a morte raramente acontece quando as pessoas estão no seu melhor. É por isso que nós gostamos de tragédias. Elas mostram homens terminando enérgicamente com suas faculdades intactas e merecendo morrer.”

Em um cenário como o de Cyberpunk 2077, em que o próprio valor da vida é posto em cheque, uma premissa como essa é duplamente efetiva. V, neste sentido, poderia ser uma resposta futurista ao Booker deWitt de Bioshock Infinite: uma criminosa que espelha sua própria realidade distópica, sem futuro possível além de levá-la consigo ao inferno.

Para crédito dos roteiristas, o jogo pincela ideias como essas aqui e ali. “Sua oferta foi uma merda” diz V a um funcionário da Arasaka em um dos finais possíveis “Mas, ao fazê-la, você me deu uma coisa melhor.”

“Antes, a morte era inevitável. Um fato da minha vida de merda. Você me permitiu escolhê-la, aceitá-la nos meus termos.”

V não deseja sobreviver apenas porque tem medo da morte. Seus diálogos deixam claro que sua luta é contra a própria Night City, antro de cobiça e violência em que a vida humana não tem valor e a morte mal vale um obituário.

É por isso que, ao suicidarmo-nos no final “ruim”, o jogo se encerra com uma tomada de Night City.

É a cidade que venceu de novo, abafando mais uma alma rebelde, mais um disparo esquecido em sua escuridão.

Infelizmente, a história que une essa premissa com esse final parece ter vindo de um jogo completamente diferente.

Viver como um Zé Ninguém ou ditar a história?

O que Cyberpunk parece esquecer é de que a escolha dada por deShawn  é fundamentalmente egoísta. Ela faz sentido se não tivermos nada a perder – ou se agirmos que nem um sociopata, “matando quem tivermos de matar”, como aconselha a boneca do Clouds na missão “Amor Automático”.

Porém, como meu amigo militar descobriu do jeito difícil, as coisas se complicam quando forjamos relações com outras pessoas. A partir do momento que convidamos alguém à nossa vida, o preço de terminá-la não é mais apenas nosso.

O problema de Cyberpunk 2077 é que sua missão principal nos empurra ao fatalismo, mas o jogo em torno dela nos incentiva a construir novos vínculos. Boa parte das side quests que recheiam as suas mais de 100 horas nos colocam cara a cara com pessoas que estão reconstruindo suas vidas. E que esperam que V seja parte de seu futuro.

Judy Alvarez deseja retomar o clube Clouds para vingar sua amiga Evelyn. Seu apreço por V é tamanho que aceita largar Night City ao seu lado – e o fará sozinha, caso seja rejeitada. River Ward quer ter uma vida em família ao lado da irmã e sobrinho. Panam deseja retornar ao seu clã. Kerry Eurodyne, em uma série de missões que formam a melhor parte do jogo, encontra um novo sentido para a vida ao lado de uma banda de idols..

Essas não são pessoas dispostas a “encarar a morte” de frente como Johnny Silverhand. Pelo contrário, como a namorada de meu amigo, elas esperam reencontrar V são e salva quando a poeira baixar.

É justamente por isso que o fim iminente da protagonista funciona tão bem como um dispositivo de enredo. Nós sabemos que sua morte arruinará irremediavelmente a vida dessas pessoas.

Quando um jogo permite que desenvolvamos esse tipo de afeto por suas personagens não é suficiente que apele a um final trágico. É preciso que este sentimento retorne à V de alguma forma; que sua escolha final, na sacada da loja de Misty, seja retratada com a gravidade que merece.

E é aqui que Cyberpunk 2077 escorrega da pior forma.

Jogos de vida, jogos de morte

A morte não é apenas o fim de uma vida. Para os que ficam para trás, ela envolve meses – quando não anos – de luto. No caso de mortes antecipadas, como a de V, este processo começa antes mesmo do nosso último suspiro.

Jogos que falam sobre a morte sabem disso muito bem. Suas histórias não são apenas uma corrida para evitar (ou apressar) o fim, mas também o processo pelo qual fazemos as pazes com o que está por vir.

Foi o que fez Majora’s Mask, jogo apocalíptico em que cada uma das quests força suas personagens a aceitarem a morte – sua ou de terceiros. E que termina, literalmente, com uma metáfora sobre o luto.

Foi o que fez The Witcher 3, permitindo a Geralt de Rivia uma última noite com os outros witchers antes da batalha contra a Caçada Selvagem. Que o encontro aconteça em Kaer Morhen é significativo: para peitar a morte, Geralt retorna ao lugar onde sua vida começou.

Foi o que fez Mass Effect 2 com sua Missão Suicida e as quests pessoais que levavam a ela. E, a despeito de seu final controverso, o que fez também seu sucessor, Mass Effect 3. O jogo inteiro funciona como uma longa despedida em que fechamos todas as pontas, lamentamos todas as perdas e visitamos todos os planetas da Via Láctea fictícia que Shepard chamou de casa.

Cyberpunk 2077 mira no sentimentalismo desses jogos, mas não em seu senso de resolução. Em vez de propiciar missões que sublinhem o que está realmente em jogo – uma última date com Judy, desta vez a um lugar de nossa própria infância; um pedido de desculpas a River por não poder fazer parte de seu futuro com Randy; um adeus merecido à Mama Welles – contamos apenas com brevíssimas mensagens de celular informando-nos do que aconteceu após o sobe-créditos.

A relação de V com os Aldecados são uma notável exceção, mas exige que o jogador escolha um final específico – “A Estrela”. Mesmo esta vinheta, porém, é ofuscada pelo volume imperdoável de conteúdo secundário que contradiz a urgência da missão principal e servem a nenhum propósito senão preencher a cartilha dos games mundo-aberto.

V tem pouco mais de duas semanas restantes de vida, mas o jogo nos encoraja a tomar nosso tempo colecionando carros de luxo, fazendo o trabalho da polícia e ocupando-nos de tarefas meniais com zero impacto na vida das personagens que o próprio jogo nos diz que importam.

A forma como lida com a morte de outras pessoas além de V é ainda mais problemática.

Cyberpunk 2077 esposa um sistema moral preto-no-branco que permite matar qualquer criminoso sem consequências, sem parar para pensar que V e seus entes queridos também são criminosos. Qual o sentido em lamentar a vida de Jackie, um ex-Valentino, se podemos fuzilar todos os Valentinos que encontramos nas ruas? Que direito tem V de dizer que prefere “evitar mortes” – com faz no final “ruim” – se tudo o que fez até então foi genocidar NPCs a torto e a direito?

The Witcher 3 respondeu a perguntas parecidas com vilões tridimensionais e dilemas complicados que nos puniam por escolher saídas fáceis. Cyberpunk 2077, por outro lado, sucumbiu ao simplismo de um GTA futurista.

É muito pouco para uma aventura que prometia calçar os sapatos de um dos melhores games de memória recente.

A exceção: Johnny Silverhand

Há uma personagem no jogo para quem as questões que apontei acima não se aplicam: Johnny Silverhand, o ex-terrorista atormentado por fantasmas pessoais que habita a consciência de V.

A longo do jogo, Johnny oferece missões que não apenas nos permitem conhecer seu passado, mas também enfrentar, no presente, as consequências de seus erros.

Johnny revisita o sofrimento que causou a Alt Cunningham, faz as pazes com Rogue, ajuda Kerry a reerguer sua vida e ainda – dependendo das nossas escolhas  – vinga-se de Adam Smasher. Praticamente todo o conteúdo trazido pela personagem está relacionado diretamente a sua morte – e às decisões, certas e erradas, que levaram até ela.

O problema é que ser uma personagem cativante não faz de Johnny a nossa personagem.

Ao dar aos jogadores o poder de customizar sua própria V – a ponto de deixá-los customizar até mesmo sua genitália – o jogo faz a promessa implícita de que aquela será a nossa janela para Night City. Fãs de RPG, afinal de contas, jogam games para criar suas próprias aventuras, não para servir de líderes de torcida a um avatar do Keanu Reeves com diálogos pré-escolhidos.

Cyberpunk 2077 poderia ter unido o útil ao agradável se Johnny, não V, fosse a personagem customizável. Na linha de Tides de Numenera, o jogo poderia ter contado a história do ponto de vista de Silverhand, recém-despertado após o roubo ao Kompeki Plaza. Como o Último Descartado do game da InXile, teríamos de revisitar Night City num corpo que não nos pertence.

As escolhas que faríamos na criação de personagens ainda teriam um impacto no jogo, determinando a vida – e as ponta soltas – que herdaríamos após o malfadado roubo da relíquia. As cenas de Johnny, por outro lado, teriam muito mais impacto. Mesmo nossas pequenas conquistas – como reencontrar a jaqueta da banda Samurai – traziam um peso emocional muito maior. Não estaríamos fazendo cosplay de um roqueiro morto, e sim recuperando a pessoa que um dia fomos.

Mas Cyberpunk 2077 não é esse jogo, e Johnny só entra em cena quando já enxergamos em V um rosto conhecido nas trevas de Night City.

Dizia Alfred Hitchcock que, se um filme começa mostrando um ladrão roubando uma casa e depois o surpreende com as sirenes da polícia, o público naturalmente torcerá para o ladrão. Não importa que ele esteja errado e a polícia certa. Quando enxergamos a vida pelos olhos de alguém nós nos colocamos do seu lado.

Em Cyberpunk 2077, V é o nosso ladrão. E nem mesmo Keanu Reeves pode salvar um jogo que a abandona à mercê de seu destino.


Nota: a anedota de Hitchcock é contada por Philip Pullmann em seu livro Daemon Voices, no ensaio “Making it Up and Writing it Down”. Não pude encontrar a fonte original.

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“Os Triunfos de Tarlac” dev diary #2: a dura tarefa de inventar objetivos http://www.finisgeekis.com/2020/11/25/os-triunfos-de-tarlac-dev-diary-2-a-dura-tarefa-de-inventar-objetivos/ http://www.finisgeekis.com/2020/11/25/os-triunfos-de-tarlac-dev-diary-2-a-dura-tarefa-de-inventar-objetivos/#respond Wed, 25 Nov 2020 14:53:53 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22454

Esse post é parte de uma série. Para ler os artigos anteriores, clique aqui.

