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Obsidian – finisgeekis http://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 18 Jan 2023 20:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32 Obsidian – finisgeekis http://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 4 curiosidades sobre “Pentiment” que você provavelmente não conhecia http://www.finisgeekis.com/2023/01/18/4-curiosidades-sobre-pentiment-que-voce-provavelmente-nao-conhecia/ http://www.finisgeekis.com/2023/01/18/4-curiosidades-sobre-pentiment-que-voce-provavelmente-nao-conhecia/#respond Wed, 18 Jan 2023 19:56:56 +0000 https://www.finisgeekis.com/?p=23223 Nós historiadores somos famosamente chatos. É muito difícil resistir à tentação de criticar um game ambientado no passado, ainda que seja a melhor experiência que já curtimos.

Pentiment é uma exceção. Ambientado na Baviera (atual Alemanha) na época da Reforma Protestante, o último game da Obsidian é o raro game histórico que parece ter acertado todas as notas. Estou para encontrar um colega que não sorria ao falar do esmero que teve em trazer o século XVI à luz do XXI.

Essa atenção teve um preço: algumas de suas referências podem soar bastante obscuras se você não for um fã de história medieval ou moderna.

E não, não estou falando apenas de O Nome da Rosa.

Pentiment, como a história de mistério que seu roteiro tece, vai muito além da superfície.

(Aviso: contém SPOILERS de Pentiment)

1) Martin Bauer é baseado em uma pessoa real

No primeiro ato do jogo, somos introduzidos a um jovem delinquente chamado Martin Bauer. Tão inconsequente quando é boca-suja, Martin, a princípio, serve apenas de red herring para complicar o mistério sobre a morte do Barão. Coisa que o próprio arquidiácono reconhece ao exclui-lo sumariamente da lista de suspeitos.

As coisas mudam a partir do segundo ato. Ao retornar à Tassing sete anos depois, Andreas reencontra Martin, irreconhecível de corpo e personalidade. Amável com sua esposa, afável com os vizinhos e engajado em causas políticas, é um novo homem.

Literalmente, como logo descobrimos.

O novo “Martin”, na verdade, é Jobst Färber, companheiro de crime do delinquente de Tassing que assume sua identidade após a morte do comparsa. Brigita, ex-esposa de Martin, concorda em acobertá-lo em troca de sua vista grossa para seu romance com Verônica. O resto da vila, se percebe o embuste, não vê motivos para a denúncia. “Martin”, afinal, é um sujeito muito melhor do que Martin jamais foi.

Fãs de história medieval (ou de cinema francês) entenderão de pronto a referência. Martin Bauer é baseado em Martin Guerre, um camponês que tentou a mesma fraude na França do século XVI.

Infelizmente para Guerre, ao contrário de seu xará de Tassing, seu truque não funcionou. O verdadeiro Martin não estava morto. Quando retornou para casa, o golpista foi denunciado, julgado e executado.

A singularidade do julgamento garantiu que sobrevivesse na cultura popular. Nos séculos seguintes, seu conto recebeu diversas adaptações. Uma delas, o filme O Retorno de Martin Guerre, é deliberadamente citada na quest de Pentiment (“O Retorno de Martin Bauer”)

Cartaz do filme “O Retorno de Martin Guerre” (1982), com Gérard Depardieu

Em qualquer de suas encarnações, o caso é menos interessante por conta do impostor do que de sua esposa. O episódio é representativo dos poucos caminhos disponíveis com que mulheres contavam para escapar de sua sina – e do risco que sofriam ao trilhá-los.

Lésbica, forçada a se casar ainda adolescente após ter sido engravidada por um bandido, Brigita é uma mulher vivendo no fio de uma navalha. Se estivesse no lugar dela e ajudar um crime pudesse tornar sua vida mais fácil, você aceitaria? Quanto você estaria disposta a sacrificar até que as consequências da mentira caíssem sobre seu colo?

São questionamentos que ressonam até os dias de hoje. Muita coisa mudou desde o século XVI, mas muitas pessoas continuam vivendo em fios de navalha, de toda natureza.

2) Otto Zimmerman não foi o primeiro a causar problemas com uma cabeça de santo

No clímax do jogo, Andreas e Magdalene descobrem que Padre Thomas é o mandante dos assassinatos em Tassing-Kirsau.