Imagem destacada: Cálice de Ardagh, da coleção do Museu Nacional da IrlandaEste artefato medieval foi a inspiração da taça Sam Maguire, entregue atualmente ao vencedor do campeonato sênior de futebol gaélico da Irlanda. Foto de Rihani.

Jogos não são feitos apenas de regras, miniaturas impressionantes ou tabuleiros com artes chamativas. Embora existam muitas definições do que seja um “game” – para Sid Meier de Civilization, ele seria nada além de uma “série de decisões interessante” – muitas delas incluem dois pontos fundamentais: meios de se ganhar – e/ou, de se perder.

Condições de vitória e de derrota podem parecer coisas triviais. Do ponto de vista do design de games, porém, elas são tudo menos isso. O desafio é dobrado em jogos históricos, que precisam equilibrar o imperativo de divertir com objetivos que fariam sentido aos povos do passado.

Como o historiador Robert Houghton certa vez apontou, é justamente aí que muitos games comerciais pisam na bola.

Todos aqui conhecemos exemplos de jogos que representam com esmero as sociedades de outrora, mas permitem que jogadores ajam como nenhuma personagem história se comportaria.

Como eu próprío escrevi em outro artigo, muitos jogos de estratégia obedecem à fórmula 4X (explorar, expandir, extrair, exterminar). “Ganhar”, nesses jogos, esta intimamente relacionado a crescer. Muitas vezes, por cima de jogadores ou NPCs mais fracos.

Isso até bate com a ideologia de certos impérios nos séculos XIX e XX. Porém, não pode de maneira alguma ser tomado como uma regra geral para toda a história humana.

O próprio ato de anexar território indiscriminadamente, que esses games tratam como natural, dependia de uma imensa logística, organização militar e vontade política que a maioria dos líderes do passado não tinha – e sequer tinham a intenção de ter.

Na época em que se passa Os Triunfos de Tarlac, por exemplo (anos 1276 a 1318), reis irlandeses governavam províncias minúsculas para os padrões contemporâneos. Thomond, onde se passa o jogo, mal contava com 3,5 mil km2  de área territorial (Sergipe, o menor estado brasileiro, possuí 21,9 mil km2, mais de 6 vezes mais).

Esses governantes contavam com exércitos compostos de poucas centanas de homens, quando muito. Destes, o grosso vinha das contribuições de seus vassalos, que podiam simplesmente se voltar contra o próprio rei se ele tomasse decisões que os desagradassem. Reinos como esse não tinham condições de se envolver em guerras que durassem mais do que alguns meses. Muito menos de expandir indiscriminadamente, absorvendo mais vassalos insubordinados – e, com eles, ainda mais problemas.

“Governar”, nesse contexto, era menos uma questão de conquista e supremacia que de achar um equilíbrio entre exigências que seus súditos estavam dispostos a oferecer e os recursos necessários para dissuadir seus rivais à rebelião.

Pior: essa modalidade de guerra de baixa intensidade quase nunca chegava a qualquer tipo de conclusão. Historicamente, os conflitos entre o Clã Tarlac e Clã Brian Rua pelo domínio de Thomond se estenderam mais ou menos de 1260 até 1350. Foram quase cem anos de guerra com pouquíssimas mudanças significativas nas fronteiras e balança de poder.

Como vender isso a pessoas acostumadas com jogos que nos permite “pintar o mapa” com nossos impérios?  Ou, se não isto, a wargames em que a vitória ou a derrota estavam vinculadas a uma única batalha ou campanha?

Imagens como essa acima ficaram pendurados (metaforicamente) na minha escrivaninha quando comecei a bolar as regras de Os Triunfos de Tarlac. A solução, ao meu ver, passava por dois desafios. Primeiro, eu precisaria identificar algum desenlace histórico, dentro do horizonte de espectativa desses reis e magnatas, que pudesse ser chamado de “vitória”. Depois, “gamificar” o percurso até ela para que se tornasse minimamente engajante.

Como nossos testes nos ensinaram da maneira mais difícil, nenhuma dessas questões é fácil de responder.

1ª Tentativa: Pontos de febas

Se estimular jogadores a guerrearam uns com os outros poderia enviesar o jogo a uma direção que não desejávamos, por que não premiá-los ao não fazer isso ?

Essa ideia me levou a pensar num sistema de pontuação que recompensasse jogadores por ações historicamente plausíveis.  Chamados de febas (em irlandês antigo, “excelência”), esse atributo aumentaria sempre que um jogador fizesse jogadas condizentes a um rei irlandês medieval e diminuiria quando saísse dos trilhos.

Nessa linha, vencer batalhas, reduzir a devastação de assentamentos sob seu controle, manter-se próspero e honrar compromissos aumentaria a febas. Já perder batalhas, ter assentamentos destruídos por outros jogadores e sofrer atos de desobediência a diminuiria.

Ao final do jogo, a coalizão de jogadores que tivesse mais febas – somando os pontos de todos os seus integrantes – seria declarada a vencedora.

Para o jogador que controlasse Thomas de Clare, o magnata inglês em Thomond (e que, como um relativo estrangeiro à política irlandesa, não necessariamente jogava pelas mesmas regras),  a situação seria um pouco mais simples.

Historicamente, os de Clare buscaram assegurar sua posição envolvendo-se na guerra entre os Uí Bhriain. Sua presença na região dependia de operações militares regulares e terminou após uma derrota em batalha.  Desta maneira, seus objetivos casavam bem com a lógica tradicional dos wargames, e nos permitiu emprestar suas condições de vitória.

Para vencer com os irlandeses, portanto, era preciso acumular pontos de febas. Para vencer com os ingleses, por outro lado, era necessário apoiar uma facção irlandesa na guerra e garantir que eles terminassem o jogo com mais febas que seus inimigos.

Castelo de Bunratty, sede do senhorio de Thomas de Clare

Em teoria, esse sistema parecia ter tudo para dar certo. Além de evitar que jogadores tentassem trair seus aliados e agir anti-socialmente, a vitória por febas permitia que o jogo adquirisse uma duração flexível. Uma partida, afinal, poderia durar tanto quanto as pessoas quisessem: o “placar” podia ser fechado a qualquer momento, seja numa escaramuça de 30 minutos, seja uma campanha épica de 3 dias.

Infelizmente, as coisas não funcionaram tão bem na prática.

Resultado

O que nos parecia a princípio a maior força desse sistema – sua flexibilidade – mostrou-se seu maior problema. Nosso game, reparamos, não tinha condições claras de derrota: era possível “não vencer” ao final da jogatina, nunca ser eliminado do jogo.

Isto, aliado ao fato de não existirem limite de turnos, fez com que as partidas continuassem indefinidamente: os testers não tinham opção senão jogar até se cansarem.

Para piorar, a “vitória”, quando ela enfim chegava, não trazia a menor satisfação. Em um dos casos mais extremos, uma jogadora conseguiu a proeza de vencer uma partida sem fazer absolutamente nada – apenas mantendo distância dos outros jogadores e evitando se envolver em guerras.

Ironicamente, isso fazia sentido histórico. Clímaxes bombásticos e grandes reviravoltas são ingredientes comuns em Hollywood, nem tanto na história humana. Para um rei do século XIII, ser capaz de governar em paz, sem nenhuma preocupação além de ver a grama crescer, era sinal de um grande líder.

Um dos nossos objetivos – fazer nosso jogo tão válido do ponto de vista histórico quanto a tese em que ele é baseado – havia dado certo. O problema, agora, era torná-la divertido.

2ª Tentativa: Vitória da coalizão

Para nossa segunda tentativa, decidimos adotar uma solução mais convencional.

A vitória por febas transformava nosso jogo em uma espécie de “simulador de rei” , o que não casava bem com as mecânicas que havíamos escolhido. Havíamos feito um jogo que não incentivava jogadores a guerrearem, mas em que a única alternativa à guerra era a inação.

Para resolver esse problema, decidimos abandonar a vibe de simulador e se aproximar ainda mais dos wargames. Vencer, portanto, pediria obrigatoriamente uma vitória militar.

Decidimos manter os pontos de febas, só que como condição de derrota. Reveses diplomáticos e derrotas no campo de batalha lentamente reduziriam esse atributo, como uma barra de “pontos de vida” que gradualmente se esgota. Se a febas chegar a zero, é game over.

Febas, assim, representaria o capital político de uma das facções da guerra dinástica em Thomond. Uma (ou três) derrotas em combate pouco faria para determinar um vencedor. Uma série de reveses seguidos, porém, logo convenceria os aristocratas do reino de que aquele cavalo não venceria mais corridas.

Para evitar que o jogo não tivesse fim, ser eliminado em combate implicava na perda imediata de todos os pontos de febas. A intenção era aumentar os riscos das batalhas campais, fazendo jogadores optarem por fugir ou se render diante de uma inimigo mais poderoso, como era o costume na época.

Implementar tudo isso exigiu que tratássemos a diplomacia como um sistema muito mais rígido. Se nas primeiras versões de Tarlac os jogadores eram livres para fazer e desfazer alianças – mediante uma eventual penalidade em febas – nessa versão apoiar sua coalização é a única condição de vitória. Jogadores podiam ser coagidos a mudar de lado cedendo reféns, mas, para ganhar, cedo ou tarde aquele refém precisaria ir embora. Se alguém inicia o jogo como um aliado do Clã Brian Rua, precisa garantir que ele saia por cima. Custe o que custar.

Esse mesma rigidez precisamos aplicar às guerras. Ao contrário das versões iniciais, em que jogadores podiam escolher quando ou se começar uma guerra, o conflito agora se tornava regular e obrigatório. Acabados estavam os dias em que uma tester podia vencer simplesmente ficando na sua e evitando os conflitos na vizinhança.

Resultado

A segunda tentativa funcionou muito melhor. Ainda assim, ela não foi isenta de problemas.

A ideia de transformar a morte em combate em uma condição de derrota foi um imenso tiro pela culatra.

Longe de encorajar jogadores a evitar o combate, essa regra mostrou que era possível vencer o jogo em um só turno. Isto, por sua vez, incentivou os jogadores a apostarem todas as suas fichas na fase de expedição.

O resultado foram jogatinas em que toda a preocupação com a logística – originalmente, o assunto principal do jogo – acabava se tornando um mero prólogo para a batalha.

Como todo o ponto dessas mecânicas era criar obstáculos que aparecessem no longo prazo, isso tornou a fase de manutenção efetivamente, letra morta: por que um jogador tinha de se preocupar com devastação inimiga ou pagamento das tropas se podia mobilizar um exército monstruoso e vencer o jogo naquele mesmo turno?

Felizmente, o jogo melhorou enormemente assim que removemos essa condição de derrota. De quebra, a experiência nos ensinou uma série de verdades contra-intuitivas.

Em primeiro lugar, esses testes nos mostraram que mais amplitude de escolha nem sempre é melhor.

Nas primeiras versões de Tarlac, em que jogadores eram livres para forjar alianças e a vitória independia (nominalmente) de uma guerra, nossos testers se sentiam perdidos. A filosofia “faça o que quiser” não só os impedia de se engajar emocionalmente com o jogo, como tornava difícil até mesmo entender sua lógica. Isso é veneno para um jogo de estratégia, cuja “graça” reside justamente em dominar as mecânicas, antever problemas e gerenciar suas forças de maneiras criativas.

Em segundo lugar, ela nos fez entender, ao menos parcialmente, porque tantos jogos sobre a idade média têm mecânicas relacionadas ao combate.

Em adição ao apelo midiático de cavaleiros em armaduras brilhantes, o combate – e seus proxies – cria cenários de competição direta com que jogadores têm facilidade em se engajar.

No nosso caso, isso nos levou a gradativamente reorientar Tarlac para que o conflito militar ocupasse um lugar de maior destaque do que havíamos antevisto inicialmente.

Isso não significou abandonar nossa proposta original – um game sobre as causas e efeitos da guerra, mais do que sobre a guerra em si. Em especial, a mecânica de devastação funciona como uma rédea para qualquer jogador que chegue ao tabuleiro com ilusões imperialistas.

Devastação é uma propriedade dos assentamentos que aumenta sempre que alguma atividade militar ocorre naquela casa. Este ganho é proporcional ao tamanho dos exércitos: quanto mais soldados um jogador mobiliza, mais rápido transformará seu reino em uma pilha de cinzas.

Tokens de devastação no atual protótipo de Tarlac. Pilhas de ponta-cabeça (i.e. com o fundo cinza para cima) representam assentamentos destruídos.

Assentamentos são necessários para alimentar soldados em marcha, mas deixam de funcionar caso sejam destruídos. Um cenário como o da imagem acima, portanto, embora não uma condição de derrota stritu sensu, forçará os jogadores a um impasse, impedindo que mantenham seus exércitos e consigam vencer a guerra.

feedback dos nossos testers mostrou que o princípio foi um sucesso. Alguns membros da equipe chegaram a sugerir que os efeitos da devastação fossem “nerfados”, até perceberem que a impotência que sentiam fazia parte de um propósito: observar seu “general de poltrona” interior rapidamente dar lugar à sensação de que a guerra, como o veneno, deve ser manejada em pequenas doses.

Cena de batalha da Bíblia de Holkham, de meados do século XIV

Ainda assim, nossa experiência nos deixou uma história cautelar: é preciso muito pouco para que um jogo, seguindo o caminho de menor resistência, torne-se uma apologia da guerra. Uma alta incidência de conflitos é perdoável (e, eu diria, necessária) para representações da Irlanda dos séculos XIII e XIV, em que expedições eram tão frequentes que representavam quase uma atividade anual. Porém, há muito a se perder aplicando essa lógica indiscriminadamente à história de outros lugares ou épocas.

A violência é uma muleta de game design assustadoramente eficiente.

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Featured image: the Ardagh Chalice, from the collection of the National Museum of Ireland. This artefact was the inspiration behind the Sam Maguire Cup offered to winners of the All-Ireland Senior Football Championship. Photo by Rihani.

Games are not made exclusively of rules, fancy miniatures or boardgames with appealing artwork. While there are many definitions of what constitutes a “game” — to Civilization’s Sid Meier, they are basically a “series of interesting decisions” — many of them include two fundamental elements: ways to win — and/or, to lose.

Victory and failure conditions may seem like trivial things at first sight. From a game design perspective, however, they are anything but. The challenge is twice as hard for historical games, which need to balance the imperative of providing fun with goals that would make sense to people in the past.

As historian Robert Houghton once pointed out, it is precisely there where many commercial games are found lacking.

Everyone knows examples of games that portray past societies with a great level of polish, but allow players to act like no historical character ever would.

As I wrote in a previous post, many strategy games bow to the 4X formula (explore, expand, exploit, exterminate). To “win”, in these games, is intimately tied with growing. Oftentimes, over other players or weaker NPCs.

This logic sort of matches the ideology of certain empires in the 19th and 20th centuries. However, it cannot in any way be taken as a general law of human history.

The very act of indiscriminately annexing territory, that these games take for granted, depended on substantial logistics, military organization and political will that many past leaders lacked — and had no plans of developing.

In the period in which The Triumphs of Turlough is set, for example (1276 to 1318), Irish kings ruled over provinces that were minuscule for contemporary standards. Thomond, the game’s kingdom, barely had 3,5k km2 of territorial extent. (Sergipe, Brazil’s smallest state, is over six times bigger with 21,9k km2).

These rulers counted with armies that were rarely more than a few hundred men strong. Among these, the bulk came from the contributions of their vassals, who could simply turn against their king if he made choices of which they disapproved. Kingdoms like these did not have the conditions to wage war for longer than a few months. Nor to expand indiscriminately, absorbing more insubordinate vassals — and, with them, even more problems.

To “govern”, in this context, was less an issue of conquest and supremacy than of finding a balance between the demands one’s subjects were willing to comply with and the resources needed to dissuade one’s rivals from rebelling.

To make matters worse, this modality of low intensity warfare almost never reached any sort of conclusion. Historically, the conflicts between Clann Turlough and Clann Brian Rua for the rulership of Thomond stretched from roughly the 1260s to the 1350s. It was almost a hundred years of warfare with very little significative changes in borders or the balance of power.

How can we sell this idea to people used to games that allow us to “paint the map” with the colors of our empire? Or, if not that, with wargames in which victory and failure derive from the outcome of a single battle or campaign?

Images like the above hung above my desk (metaphorically speaking) when I started to design the rules for The Triumphs of Turlough. The solution, in my mind, required tackling two challenges. First, I would need to identify some historical outcome within the horizon of expectation of these kings and magnates that could be conceive of as a “victory”. Then, I had to “gamify” the route leading to it so that it became minimally engaging.

As our tests taught us in the most difficult way possible, neither of these issues is easy to address.

1st Attempt: febas score

If inciting players to wage war on one another could tilt the game towards a direction we did not want it to go, why not reward them for not doing it?

This idea led me to think about a score system that rewarded players for historically plausible actions. Called febas (Old Irish for “excellence”), this attribute increased every time a player took decisions that befitted a Medieval Irish king and decreased when they went off the tracks.

In this vein, winning battles, reducing the devastation of settlements under one’s control, keeping oneself prosperous and honoring agreements would increase one’s febas. On the other hand, losing battles, having settlements destroyed by other players and suffering acts of disobedience would decrease it.

At the end of the match, the coalition of Irish kings with the highest sum of febas would be declared the winner.

For the player that controlled Thomas de Clare, the English magnate in Thomond (and who, as a relative outsider to Gaelic politics, did not necessarily abide by the same playbook) the situation was slightly simpler.

Historically, the de Clares sought to consolidate their position by getting involved in the war between the Uí Bhriain. Their presence in the region depended on regular military operations and ended after a defeat in the battlefield. As such, their objectives matched the traditional logic of wargames quite well, and that allows us to borrow the genre’s victory conditions.

To win as an Irish king, therefore, one would need to accumulate febas. To win as an English magnate, on the other hand, one had to support an Irish faction in war and make sure they ended the game with more febas than their enemies.

Bunratty castle, seat of Thomas de Clare’s lordship in Thomond

In theory, this system seemed poised to succeed. In addition to discouraging players from backstabbing colleagues and acting anti-socially, the victory by febas made the game very flexible. A match, after all, could last as long as people wanted it: the score could be counted at any time, be it after a 30 minutes skirmish or an epic 3h campaign.

Unfortunately, things did not go so well in practice.

Results

What seemed to us at first the system’s greatest strength — its flexibility — proved to be its downfall. Our game, we noticed, had no clear failure conditions: it was possible to fail to win at the end of a match, never to be eliminated.

That, added to the fact that we had no turn limit, caused matches to continue indefinitely. The testers had no choice aside from keep playing until they got bored.

To make matters worse, “victory”, when it finally arrived, brought no satisfaction at all. In one of the most extremes cases, one player managed to win a match without doing absolutely anything — simply by keeping her distance from other players and avoiding getting involved in wars.

Ironically, this made some sense from a historical point of view. Bombastic climaxes and great twists of fate are common ingredients in Hollywood, not so much in human history. For a 13th century king, being able to govern in peace, with no worries other than waiting for the grass to grow, was a hallmark of a great leader.

One of our goals — to make our game as historically valid as the thesis it is based on — was starting (albeit awkwardly) to work. The problem, now, was to make it fun.

2nd attempt: Coalition victory

For our second attempt, we decided to adopt a more conventional solution.

Victory by febas had transformed our game in a kind of “king simulator”, which did not quite match the mechanics we had chosen. We had made a game that did not encourage players to wage war, but in which the only alternative to war was inaction. 

To solve this impasse, we decided to abandon the simulator paradigm and bring our game even closer to wargames. To win, therefore, would specifically imply a military victory.

We decided to keep the febas score, only now as a failure condition. Diplomatic downturns and defeats in battle would slowly reduce the attribute, like a gradually diminishing hit points bar. If one’s febas reached zero, it was game over.

Febas, in this vein, would represent the political capital of one of the factions in the dynastic dispute taking place in Thomond. One (or three) lost battles would do little to determine a winner. A string of defeats, however, would soon convince the kingdom’s aristocrats that that horse had no more races left in it.

To avoid allowing the game to drag for too long, we decided that being eliminated in combat implied in the immediate loss of all febas points. The intention was to increase the risk of pitched battles, inducing players to opt for running away or surrendering, as it was customary at the time.

Implementing all of this required treating diplomacy as a much more stringent system. If in our first prototypes players were free to make and unmake alliances — in exchange for an appropriate febas penalty — in this version supporting your coalition was the only victory condition. Players could be coerced into changing sides by ceding hostages, but, if they wanted to win, sooner or later that hostage would have to go. If one started a match as a Clann Brian Rua ally, for instance, one should make sure they came out on top at the end. Whatever it took.