O religioso confessa que agiu como agiu para impedir que o segredo da vila viesse à tona: São Moritz e Santa Sátia, padroeiros de Tassing, nunca pisaram na aldeia. Sátia, em particular, pode nunca ter existido.

Na verdade, eles nada mais seriam que representações dos deuses romanos Marte e Diana, que os primeiros cristãos erroneamente interpretaram como imagens divinas.

O twist é a parte do jogo que, como historiador, menos me convence. Santos de origens suspeitas e/ou semelhanças com divindades pagãs existem a rodo na Europa. É realmente plausível que os peregrinos que os veneram há séculos parariam de adorá-los da noite para o dia? Sobretudo quando a abadia possui uma relíquia – portanto, um pedaço do santo?

Padre Thomas acredita que sim, e é isto que importa. Para isto, ele comete uma série de crimes para esconder duas peças de evidência que podem trazer a verdade à tona. A primeira é um velho livro em latim, Historia Tassiae (“A História de Tassing”). Trata-se de uma óbvia referência a O Nome da Rosa, que também envolve assassinatos cometidos para impedir um livro de ser lido – no caso, um volume perdido da Poética de Aristóteles.

Plano do mosteiro fictício onde “O Nome da Rosa” é ambientado. O professor de Bologna a que Andreas se refere é o autor do romance, Umberto Eco (que, na vida real, realmente foi professor da Universidade de Bologna)

A segunda evidência é mais indireta, mas nem por isso menos literária. Otto Zimmerman, o carpinteiro da cidade, encontra por acaso a cabeça da estátua de São Moritz que adorna a vila. O problema: em seu elmo está escrito Mars Pater (“Marte Pai”). Para Thomas, se Otto tornar pública sua descoberta, todos saberão que Moritz nunca pisou em Tassing.

Uma história muito parecida faz parte dos contos de Till Eulenspiegel (em português, também conhecido como Til Malasartes.) Trata-se de uma personagem cômica do folclore alemão, cujo hobby é desafiar autoridades e zombar de convenções sociais.

Em uma de suas estripulias, Till toma um crânio de um cemitério e paga um artesão para que o revista de prata. Então, disfarça-se de padre e anuncia ter encontrado a cabeça de um certo São Brandonus. Por uma pequena contribuição (monetária ou, no caso das mulheres da cidade, sexual) ele permitia que os habitantes da cidade a beijassem.

Ninguém descobre o golpe.

Till Eulenspiegel foi publicado pela primeira vez na década de 1510, exatamente quando se inicia o primeiro ato do jogo. Pentiment não esconde a coincidência: o livro é mencionado logo no primeiro diálogo entre Andreas e Claus Drucker, logo após a morte do barão.

Easter egg adicional: Claus, no livro, é o nome do pai de Till.

Dependendo das escolhas que você fizer para a formação de Magdalene no terceiro ato há uma referência ainda mais explícita a ser encontrada. Conversando sobre santos com Padre Thomas, a jovem tem a chance de confrontá-lo com a história de Till. O religioso então responde que vidas de santo não precisam ser 100% reais para nos inspirar, tal como os contos de Till Eulenspiegel falam sobre verdades a despeito de serem ficção.

Bem hipócrita para um homem que está disposto a matar para esconder a verdade de seu rebanho.

3) Abades também eram senhores – no sentido “feudal” da palavra

Na sua primeira refeição do jogo, acompanhado de Endris e Otto Zimmerman, Andreas descobre que as relações entre Tassing e Kiersau são tensas. Todos os camponeses devem tributo à abadia, que controla a região e seus recursos naturais. Nem todos acham que o imposto é justo.

As coisas pioram no segundo ato. Cansado de ser contrariado por Otto, o Abade Gernot cerra fileiras contra Tassing. Os impostos aumentaram. Os camponeses perdem o acesso à floresta e ao riacho. Num golpe de particular crueldade, ele impede que a população visite a relíquia de São Moritz.

Se você ainda se lembra das aulas de feudalismo na escola, a situação pode ter parecido bizarra. Afinal, aprendemos que havia três ordens na Idade Média: aqueles que lutam, aqueles que oram e aqueles que trabalham. Aos clérigos, cabia rezar. Neste caso, por que raios eles tinham terras e pessoas sob sua autoridade?

Porque, como costuma ser o caso, as coisas na prática eram mais complicadas. No período medieval, mosteiros controlavam pessoas e territórios tanto quanto senhores seculares – com todos os fardos e obrigações que isto implicava. Aliás, abades e senhores muitas vezes vinham das mesmas famílias. Não era incomum que as grandes abadias de um dado reino ou território fossem controladas pelas mesmas dinastias que ocupavam a Coroa.

Como atores importantes no jogo político, também não era surpreendente que abades jogassem sujo para expandir seus territórios. Caso Andreas possua uma educação em direito, Andreas pode descobrir que Kiersau estava tramando para roubar as terras da viúva Ottillia. Pior: por meio de fraude.

Um exemplo muito parecido aconteceu de verdade com a abadia de San Clemente a Casauria, no norte da Itália, no final do século IX. Num espaço de poucos anos, o monastério agressivamente comprou terras vizinhas, até que praticamente todos os habitantes da região se tornassem dependentes da Igreja

Obviamente, a Itália do século IX não era a Baviera do século XVI. Manobras como as de Casauria eram mais fáceis de se orquestrar no passado porque a paisagem política e econômica da região ainda estava para se consolidar. Com o passar dos séculos, tomar terras passou a ser complicado, pois implicava em competir diretamente com os interesses de outras abadias ou senhorios. De onde a decisão do Abade Gernot em mirar justamente no elo mais vulnerável: viúva, idosa e malquista em Tassing, Ottilla é a vítima perfeita.

4) A caça às bruxas foi um fenômeno moderno, não medieval

Dependendo de nossas escolhas ao longo de Pentiment, podemos nos deparar com a revelação de que Vacslav e Ursula queimaram na fogueira após os eventos da história. Ele, por advogar ideias heréticas sobre o livro do Gênese; ela, por adorar os Deuses Antigos do passado pagão.

Se você está acostumado a escutar que a Idade Média foi a Idade das Trevas, em que indivíduos (sobretudo mulheres) eram queimados a rodo por todo tipo de infração espiritual, talvez o timing da execução possa ter lhe parecido estranho.

Afinal, estamos diante de uma história que se passa justamente na passagem da Idade Média para o que entendemos por modernidade. Por que Ursula e Vacslav foram queimados justo agora, sendo que durante as décadas que a história cobre os camponeses de Tassing tiveram total liberdade para invocar Perchta e misturar ideias cristãs com costumes pagãos?

Com o advento da impressora, alfabetização popular e demandas por liberdade religiosa, não seria mais intuitivo que o mundo ficasse mais liberal e menos persecutório com o passar das décadas)?

Por incrível que pareça, não. Embora caças às bruxas tenham sido associadas à Idade Média, elas foram um fenômeno quase que exclusivamente moderno. No que é hoje sul da Alemanha, região retratada em Pentiment, alguns dos maiores processos aconteceram poucas décadas depois dos eventos do jogo. Os processos de Salem, possivelmente os mais famosos do mundo, foram realizados ainda depois, entre 1692 e 93

Imagem do livro “The history of witches and wizards, publicado em 1720

Olhando essas datas, dá para entender por que a modernidade achou melhor condenar seus crimes às fogueiras do passado. A ideia de que a mesma época que nos legou René Descartes e Isaac Newton produziu episódios de intolerância e fanatismo religioso é desconfortável.  Muito mais fácil é alimentar a ilusão de que o obscurantismo é uma velha superstição que estamos a caminho de extinguir.

Essa ingenuidade, porém, teve efeitos sérios que perduram até os dias de hoje. Ainda hoje, continuamos incapaz de aceitar que atos de extremismo, negacionismo ou terrorismo não são exceções remanescentes do passado, mas parte do que somos: pecados da época contemporânea, não de uma “era medieval”.

Empenhados em recusar responsabilidade sobre tudo o que sofremos, não fazemos a pergunta mais importante: até que ponto os pesadelos dos dias de hoje – disparos em massa de discursos de ódio, fim de empregos por conta de IAs, ataques à democracia liberal – não são subprodutos de nosso próprio movimento de progresso?

Se nada mais, ao ambientar deliberadamente sua história em uma época de transição ideológica e cultural, Pentiment nos mostra que não é a primeira vez que a humanidade se depara com essa questão. E, tal como o foi na época da Reforma Protestante, não é o tipo de  questão que podemos ignorar.