We had to apply a similar rigidity to warfare. Unlike the previous versions, in which players could choose when or if to start a war, conflict was now regular and mandatory. Gone were the days when a tester could win by simply staying put and avoiding neighboring conflicts.

Results

The second attempt worked much better than the first. Still, it was not bereft of issues.

The idea of making the death in combat an automatic failure condition was an immense misfire.

Far from encouraging players to avoid combat, this rule showed that it was possible to win the game in a single turn. This, by its turn, pushed players to bet everything on the battlefield.

The result were matches in which all of the concerns with logistics — originally, the main theme of the game — ended up becoming a mere prologue to the expedition phase.

Since the whole point of these mechanics was to create obstacles that appeared in the long run, this effectively made the maintenance phase meaningless: why would a player worry about enemy devastation or feeding soldiers if they could mobilize a monstrous army and win the match that very round?

Fortunately, the situation improved considerably once we removed this failure condition. In addition, this experience taught us some unorthodox pieces of wisdom.

First, these tests showed us that a broader range for player choices is not always better.

In the preliminary versions of Turlough, in which players were free to forge alliances and victory did not (nominally) depended on war, our testers felt lost. The “do whatever you want” philosophy not only prevented them from emotionally engaging with the game, but even made it harder to assimilate its logic. This is poison for a strategy game, in which the “fun” resides precisely in mastering the mechanics, anticipating problems and managing your forces in creative ways.

Second, it made us understand, at least partially, why so many games about the Middle Ages had combat-related mechanics.

In addition to the mediatic appeal of knights in shining armor, combat — and its proxies — create scenarios of direct competition that players find easy to engage with. In our case, this led us to gradually reorient Turlough so that the military conflict occupied a more prominent role than we had originally anticipated.

This did not imply in abandoning our original idea – a game about the causes and effects of warfare, rather than the war itself. Notably, the devastation mechanic works well in reining in any player that may sit at the board with imperialistic delusions in mind.

Devastation is a settlement attribute that increases every time some military activity occurs in that hex. This increase is proportional to the size of armies: the more soldiers a player mobilizes, the faster they will turn their kingdom into a pile of ashes.

Devastation tokens in the current Turlough prototype. Upside down piles (i.e. with the grey side upward) represent destroyed settlements.

Settlements are needed to feed marching soldiers, but cease to work if they are destroyed. A scenario like the one above, therefore, while not a failure state per se, will nevertheless drive players to an impasse, preventing them from keeping the armies they need to win the war.

The feedback from our testers showed that this principle was a success. Some of our team members even suggested “nerfing” the effects of devastation before they realized the sense of impotence they were facing was part of the plan: to make their inner armchair general quickly give way to the realization that war, like poison, should be handled only in small doses.

Battle scene from the Holkham bible, mid 14th century.

Still, our experience works as a cautionary tale: it takes very little for a game, following the path of least resistance, to become an apologia of war. A high incidence of conflict is acceptable (and, I’d argue, necessary) for depictions of 13th and 14th c. Ireland, in which military hostings were so frequent they constituted an almost regular yearly activity. However, there is a lot of harm to be done in indiscriminately applying this logic to the history of other places or periods.

As far as game design crutches go, violence is a terrifyingly effective one.

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http://www.finisgeekis.com/2020/11/25/os-triunfos-de-tarlac-dev-diary-2-a-dura-tarefa-de-inventar-objetivos/feed/ 0 22454
“GDLK” : uma nostálgica (e problemática) carta de amor aos games http://www.finisgeekis.com/2020/09/22/gdlk-uma-nostalgica-e-problematica-carta-de-amor-aos-games/ http://www.finisgeekis.com/2020/09/22/gdlk-uma-nostalgica-e-problematica-carta-de-amor-aos-games/#respond Tue, 22 Sep 2020 20:43:48 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22396 73,4% dos brasileiros joga jogos eletrônicos, segundo a última pesquisa Game Brasil. Mais de 2 milhões (incluindo este que vos fala) já prestigiaram a BGS, maior evento de games da América Latina. Os e-sports são uma indústria bilionária. Personagens icônicas da mídia, de Sonic à Comandante Shepard, não só ultrapassaram os consoles, como hoje fazem parte da mitologia de nossa época.

De todos os símbolos nacionais de seu país, foi de Mário que Shinzo Abe, ex-premiê conservador do Japão, decidiu se vestir para anunciar as (hoje canceladas) Olimpíadas de Tóquio:

Faço essa breve introdução para reforçar que os videogames, hoje em dia, estão longe de ser uma mídia marginalizada– por mais que certos gamers românticos gostem de cultivar essa imagem para si.

É esse romantismo – às vezes, fora de lugar – que permeia GDLK, minissérie da Netflix sobre os primórdios dos jogos eletrônicos.

“Godlike”

Narrada por Charles Martinet, o dublador do Mário, GDLK não se propõe a ser uma “história dos games” mais do que uma coleção de anedotas sobre uma época pitoresca em que jogos vinham em cartuchos e Pelé fazia comercias do Atari.

Infelizmente, essa pérola ficou de fora do documentário

Três dos episódios dizem respeito a momentos cruciais na história dos games: o surgimento dos consoles e a crise de 1983 (Episódio 1), a entrada da Nintendo no mercado (Episódio 2) e a homérica rivalidade entre a Nintendo e a Sega nos anos 1990 (Episódio 4).

Os demais são dedicados ao desenvolvimento de gêneros específicos: RPGs (Episódio 3), luta (Episódio 5) e FPSs (Episódio 6). Estes tópicos são ganchos mais do que linhas de argumentação. O documentário não hesita em saltar de um tema para o outro ao sabor das experiências contadas por seus entrevistados.

Entre o rol de personalidades, GDLK conta com gigantes do naipe de John Romero e Toru Iwatani, mas também com nomes menos conhecidos.

Éo caso de Shaun Bloom, que trabalhou como um conselheiro de jogos da Nintendo: especialistas a quem gamers telefonavam atrás de dicas antes da invenção de detonados ou subreddits.

O próprio fato de ter existido um serviço de telemarketing dedicado a ajudar gamers a passar de fase deve soar absurdo às novas gerações. Mais chocantes, no entanto, eram as condições de treinamento, que fazem de Nolan Sorrento, vilão de Jogador No 1, parecer um chefe modelo.

Bloom fala de uma rotina de gritarias, surpresas e rasteiras diárias. Seu supervisor fazia testes surpresas interrogando seus pupilos sobre cada dungeon, item ou easter egg nos jogos da companhia. Era apenas graças à força da nerdice que Bloom e seus colegas encontraram forçar para perseverar.

Pior ainda é o caso de Gail Tilden, diretora de marketing responsável pela introdução da revista Nintendo Power nos EUA. Obter autorização de seus chefes japoneses foi tarefa custosa, e sua assertividade lhe rendeu um apelido pouco lisonjeiro:  “dragoa”.

GDLK apresenta essas e outras anedotas como relatos de uma era mais simples; um faroeste em que jovens adultos, movidos por quase nada além do amor por jogos, gozaram da liberdade criativa para inventar uma mídia do zero.

É difícil, porém, enxergar a diferença entre esses episódios e os problemas estruturais que abalam a indústria de games até os dias de hoje.

Não seria o abuso que Bloom relata um prenúncio da cultura de crunch que levou companhias como a Rockstar e EA à vergonha global?

Não seria a humilhação sofrida por Tilden um introito das experiências vexatórias de tantas funcionárias da Ubisoft sob o jugo de Serge Hascöet?

Até que ponto, ao apresentar esses testemunhos não como absurdos, mas curiosidades, GDLK não é cúmplice na cultura de conformação que impediu, por tantos anos, que tais abusos viessem à tona?

Uma mídia para todos

Insistir demais nesse ponto talvez seja perder de vista o objetivo da série. GDLK, afinal de contas, não é um documentário voltado para gamers, mas sim leigos que desconhecem o sentido da sigla “RPG” ou mesmo o que é um “Atari”.

Ironicamente, esse mesmo público dificilmente saberá o que significa “GDLK” – sigla para godlike, gíria pouco utilizada fora dos jogos competitivos. O título original, High Score, é muito mais apropriado.

Felizmente, o documentário distoa da falta de tato dos tradutores à versão brasileira. Na série, termos, personalidades e referências são explicados em um tom didático, com o entusiasmo de um pai que mostra aos filhos da geração Z seus volumes antigos da Nintendo Power.

Nesse sentido, a estética retrô do documentário, com interlúdios em pixel art pontuando as entrevistas, parece feita sob medida para atender a uma imagem folclórica do que videogames são.

Boa parte das anedotas que seus episódios trazem – da maneira como o jogo E.T. quase levou a indústria inteira à falência, à origem do nome da personagem Kirby – são bastante conhecidas por fãs de jogos eletrônicos. Elas fazem , no entanto, um excelente trabalho de humanizar o esforço criativo por trás dos clássicos do gênero.

Entre os entrevistados estão Rebecca Heineman, campeã de Space Invaders em uma época em que e-sports eram um hobby de garagem. Ryan Best, criador de GayBlade, o primeiro jogo abertamente LGBT+ da história. Gordon Bellamy, cuja paixão pela série Madden o levou a buscar um emprego na produtora EA. O profissional foi o responsável por introduzir jogadores negros pela primeira vez na história da franquia.

Gordon Bellamy em cena de “GDLK”

GDLK brande essa e outras entrevistas como uma profissão de fé em prol da diversidade em games. A mensagem de fundo é que games não são feitos somente de pixels ou polígonos, mas dos sonhos coletivos de todos aqueles que os usam e os usaram para se autoexpressar.

Dar voz aos jogadores, independente de quem seja, sempre foi sua força vital.

É possível questionar a honestidade intelectual dessa abordagem. Ela celebra a tenacidade desses gamers e desenvolvedores, mas pouco fala das dificuldades que os obrigaram a batalhar em primeiro lugar.

Quantos Gordon Bellamys amargaram decepções para que um deles conquistasse seu emprego dos sonhos? Quantos GayBlades não foram perdidos às brumas do passado, esquecidos em disquetes e arquivos que nunca mais viram a luz do dia?

GDLK prefere focar nas histórias de sucesso, não nos casos menos felizes que mostram que o progresso nunca é rápido ou definitivo.

À luz de 2020, pode parecer pouco. No entanto, o próprio fato de se esforçar para associar games ao que há de melhor no ser humano é a prova do quanto as coisas mudaram.

Não faz muito tempo que jogos apareciam na grande mídia única e exclusivamente como bodes expiatórios para todo tipo de polêmica. GLDK não só se nega a reduzir games a estas discussões, como defende abertamente a mídia.

O pânico moral que associou RPGs ao satanismo nos anos 1990 aparece apenas em seu episódio 3 – e, mesmo assim, sob uma ótima crítica. Não há menção à Jack Thompson, que em 1997 processou produtoras de games pelo atentado na Colégio Heath, em Kentucky. O mesmo advogado lideraria uma cruzada moralista ao GTA na década seguinte, que resultaria na exclusão de seu direito de exercer a profissão em 2007.

A Doom, clássico dos jogos de tiro, o documentário dedica quase um episódio inteiro. O foco, porém, não é sua violência gráfica, que o levou a ser culpabilizado pelo Massacre de Columbine em 2001. Pelo contrário, GDLK o louva pelo seu seu papel de facilitador no surgimento de uma cultura participativa.

Sem o game, a série explica, não teríamos a cultura de modding que contribuiu para a transformação de Skyrim em um marco da cultura pop. Isto sem falar em clássicos como Team Fortress ou Counter Strike, originalmente mods de Quake e Half Life, respectivamente.

Counter Strike

Uma redenção aos games

Parte panegírico, parte história dos games, GDLK escolhe para si um palco estreito. A falta de uma linha argumentativa coesa e reflexões mais aprofundadas correm o risco de torná-lo banal a gamers veteranos. Por outro lado, pergunto-me até que ponto seu contínuo apelo ao fator nostalgia fará sentido aqueles que não cresceram com um joystick em mãos.

Tendo ou não sucesso, essa carta de amor à era de ouro dos games merece ser celebrada, se nada mais, pelo respeito ao seu objeto e sua positividade contagiante.

O histórico da Netflix com a cultura pop está longe de ser estelar. Universo Anime, outra de suas tentativas de explorar estas mídias, foi amplamente criticado por sua abordagem orientalista, preconceituosa e fatualmente incorreta da animação japonesa.

GDLK, de certa forma, é sua redenção, dando a ícones como Tomohiro Nishikado e Nolan Bushnell a deferência esperada do entretenimento mainstream. A seu conteúdo falta o peso de uma palavra definitiva, mas o esforço sem dúvida é um GG.

NOTA: Esse artigo foi originalmente publicado no site do ARISE, com título ““GDLK” : uma carta de amor (um tanto desajeitada) à história dos games”

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http://www.finisgeekis.com/2020/09/22/gdlk-uma-nostalgica-e-problematica-carta-de-amor-aos-games/feed/ 0 22396
“Os Triunfos de Tarlac” dev diary #1: a estrutura do turno http://www.finisgeekis.com/2020/09/15/os-triunfos-de-tarlac-dev-diary-1-a-estrutura-do-turno/ http://www.finisgeekis.com/2020/09/15/os-triunfos-de-tarlac-dev-diary-1-a-estrutura-do-turno/#respond Tue, 15 Sep 2020 19:03:33 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22368 The Image of Ireland de John Derricke (1581)

Em um artigo anterior, eu apresentei a vocês os detalhes de Os Triunfos de Tarlac, jogo que estou desenvolvendo com as equipes do ARISE e do Laboratório de Estudos Medievais.

Esse post é o primeiro em uma série de diários de desenvolvimento, em que contarei passo a passo das mecânicas, elementos e fundo histórico do jogo. E, também, dos dilemas que encontramos pelo caminho ao transportar a Irlanda de 1276-1318 a um board game.

Nesse diário, contarei a vocês sobre a estrutura de turnos do jogo.

Jogando as guerras de Thomond

Como expliquei no artigo de introdução, Os Triunfos de Tarlac é um game sobre uma guerra entre duas facções – o Clã Tarlac e Clã Brian Rua – pelo domínio do antigo reino de Thomond, no sudoeste da Irlanda.

Como não podia deixar de ser, suas mecânicas giram em torno do planejamento da guerra.

Aqui, vale a pena esclarecer primeiro o que estou chamando de “guerra”. Os conflitos que observamos na Irlanda dos séculos XIII e XIV estavam longe de ser o espetáculo de batalhas campais e assaltos a castelos que costumamos associar à Idade Média.

Medieval: Total War II

Exércitos raramente contavam com mais de 1000 soldados. Campanhas podiam durar poucas semanas. Seu objetivo não era exterminar completamente o inimigo, mas exaurir seus recursos, forçá-los a prestar obediência e roubar gado.

Esse último era de suma importância, pois rebanhos eram uma das bases da economia gaélica. Além de serem uma importante fonte de alimentos para exércitos em marcha, vacas serviam de moeda em transações comerciais e pagamentos de tributos.

Por providenciarem muito ganho em troca de relativamente pouco risco, essas guerras eram muito frequentes. Às vezes, chegavam a acontecer mais de uma vez por ano.

Tão inseridas elas eram na “rotina” de reis irlandeses, e centrais para a economia pastoril, que o historiador Finbar McCormick chegou a chamá-las de “uma forma de competição econômica mais do que de conflito militar”.

Figura do livro “The Image of Irelande” de John Derricke (1581) mostrando um roubo de gado na Irlanda

Esse tipo de guerra de pilhagem era menos importante para os ingleses, cuja economia se baseava não no gado, mas na produção de cereais em larga escala. Mesmo assim, os súditos da Coroa inglesa com terras na Irlanda também participavam dessas escaramuças e roubos de gado. Nem que apenas para estabilizar seus aliados gaélicos e se defender de saqueadores.

Para um magnata nas fronteiras do mundo inglês, aderir às regras do jogo era o preço a se pagar pelo controle de seu senhorio.

Soldados ingleses recebendo suprimentos durante campanha na Irlanda, no final do século XIV. Figura de “La Prinse et mort du roy Richart” de Jean Creton, Harley MS 1319, British Library

Mobilizar exércitos e supri-los com provisões acabavam, assim, tornando-se parte integral do calendário anual, ao lado de deveres como a cobrança de tributos e os ciclos da agricultura e transumância do gado.

Isto faz a guerra gaélica cair como uma luva aos princípios do game design. Jogos, afinal de contas, são ferramentas criadas  sobre medida para representar e manipular sistemas de regras. É relativamente simples, desta forma, traduzir esse “calendário” histórico a uma série de decisões a serem tomadas pelos jogadores.

O loop básico e as fases do turno

Os turnos do jogo representam as principais tarefas que reis irlandeses e magnatas ingleses teriam de desempenhar para mobilizar expedições, ter sucesso nas campanhas e – mais importante – recuperar-se dos estragos provocados pela guerra.

 

Essas três etapas da gerência da guerra não eram igualmente longas. Expedições militares podiam durar poucas semanas, mas recrutar soldados, reunir suprimentos e coordenar esforços com seus aliados podia levar meses. Repor um rebanho roubado pelo inimigo ou reconstruir um mosteiro destruído, então, era trabalho para um ano inteiro – quando não mais.

Isso traz um problema sério de gameplay. Nem todos os deveres esperados de um rei irlandês são interessantes a ponto de merecer um jogo. Poucas pessoas curtiriam um jogo que as obrigasse a encarar vinte rodadas de animal husbandry simulator para cada rodada que passam em combate.

Mesmo que topássemos o desafio de fazer um jogo em que a guerra fosse apenas uma side quest, representar igualmente cada etapa do ciclo econômico o tornaria proibitivamente longo.

Para contornar esse desafio, resolvemos dividir nosso turno em duas fases, cada uma em uma escala diferente de tempo.

A fase de guerra representa as operações militares. Nela, jogadores deverão realizar as decisões que compunham o dia-a-dia da marcha.

Cada fase de guerra dura um dia em “tempo de jogo”. Ela pode ser repetida por um número qualquer de rodadas, até que todos os jogadores tenham se desmobilizado, derrotado seus inimigos ou sido eles próprios destruídos.

A fase de manutenção, por sua vez, representa todas as outras etapas na administração de um reino relativas à guerra. Ela dura de nove meses a um ano em “tempo de jogo”, e inclui a cobrança (e pagamentos) de impostos, redução da devastação e reconstrução de assentamentos destruídos.

Ela também inclui a incidência de “desastres”, representados por cartas compradas no início da rodada e cujos efeitos persistem até o início da próxima fase de manutenção.

Ao contrário da fase de guerra, a fase de manutenção dura apenas uma rodada. Assim que todos os jogadores a tenham jogado, passa-se imediatamente para a fase de guerra.

Cada fase oferecerá um leque de ações aos jogadores, baseadas em decisões que os reis e magnatas teriam de tomar nessas mesmas circunstâncias.

Ações representadas em vermelho no diagrama acima – como comprar cartas de desastres ou alimentar seus soldados ao final da marcha – são obrigatórias. Aquelas representadas em amarelo são situacionais.

Para saquear um assentamento, é necessário ter um exército na casa correspondente.  Para iniciar combate, é necessário ocupar uma casa contígua à do exército que pretendemos atacar. Ainda assim, nenhuma dessas ações.

Um jogador pode, se quiser, passar uma fase de guerra inteira sem participar de nenhuma batalha, valendo-se de estratégias fabianas para esgotar os recursos dos inimigos. Ou, ainda, decidir não se mobilizar e “pular” a fase da guerra para reunir suas forças e agir depois.

O resultado, pelo que pudemos sentir de nossos primeiros testes, é um jogo que traz o feeling de um war game, mas no qual o sucesso depende não só das decisões táticas de cada jogador, mas no planejamento anterior e no fator acaso.

Embora seja curta, a fase de manutenção tem uma influência decisiva no sucesso das guerras. No atual estado de desenvolvimento, estamos ainda balanceando os preços dos recursos e os efeitos das cartas de desastre. Nossas sessões preliminares, contudo, revelaram que suas penalidades, somadas a momentos desvantajosos (ex. uma rodada na sequência de uma guerra custosa), podem tirar reinos de conflitos antes mesmo de conseguirem pegar em armas.