Como Pentiment e outros RPGs nos ensinam, ações têm consequências. Sua ausência também.

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“Tyranny”: uma fábula sobre o totalitarismo http://www.finisgeekis.com/2016/11/15/tyranny-uma-fabula-sobre-o-totalitarismo/ http://www.finisgeekis.com/2016/11/15/tyranny-uma-fabula-sobre-o-totalitarismo/#comments Tue, 15 Nov 2016 16:57:19 +0000 http://finisgeekis.com/?p=13010

Na semana passada, a Obsidian entregou uma das propostas mais ambiciosas de sua história: um RPG em que só podemos interpretar vilões, cujo objetivo é dominar fracos e oprimidos.

Eu mesmo escrevi sobre quão difícil era a ideia – e quais os truques que os criadores de Fallout: New Vegas poderiam usar para tornar a maldade divertida.

Quão errado eu estava.

Tyranny, lançado no último dia 10, é bastante diferente do que eu (e muitos outros, acredito) esperavam. O jogo passa longe de nos convencer a ser cruéis, ou de nos entregar vilões “com coração”.

Não porque fuja da sua proposta, mas porque a entrega bem demais. E, no caminho, faz algo que pouquíssimos jogos já foram capazes de fazer.

Tyranny é um retrato do totalitarismo, mais honesto, didático e pés-no-chão que até jogos ambientados nesses regimes, como Hearts of Iron, conseguiram oferecer.

Um RPG para entrar para a história

Antes de mais nada, as honras:

Tyranny é um RPG isométrico da Obsidian,  no estilo de clássicos como Icewind Dale Baldur’s Gate. Feito com a mesma engine de seu último sucesso, Pillars of Eternity, o jogo mesmo assim veste outra roupagem, com modelos estilizados, cores chapadas e uma identidade visual bastante característica.

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As semelhanças terminam por aqui. Enquanto que Pillars of Eternity se propunha um tributo a Baldur’s Gate, Tyranny nos desafia, do começo ao fim, com uma experiência que nunca jogamos antes.

Esqueça dragões, fetch quests, trupes de aventureiros e taverneiros sorridentes. O novo jogo da Obsidian se passa em um mundo fantástico pós-apocalíptico ambientado no fim da Era do Bronze. É um misto de Roma às sombras de Átila com os velhos pulps de ficção científica, em que hoplitas dividem espaço com entidades que manipulam as leis da física.

Quem se lembra da Black Isle em sua melhor forma sabe que o estúdio ganhou fama por sua criatividade. Planescape: Torment, sua obra-prima, chacoalhou uma geração acostumada com elfos, anões e hobbits ao apresentar NPCs inusitados, distantes dos clichês da fantasia medievalista.

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A Obsidian, que herdou muito de sua equipe após o fim do estúdio, não teve a mesma sorte. Embora tenha entregue excelentes jogos, trabalhou quase que inteiramente em franquias estabelecidas.

Star Wars: KotOR II e Fallout: New Vegas estão entre os melhores RPGs de suas gerações. Porém, pelas amarras de seu próprio cenário, são jornadas familiares.

A situação parece ter mudado. Tyranny traz o velho espírito da Black Isle com uma força inédita desde os anos 1990. Veja por exemplo Tunon, um juiz espectral sem rosto definido, com máscaras que variam de acordo com sua missão.

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Ou ainda Vozes de Nerat, uma entidade que usa um elmo com dois rostos, cada qual com uma personalidade diferente  .

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Tyranny é Obsidian na sua melhor forma. Longe das mordaças dos grandes publishers, a turma de Brian Heins finalmente conseguiu colocar as asas de fora.

Que seu cenário inovador seja apenas a ponta do iceberg é prova do seu talento – e de quanto nós, gamers, temos a ganhar com tudo isso:

O outro rosto da maldade

Tyranny se passa no mundo fantástico de Terratus, nos últimos momentos da guerra entre o bem e o mal. Kyros, o grande vilão, conquistou quase todo o globo, e os poucos rebeldes remanescentes lutam uma guerra desesperada que sabem ser impossível de vencer.

Em forma, tom e conteúdo, o jogo da Obsidian é indistinguível daquelas cronologias alternativas que nos mostram o que aconteceria caso os maus ganhassem. Estamos no território de The Man in the High Castle, Wolfenstein: The New Order e Dragon Age: Darkspawn Chronicles.