Textos de cartas de desastre

Sempre é possível apostar o destino do reino em uma vitória milagrosa no campo de batalha, como líderes medievais sem dúvida já fizeram. Porém, nem mesmo um comandante brilhante pode virar o jogo se não tiver guerreiros para comandar ou comida para alimentá-los.

Manter a economia em bom estado – e ter o cuidado de se aliar sempre aos mais fortes – é tão ou mais importante quanto a habilidade com uma espada.

Evidentemente, vitórias e derrotas só fazem sentido se soubermos o que está em jogo. No próximo diário, portanto, falarei sobre o que um jogador deve fazer para vencer – e o que evitar para que seus oponentes levem a melhor.

Como diriam os irlandeses, beir bua! — “tome a vitória” – ou ,no sentido figurado, “boa sorte”!

In a previous article, I introduced you to the ins and out of The Triumphs of Turlough,  game I am developing with the members of ARISE and Laboratório de Estudos Medievais

This post is the first in a series of dev diaries in which I will cover the creation process of the game’s mechanics, their historical background as well as the dilemmas we came across in trying to transport 1276-1318 Ireland into a board game.

In this diary, I will talk about the turn structure of the game.

Playing the wars in Thomond

As I explained in my introductory article, The Triumphs of Turlough is a game about a war between two factions – Clann Turlough and Clann Brian Rua – vying to rule the ancient kingdom of Thomond, in south-western Ireland.

As it is to be expected, its mechanics deal with the preparation of war.

Here, it is worthwhile to clarify, first of all, what I am calling a “war”. The types of conflict we observe in 13th and 14th centuries Ireland are a far cry from the spectacle of pitched battles and castle assaults we commonly associated to the Middle Ages.

Medieval: Total War II

Armies rarely numbered more than 1000 soldiers. Campaigns could last as little as a few weeks. The goal wasn’t to completely exterminate the enemy, but deplete their resources, compel them to obedience and steal cattle.

This latter goal was of utmost important, as cattle herds were one of the foundations of Gaelic economy. In addition to being an important source of provisions for armies on the move, cows were used as currency in commercial transactions and payments of tribute.

Because they provided a lot of rewards for relatively little risk, these wars were very frequent. Sometimes, they could take place more than once a year.

So integrated they were in the “routine” of Irish kings, and crucial to the pastoral economy, that historian Finbar McCormick went as far as qualifying them as “a form of economic competition rather than military warfare”.

Picture from “The Image of Irelande” by John Derricke (1581) portraying a cattle raid in Ireland

Raids of this nature were not as important to the English, whose economy was based not on livestock, but on large scale cereal production. Even then, however, subjects of the English Crown who held land in Ireland also participated in these skirmishes and cattle raids. Even if only to stabilize their Gaelic allies and defend themselves from pillagers.

To a magnate in the frontiers of the English world, adhering to the rules of the game was the price to pay for the control of his lordship.

English soldiers receiving supplies during a campaign in Ireland in the late 14th century. Image from “La Prinse et mort du roy Richart” by Jean Creton, Harley MS 1319, British Library

Raising armies and providing them with victuals, therefore, ended up being an integral part of the yearly calendar alongside duties such as the levying of taxes and the cycles of agriculture and transhumance pastoralism.

This makes Gaelic warfare a great fit for applying the principles of game design. Games, after all, are tools tailor-made to represent and manipulate systems of rules. It is relatively straight-forward, therefore, to translate this historical “calendar” to a series of decisions to be taken by players.

The basic loop and the turn phases

The turns of the game represent the principal tasks that Irish kings and English magnates would have to perform to field expeditions, succeed in campaigns and – most importantly – manage the devastation caused by warfare.

These three stages of military management did not last the same amount of time. Military expeditions could last few weeks, but recruiting soldiers, procuring supplies and coordinating efforts with allies could take months. Even worse, replenishing a herd whose cows had been taken or rebuilding a ruined monastery was work for the entire year – if not longer.

This presents a serious gameplay issue. Not all of the duties expected of an Irish king are interesting enough to feature in a game. Few people would enjoy a game which forced them to dredge through twenty rounds of “animal husbandry simulator” for each round they spend in combat.

Even if we were up to the challenge of developing a game in which war was merely a side quest, representing each step of the economic cycle in the same level of detail would make it prohibitively long.

To get around this issue, we decided to split our turn into two phases, each of them represented in a different scale of time.

The war phase represents the military operations. In it, players will have to make the decisions that comprised the day-to-day activities during a march.

Each war phase lasts one day in “game time”. It can be repeated for an indefinite number of rounds, until all the players have demobilized, defeated their enemies or being vanquished themselves.

The maintenance phase, on the other hand, represents all the other stages of a kingdom’s administration cycle pertaining to war. It lasts from nine months to one year in “game time” and include the levying (and payment) of tributes, the reduction of devastation and the repair of destroyed settlements.

It also includes the occurrence of “disasters”, represented by cards drawn in the beginning of the round and whose effects persist until the next maintenance phase.

Unlike the war phase, the maintenance phase lasts for a single round. As soon as every player has passed their turn, the game immediately progresses to the war phase.

Each phase will allow players to take a number of specific actions, based on decisions kings and magnates would have had to take in these same circumstances.

Actions represented in red in the diagram above – such as drawing disaster cards or feeding soldiers at the end of a march – are mandatory. Those represented in yellow are situational.

To raid a settlement, it is necessary to have an army standing in the corresponding place in the grid. To initiate combat it is necessary to be next to the army one wants to attack. Even so, the player is not required to take any of these actions.

A player can, if they want, spend a whole war phase without participating in a single battle, making use of Fabian strategies to deplete their enemies’ resources. Or, yet, choose not to mobilize at all and “skip” the war phase to gather their strength and prepare for future actions.

The result, from what we could perceive in our first tests, is a game that has the feeling of a war game, but in which success depends not only on the tactical decisions of each player, but on previous planning and the chance factor.

Although short, the maintenance phase has a decisive influence in the outcome of wars. In the current stage of development, we are still balancing resource costs and the effects of the disaster cards. Nevertheless, our preliminary sessions have shown that the cards’ penalties, paired with unfavorable circumstances (e.g. a round immediately after a costly war) can knock kingdoms out of conflicts even before they manage to take up arms.

It is always possible to risk the fate of the kingdom in a miraculous victory in the battlefield – as medieval rulers certainly did on occasion. However, not even a brilliant commander can turn the tide in the absence of warriors to lead or food with which to feed them.

Keeping the economy in a sound state – and staying friends with the right factions – is just as or even more important than prowess with a blade.

Evidently, victories and losses only make sense if we know what is at stake. In the next diary I will talk about what a player has to do to win the game – and what they should avoid to prevent their opponents from coming out on top.

As the Irish say, beir bua! – “take a victory” or, in the figurative sense, “good luck!”

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“Os Triunfos de Tarlac”: reis gaélicos e desafios ambientais no formato board game. http://www.finisgeekis.com/2020/07/28/os-triunfos-de-tarlac-reis-gaelicos-e-desafios-ambientais-no-formato-board-game/ http://www.finisgeekis.com/2020/07/28/os-triunfos-de-tarlac-reis-gaelicos-e-desafios-ambientais-no-formato-board-game/#respond Tue, 28 Jul 2020 18:12:46 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22336

Aqueles de vocês que acompanham o blog já devem ter percebido que sou historiador de profissão. Vocês também sabem (melhor que ninguém) que não me canso de escrever sobre games.

Esse mês, no entanto, trago uma novidade diferente. Uma tentativa de unir essas duas paixões – e oferecer, com sorte, algo que impressione tanto a gamers quanto a meus colegas de academia.

É com prazer que anuncio Os Triunfos de Tarlac, meu primeiro board game histórico.

Por que um jogo e porque esse jogo?

Pense em um jogo histórico. Pode ser um game de proporções épicas, como Crusader Kings, ou um jogo de tabuleiro singelo como Tokaido. Mesmo que você não costume acompanhar o trabalho de historiadores, deve concordar comigo que jogar e ler sobre o passado são coisas bastante diferentes.

Games permitem não apenas vivenciar episódios históricos, mas também desafiem nosso entendimento sobre eles. Do resultado de batalhas às próprias leis da física, nada é sagrado demais para gamers. A mídia seria sem muito mais sem graça se não púdessemos fazer saltos de confiança ou “pintar o mapa” com as cores de nosso império.

Infelizmente, isso nem sempre é útil para nós, historiadores. Jogos comerciais criam interesse pelo passado – e podem até nos ajudar a refletir sobre alguns temas espinhosos. Mas eles não fazem jus ao tipo de argumentação – e nível de rigor – esperados de uma tese acadêmica.

Mas e se houvesse uma ferramenta capaz de preencher essa lacuna? Um jogo capaz de dar vida às nossas hipóteses sobre o passado garantindo que pouca coisa fosse perdida em tradução? Uma maneira de explorar, entender – e, por que não, questionar – os trabalhos de historiadores de uma forma divertida?

Os Triunfos de Tarlac é minha tentativa de transformar essa ideia em realidade. Baseado na minha pesquisa de doutorado, ele é um board game ambientado da Irlanda dos séculos XIII e XIV. Na pele de reis gaélicos e magnatas ingleses, jogadores deverão lidar com desafios como guerras dinásticas, assassinatos políticos, crises alimentares e mudanças climáticas.

Nossa equipe é formada por historiadores do Laboratório de Estudos Medievais da USP e pesquisadores do ARISE, um grupo de estudo especializado no uso de games e tecnologia na pesquisa arqueológica.

Nossa proposta é observar como os jogadores se virarão para lidar com os problemas de 1276-1318. A partir daí, analisando suas soluções a luz de nosso modelo histórico, poderemos refinar nossas hipóteses sobre o que realmente aconteceu.

Tudo isso, é claro, é apenas parte da história. Nós também desejamos apresentar a fãs de board game um período histórico pouquíssimo estudado fora da Irlanda.

Mas quem, afinal, foi “Tarlac”?

O reino de Thomond no século XIII

Tarlac (em irlandês, Toirdhealbach) Ó Briain foi o rei de um reino chamado Thomond, na costa oeste da Irlanda – região que é hoje conhecida como o condado de Clare.