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A horde de Kyros, no entanto, é tudo menos unida. Dois exércitos rivais competem um com o outro para serem os primeiros a render o inimigo.

De um lado estão os Desfavorecidos, uma tropa de elite composta por fanáticos políticos. Unidos por uma devoção quase religiosa ao seu líder, prezam pela ordem, seguem a letra da lei e chacinam os derrotados.

Do outro lado está o Coro Escarlate, uma turba de criminosos, psicopatas e vira-casacas recrutados das fileiras inimigas. Mistura de bacantes com os assassinos do Massacre de Nanking, os soldados do Coro são imprevisíveis, sádicos e  psicopáticos.

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Como um agente independente, o protagonista de Tyranny não deve lealdade a nenhum dos dois. Porém, a maneira como soluciona os dilemas morais propostos pelo game irá cedo ou tarde jogá-lo aos braços de uma facção – em rota de colisão com a outra.

Não espere, contudo, o “relativismo moral” infantil de tantos RPGs “maduros” por aí. Em Tyranny, não existe “lado bom” nem “mal menor”. Nossa única escolha é a de decidir quais cachorros soltar sobre seus inimigos. A diligência de uma Gestapo ou de um Kempetai, ou o caos de uma turba violenta.

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Se parece angustiante, essa é justamente a intenção. Tyranny, afinal, não está interessado em uma maldade “leve” e juvenil, como a de  GTA ou Fable. Sua intenção é mostrar como funciona um dos regimes mais revoltantes já criados.

Mas o que, afinal, é o “totalitarismo”?

Hoje em dia,  “totalitarismo” se tornou uma palavra feia. Assim como tantos outros –ismos,  é o xingamento predileto em discussões sobre política com paixões demais e argumentos de menos.

Como bem dizia Millôr Fernandes, “democracia é quando eu mando em você. Ditadura é quando você manda em mim.” Nos últimos tempos, a piada nunca foi tão atual.

Embora sirva bem aos militantes de Facebook, esse relativismo é uma afronta àqueles que sofreram, de verdade, com o pior que a humanidade já pôs em prática. Acontece que “totalitarismo” é uma coisa BEM  específica.

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Hannah Arendt

Para a pensadora política Hannah Arendt, ele não está associado a nenhuma maldade específica. Nem é, tampouco, apenas um tipo mais “grave” de tirania. É um sistema político completamente novo e mais perverso.

A diferença está na fé em uma Lei da Natureza absoluta, que governa toda a nossa vida e não pode ser resistida. Ou então em uma História com H maiúsculo, que se move em uma direção específica e não pára para os que titubeiam.

Individualidade e liberdade viram obstáculos a ser emderrubados. Há o caminho Natural e aquele dos degenerados. Há o “lado certo da História” e o “lado errado”.  Em nome do serviço à Lei Suprema, não há prédio que não possa ser derrubado, ou pessoa que não possa ser executada.

Na sociedade que serve à Lei, existem apenas dois tipos de pessoa: os carrascos e a vítimas.

É algo que os rebeldes de Terratus entendem muito bem – e o que faz com que nos sintamos tal mal ao jogar Tyranny. Em todos os jogos, sempre há uma razão para tentar os mocinhos ao “lado negro”: poder, vingança, ordem. Kyros, no entanto, não deixa espaço para barganha. Seja meu escravo ou não seja mais nada.

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Como disse o autor de The Witcher Andrzej Sapkowski no livro A Torre da Andorinha:

Existem em todos os Estados fanáticos que desejam impor uma certa concepção de ordem pública. Dedicados em corpo e alma a esta ideia, eles estão dispostos a realizar qualquer coisa para defendê-la. Isto inclui cometer crimes, pois os fins, segundo eles, justificam os meios e invertem a moral. Eles não assassinam, eles preservam a ordem pública. Eles não torturam ou chantageiam: eles protegem a Razão de Estado e lutam pela paz. Para essas pessoas, a vida é uma entidade que não tem valor e não merece consideração quando se torna um obstáculo para a ordem estabelecida. Estas pessoas esquecem que a sociedade que elas servem é composta justamente por estas entidades. Elas têm uma visão “ampla”… o jeito mais seguro de ignorar as peças do quebra-cabeça.