Que, por razões não relacionadas, é também um dos mais populares destinos turísticos da Irlanda. Fonte da Imagem

Como outros reis irlandeses do período, os membros do clã Uí Bhriain eram oficialmente vassalos da Coroa inglesa. Neste caso, por meio de sua vassalagem a um magnata local, Thomas de Clare. Na prática, os Uí Bhrian eram mais ou menos livres para reinar sobre seus territórios em troca de tributos e serviço.

Infelizmente, esse vínculo de obediência nem sempre o protegia contra seus inimigos irlandeses. Mais infelizmente ainda, reinos irlandeses costumavam explodir em conflitos dinásticas com uma certa frequência.

Entre 1276 e 1318, a região foi palco de uma violenta guerra do tipo. Os beligerantes foram os descendentes de Tarlac e os de seu rival, Briain Rua Ó Briain. O Clã Tarlac – como sua linhagem veio a ser conhecida – saiu vitorioso e foi imortalizado em uma saga conhecida como Caithréim Thoirdhealbhaigh: Os Feitos de Combate (ou “Triunfos”) de Tarlac.

Um dos manuscritos de “Os Triunfos de Tarlac”

É a história por trás dessa récita a que nosso board game pretende dar vida. Jogadores deverão controlar ou Thomas de Clare ou um dos vários subreinos de Thomond e garantir que a facção que apoiam – Clã Tarlac ou Brian Rua – saia vencedora.

Triunfar nessa guerra dependerá de mais que garra política O final do século XIII e início do século XIV foram um período complicado na história da humanidade. O planeta passava por um esfriamento global conhecido como A Pequena Era do Gelo. Esta mudança climática provocou uma bateria de problemas como colheitas arruinadas, pestes animais e dificuldades econômicas.

É possível que essas adversidades tenham tido um papel na vitória do Clã Tarlac?

É isso que Os Triunfos de Tarlac – com a ajuda dos jogadores – pretende averiguar.

Obviamente, botar algo em prática é sempre mais difícil. Convenções de game design, afinal de contas, estão aí  por um motivo. É mais fácil fazer um jogo divertido que respeite os princípios clássicos do gênero do que reiventar a roda em nome da validade histórica.

Nos próximos posts dessa série, compartilharei com vocês as etapas de nosso processo criativo – e os desafios que estamos enfrentando garantir que a história e o game design andam de mãos dadas.

Fiquem de olho!

Those of you who follow my blog must have noticed by now that I am a historian by training. You are also aware (more than anyone else) that I never tire of writing about games.

This month, however, I have something different for you. An attempt to combine these two passions of mine – and offer something that will (hopefully) impress both gamers and my colleagues in academia.

It is my pleasure to announce The Triumphs of Turlough, my first historical board game.

Why a game and why this game?

Think about a historical game. It doesn’t matter if it’s a videogame on an epic scale like Crusader Kings, or a charming board game like Tokaido. Even if you don’t usually follow the work of historians, you must agree that there’s a difference between playing and reading about the past.

Games allow us not only to experiment historical episodes, but also to challenge our knowledge about them. From the outcome of battles to the very laws of physics, nothing is too sacred that gamers are not willing to meddle with. The medium would be a lot less fun if we couldn’t perform leaps of faith or “paint the map” with the colors of our empire.

Unfortunately, this isn’t always useful to us, historians. Commercial games may foster interest for the past – and can even help us think about some thorny themes. But they don’t live up to the level of argumentation – and rigor – expected of a scholarly monograph.

But what if there was a tool to fill in this gap? A game that was able to bring life to our hypotheses about the past while making sure that as little as possible was lost in translation? A way to explore, understand – and, why not, question – the works of historians in an engaging way?

The Triumphs of Turlough is my attempt to make this idea into reality.  Based on my PhD research, it is a board game set in Ireland in the 13th and 14th centuries. In the role of Irish kings and English magnates, players will have to deal with challenges like dynastic feuds, political assassinations, food crises and climate change.

Our team is made up of historians from Laboratório de Estudos Medievais da USP and researchers from ARISE, a study group specialized in the use of games and technology for archaeological research.

Our goal is to observe how players handle themselves in dealing with the historical problems of 1276-1318. From there, we will analyze their solutions in light of our historical model and use them to refine our hypotheses about what really happened.

That, of course, is just part of the story. We also hope to introduce board game enthusiasts to a historical period that is little known outside Ireland.

But who, after all, was “Turlough”?

Turlough O’Brien (in Irish, Toirdhealbach Ó Briain) was the king of a chiefdom called Thomond, in the west coast of Ireland – a region that is now known as county Clare.

For unrelated reasons, also one of the most popular touristic destinations in Ireland. Image source

Like other Irish kings of the period, the O’Briens were officially subjects of the English Crown In their case, by means of a bond of vassalage to a local magnate, Thomas de Clare. In practice, however, the O’Briens were more or less free to rule over their territories in exchange for tributes and service.

Unfortunately, this bond of submission not always protected them from their Irish enemies. Even more unfortunately, Irish kingdoms were prone to erupt into dynastic feuds between rival factions of the clan.

Between 1276 and 1318, Thomond was the stage of one such violent war. The belligerents were the descendants of Turlough Ó Briain and those of his enemy Brian Rua Ó Briain. Clann Turlough – as his lineage came to be called – ended up victorious and was immortalized in a saga known as Caithréim Thoirdhealbhaigh: The Battle Deeds (or “Triumphs”) of Turlough.

One of the surviving manuscripts of “The Triumphs of Turlough”

It is the history behind this account that our board game wishes to draw upon. Players will take control of either Thomas de Clare or one of the subkingdoms of Thomond and make sure that the faction they support – either Clann Turlough or Clann Brian Rua – come out on top.

Winning this war will depend on more than political mettle alone. The end of the 13th c. and beginning of the 14th c. was a complicated period in human history. The planet was going through a period of global cooling known as the Little Ice Age. This episode of climate change led to an avalanche of problems such as harvests failures, animal murrains and economic difficulties

Is it possible that these adversities played a role in Clann Turlough’s ultimate victory?

This is what The Triumphs of Turlough was designed to find out — with the help of our players.

Obviously, making something work is always harder in practice.  Game design conventions, after all, are there for a reason. It is easier to make a fun game that obey the classic tenets of its genre than attempt to reinvent the wheel in the name of historical validity.

In the next posts in this series, I will share with you the ins and outs of our creative process – and the challenges that we are facing to ensure that history and game design walk hand-in-hand.

Stay tuned!

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http://www.finisgeekis.com/2020/07/28/os-triunfos-de-tarlac-reis-gaelicos-e-desafios-ambientais-no-formato-board-game/feed/ 0 22336
“Eliza”: Pessoas são mais que simples dados http://www.finisgeekis.com/2020/06/17/eliza-pessoas-sao-mais-que-simples-dados/ http://www.finisgeekis.com/2020/06/17/eliza-pessoas-sao-mais-que-simples-dados/#comments Wed, 17 Jun 2020 18:01:18 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22283 O ano era 1964. “Computadores”, para a maioria das pessoas, ainda eram papo de ficção científica.

Foi quando Joseph Weizenbaum, um professor do MIT, prestigiada universidade americana, teve uma ideia fora da caixa: um programa de computador capaz de conversar com seres humanos.

Sua invenção era capaz de entender frases digitadas e responder com sentenças que fizessem sentido.

Por capricho, resolveu lhe dar um nome humano: ELIZA. Assim era chamada a heroína de Pigmaleão, peça do dramaturgo irlandês George Bernard Shaw. Na obra, Eliza é uma mulher das quebradas “adotada” por um mentor que deseja transformá-la em uma lady.

Tal como “Eliza”, a moça, aprendera a falar como uma senhorita de classe, ELIZA, o software, aprenderia a falar como uma mulher de carne e osso.

Por conveniência, deu-lhe a profissão de terapeuta. Afinal de contas, que jeito melhor para entender a fala de humanos que ouvi-los desabafar todos os seus problemas?

O que começou como um experimento – para não dizer uma brincadeira – transformou-se em coisa muito maior. Eliza era tão convincente que seus interlocures se convenceram de que possuía inteligência humana. Psicólogos de respeito escreveram artigos sobre a nova “colega”. Não foram poucos os que desenvolveram sentimentos verdadeiros pelo programa.

O frisson ganhou até um nome: efeito ELIZA, a tendência de projetar emoções humanas em máquinas. Se o software de Weizenbaum hoje é lembrado apenas como curiosidade, esta histeria escreveu o nome de seu criador na história da tecnologia.

Num mundo em que assistentes virtuais se tornam mais e mais comuns, o efeito ELIZA é um fenômeno que observamos – quando não experimentamos – todos os dias. De Chobits a Her, histórias sobre pessoas que se envolvem por computadores já são uma parte do nosso imaginário. A moral destas fábulas nem sempre é positiva.

Ex Machina (2014)

Aqueles que se incomodam com essas fábulas geralmente procuram no futuro uma resposta aos nossos dilemas. Porém, nosso hábito de tratar máquinas como pessoas é mesmo tanto antigo, será que não teríamos algo a ganhar olhando, também, ao passado?

Até que ponto a mãe da Siris, Alexas e Cortanas não seria a chave para entender suas filhas – e seus efeitos sobre nós?

ELIZA, visual novel produzida pela Zachtronics, é uma tentativa de responder a essa questão.

Eliza/ELIZA

Eliza – o jogo –  não é a história da chatbot dos anos 1960.

Sua trama se passa no presente, quando uma corporação chamada Skandha se inspira no software de Weizenbaum para um serviço de terapia virtual. A nova “Eliza” é um programa complexo, capaz de atender inúmeras pessoas em uma rede de consultórios, analisar suas vidas pessoais e até receitar tratamentos.

Para aumentar a ilusão de que conversam com um ser humano, as sessões com Eliza são intermediadas por “avatares” de carne e osso. Esses proxies, como são conhecidos, são atores contratados para fingir escutar os clientes e ler as “respostas” do software em um teleprompt.

Por mais que pareça um embuste elaborado, a ideia se prova um sucesso. Proxies são mais baratos que psicólogos, o que torna Eliza acessível àqueles que não tem dinheiro para um terapeuta de verdade. Sim, o software não é qualificado para tratar problemas mentais. Mas quanto destes “problemas”, no fundo, não podem ser resolvidos com um simples ombro amigo?

Nós vivemos uma crise de saúde mental, diz uma porta-voz da Skandha. Estresse, ansiedade, insegurança se tornaram verdadeiras epidemias. Se Eliza pode oferecer uma ajuda, por menor que ela seja, já não estamos fazendo o bem?

É de nós, jogadores, que o game espera uma resposta. Nossa protagonista é Evelyn Ishino-Aubrey, uma das criadores do programa Eliza. Sumida da vida pública após um trauma pessoal, ela retorna ao mundo dos vivos para ver o que fizeram com sua criação.

Não como engenheira, mas como uma proxy.

Boa parte do jogo consiste em conduzir as sessões pelos olhos de Evelyn. Em hipótese alguma – um e-mail nos avisa antes do expediente – os proxies estão autorizados a dizer aos pacientes o que pensam. Seu trabalho é dar um rosto humano às respostas de Eliza. Nada mais.

Como é de se esperar de uma visual novel, o gameplay de Eliza é mínimo. A decisão de desafiar o script do programa sequer aparece até bem mais tarde na história. Mesmo assim, as rédeas curtas que o jogo nos coloca nunca chegam a incomodar.

Em uma trama sobre falta de agência e submissão à tecnologia, o desconforto ser obrigado a obedecer os comandos de um game cai feito uma luva. Não sem uma pitada de ironia.

Desconforto, de fato, é um sentimento que Eliza parece ter sido escrito para provocar.

Não demora para percebermos que todas as sessões são variações do mesmo script. Eliza sempre começa com um comentário banal sobre o clima, então perguntas sobre o que trouxe o cliente a ela; outras perguntas, pedindo que descreva o que ele imagina ser a solução; por fim, soluções de tratamento. Estes, invariavelmente, caem em dois grupos: joguinhos relaxantes e drogas.

É chocante como Eliza recomenda narcóticos para seus pacientes, mesmo os que obviamente não tem qualquer problema que justifique tomar remédios. Seria engraçado, não fosse um paralelo horripilante com o mundo real, em que a dependência química em drogas legais já ganhou status de epidemia.

A ética para com seus “pacientes” – não por acaso, chamados sempre de “clientes” – não é o único problema que chama a atenção de Evelyn.

No mundo real, sessões de terapia são protegidas por sigilo profissional. Como manter essa confidencialidade quando seu “terapeuta” é apenas um ator glorificado? E quando tudo o que você diz termina nos servidores de uma empresa, armazenados por tempo indeterminado, à mercê de qualquer um com acesso ao sistema?

O que acontece se o banco de dados for hackeado? Ou se a Skandha, como tantas empresas de memória recente, decidirem revender estas informações de maneira inescrupulosa?

Esses são apenas alguns dos temas espinhosos que Eliza nos traz. Seu rol de personagens é uma verdadeira batalha real de posições distintas sobre o papel da tecnologia nas nossas vidas.

Há Sara, que prega que um software como esse, nas mãos de uma corporação gananciosa, é uma receita para o desastre. Há Erlend, jovem engenheiro que acredita que Eliza, sendo uma “pessoa”, merece ser protegida por algum tipo de direito. Há Rainer, que brevê que o ser humano será substituído pelas máquinas – e pensa que isto é uma coisa boa. Há Soren, um homem derrotado que tenta inventar uma utopia digital porque não tem coragem para o suicídio.

Escolher a companhia dessas e outras personagens – segundo a mecânica de “rotas” bem conhecida por fãs de visual novels – parece um desafio para que tomemos um partido.

Como escreveu Cass Marshall para o site Polygon, “jogar Eliza parece um dating simulator, mas eu não estou escolhendo meu parceiro – estou escolhendo minha filosofia”.

Filosofia essa que não diz respeito apenas ao presente, por mais urgente que as mensagens do jogo pareçam. Quanto mais conhecemos da história original da primeira ELIZA, mais percebemos como o game se inspira diretamente no passado.

O poder do computador e a razão humana

Joseph Weizenbaum, criador de Eliza, em foto dos anos 1960

Evelyn não foi a primeira engenheira a a se incomodar com a ideia de uma IA terapeuta. Como sua mãe de batismo, a Eliza de Pigmaleão, o software de Weizenbaum também rompeu com seu criador após aprender a falar.

Alguns intelectuais – incluindo psicólogos —  viram no seu chatbot a aurora de uma nova era da saúde mental. Uma invenção que colocaria a terapia na linha de montagem, atendendo “centenas de pacientes por hora.”

Embora pareça uma esquete digna de Tempos Modernos, a ideia ganhou a simpatia de  muita gente séria. Entre elas o astrônomo Carl Sagan, apresentador original da série Cosmos. Nas palavras do cientista,

Eu consigo imaginar o desenvolvimento de uma rede de terminais de computador psicoterapeuticos, algo como uma vasta matriz de cabines telefônicas, em que, por alguns dólares a sessão, nós poderíamos falar com um psicoterapeuta atento, testado e predominantemente não-diretivo.

 

O astrônomo Carl Sagan

Opiniões como essas deixaram o criador de ELIZA estarrecido. O incômodo foi tamanho que o levou a escrever um livro, O Poder do Computador e a Razão Humana, denunciando os limites da inteligência artificial.

Segundo Weizenbaum, transformar ELIZA em uma terapeuta havia sido, no fundo, uma brincadeira. O script da chatbot foi escrito para parodiar psicoterapeutas da escola rogeriana, conhecidos por um estilo de análise que privilegia devolver a seus pacientes informações que trazem nas sessões.

O problema, para Weizenbaum, não era apenas que sua imitação não chegaria aos pés de um humano de verdade. Dizer que um terapeuta pode ser substituído por uma máquina significa dizer que os problemas da vida humana podem ser reduzidos a termos lógicos e quantificáveis. E isto, para ele, é inaceitável.

Em última medida, ele explica, isso implica em dizer que não existem de fato dilemas “humanos” , apenas desafios de computação; que a solução de todo e qualquer problema – do coração partido ao racismo sistêmico – é inventar computadores cada vez mais potentes.

A ideia de que precisamos melhorar como indivíduos, não nos esconder atrás de gadgets, não entra na equação.

Para Weizenbaum, a ética questionável de um computador-terapeuta é apenas a ponta do iceberg. O maior problema desta confiança cega na tecnologia é o fato de que estimula desprezo a outras formas de conhecimento. Como, por exemplo, as humanidades.

O teatro de Shakespeare, ou dos dramaturgos gregos, ele exemplifica, “eram uma escola”. “Os currículos que eles ensinavam eram veículos para entender as sociedades que eles representavam”.  Nos dias de hoje, pelo contrário, a arte passou a ser vista, na melhor das hipóteses, como perda de tempo; na pior, como coisa de folgados e encrenqueiros.

Na visual novel, esse ponto de vista é esposado por Rainer, o inexcrupuloso CEO da Skandha. O executivo não vê valor algum na psicologia, colocando seus profissionais no mesmo balaio de médiums e astrólogos.

“Cartas de tarot ajudam pessoas no mundo todo” ele diz “Isso não significa que são uma ciência”.

Para ele, o único conhecimento que importa é aquele que pode ser expressado com números. Por esta razão, as máquinas são inerentemente superiores aos humanos. Mesmo em tarefas tradicionalmente “humanas”, como a arte ou a poesia.

“Algoritmos podem avaliar poemas e eventualmente algorítmos escreverão poemas” Ele anuncia. “Um dia, algoritmos escreverão poemas melhores que humanos jamais escreveram.”

“[Mas] qual seria o ponto disso?”, Evelyn pergunta. Sim, máquinas são capazes de bolar rimas e respeitar métrica. E é bem possível que esses versos, em termos técnicos, sejam mais bonitos que os escritos por humanos. Mas qual seria o ponto  de tal beleza?

O Diário de Anne Frank teria sentido artístico se sua autora não tivesse morrido no Holocausto?

A Guernica teria o mesmo valor se seu pintor não fosse Picasso? Não o mestre cubista, mas o espanhol em luto pela guerra que destruía seu país?

O Túmulo dos Vagalumes teria o mesmo peso não tivesse sido baseado em uma conto autobiográfico, escrita por um homem que viu a irmã de fato morrer de fome?

O famoso cover de Hurt de Nine Inch Nails teria se tornado tão icônico não fosse seu intérprete Johnny Cash? Um cantor no final da vida, torturado pelo peso de uma vida inteira de perdas?

Nós não apreciamos arte porque ela é “bonita” ou “bem feita” ou por porque nos distraí. Nós a apreciamos porque ela nos força a encarar nossa própria humanidade, por mais traumática, dolorosa ou incompreensível ela nos pareça.

E apenas um humano é qualificado para expor outro ser humano de maneira tão íntima.

“Nós quase chegamos no ponto em que todo dilema humano genuíno é visto como um mero paradoxo” Weizenbaum escreve “uma aparente contradição que pode ser desembaraçada por aplicações judiciosas de lógica pura”.

“Nós sabemos contar” ele conclui tristemente “mas estamos rapidamente esquecendo como dizer o que é importante contar e por quê.”

Essas palavras foram escritas em 1971, mas o descaso que denunciam não poderia ser mais atual.

De onde governos que, ao constarem que as profissões STEM são as melhores remuneradas, instigam pessoas a se tornarem engenheiras, em vez de garantir que as carreiras menos bem pagas – enfermeiros, professores, filósofos – recebam o valor que merecem.

De onde cidadãos que reclamam quando seu dinheiro vai para exposições de arte, orquestras sinfônicas ou reformas para impedir que museus nacionais peguem fogo.

De onde coaches e gurus que pregam que pessoas devem parar de aprender idiomas e estudar linguagens de computação. Afinal, há mais demanda por Python e C# que por italiano ou japonês.

A ideia de que aprender idiomas é um ganho em si – por exemplo, ajudando o indivíduo a conhecer outras culturas e respeitar a diversidade humana –  não é sequer cogitada.

“Apenas dados”

Não se trata de uma escolha entre ‘tecnologia’ e ‘humanidade’, razão e sentimento. Como Weizenbaum insiste, esses dois opostos deveriam caminhar juntos:

“[M]esmo se os computadores pudessem imitar o homem em todas as circunstâncias – o que eles de fato não podem – mesmo assim seria apropriado, não, urgente examinar o computador à luz da necessidade perene do homem de encontrar seu lugar no mundo.

Torçamos, para o nosso bem, que esse lugar beba do que melhor temos a oferecer. E não seja, como o ano que enfrentamos, um reflexo do buraco que cavamos para nós mesmos.

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