Em Tyranny, Kyros é justamente essa “Lei”. No início do jogo, recém-chegados ao mundo de Terratus, temos até dificuldade para entender o que ele é.

Ele é chamado de “Líder Supremo”, mas poucos conhecem sua forma física. Seus subordinados são entidades sobrenaturais, menos humanos que personificações de ideais (a justiça, as sombras, o segredo).

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Seus poderes são absolutos e insensíveis, como os de Deus no Antigo Testamento. Logo na primeira missão do jogo, dois generais estão com dificuldade para tomar uma cidade rebelde. Para convencê-los a trabalhar juntos, Kyros manda um edito: se não tomarem a cidade em 8 dias, todos (generais, rebeldes e a cidade) serão apagados do mapa.

A banalidade do mal

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Kyros não é um “vilão”, no mesmo sentido de que o Nazismo não é Hitler, nem o Comunismo é Stálin. Tal como essas ideologias, ele é algo além, um princípio último inevitável, que seus defensores perseguem até o fim, pois não acreditam em alternativas.

Em vida, as ideias de Hannah Arendt lhe trouxeram uma enxurrada de críticas. Seus oponentes a atacaram por fazer pouco caso com o totalitarismo. No pior dos casos, em ser até “bondosa” com os piores criminosos que a humanidade já viu.

De fato, o vilão de Arendt não age por malícia. Ele apenas “faz o seu trabalho” da melhor forma possível, sem se importar (ou imaginar) as consequências de seus atos. O mal se torna “banal”.

É o que alguns críticos de games comentaram sobre o jogo da Obsidian. O protagonista de Tyranny seria apenas uma “engrenagem” no sistema, uma peça muito pequena dentro de uma máquina política incontrolável. Ele não é “responsável” pelo que faz porque age com a autoridade de outros. Não é ele o culpado: o mundo é que é perverso.

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O que os reviewers – e os críticos de Arendt – não conseguiram entender é que as coisas funcionam de outro jeito. Não é que regimes autoritários dependem de trabalhadores dedicados, nem que todos os seus criminosos sejam assim. Pelo contrário, tanto os ditadores da vida real quanto Kyros em Terratus não tem pudor em contratar psicopatas e facínoras.

O que acontece, segundo a autora, é que o totalitarismo cria esse tipo de pessoa.

Para atender à Lei Suprema, o indivíduo deixa de existir. Todos viram parte de um único povo, com uma única vontade e uma única mente.

O problema, obviamente, é que essa utopia é terrivelmente solitária.

Quando sentimos que nossa vida não tem sentido, que todos à nossa volta são idênticos a nós, as coisas perdem o propósito. Deixamos de ser humanos para nos tornarmos máquinas. Como disse Adolph Eichmann, o oficial nazista cujo julgamento Arendt assistiu, uma “engrenagem” no sistema.

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Adolph Eichmann

Tyranny não é um jogo fácil de absorver. De estupros a torturas de prisioneiros, nenhuma maldade fica de fora. No combate, inimigos choram e gritam ao morrer. Se a maioria dos games nos transforma em RamboTyranny é O Resgate do Soldado Ryan. O jogo é Nada de Novo no Front mais que Pearl Harbor; Até o Último Homem mais que Bastardos Inglórios.

Mesmo assim, o que mais choca não são as atrocidades. É ver as pessoas perdendo sua humanidade e transformando-se (literalmente) em máquinas.

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Barik, um dos party members, é um soldado de elite de Kyros. Atingido por uma tempestade mágica, acabou preso dentro de uma armadura de ferro. Não pode se lavar nem atender a seus desejos.  Precisa urinar e defecar dentro da couraça, e seu fedor aterroriza mais que sua aparência.

Barik não deixa isso afetá-lo. Ele é um soldado de Kyros e continuará a obedecer as ordens. A armadura é até mesmo uma “vantagem”. No campo de batalha, se tornou um verdadeiro colosso.

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Eb é uma maga da resistência. Seu marido e filhos foram mortos pelo Líder Supremo. Todo o mundo que conheceu foi destruído. Ela vive de vingança, preferindo a morte em batalha a obedecer o responsável pela sua dor.

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Em dado momento, tudo muda. Derrotada pelo protagonista, ela se curva e aceita a escravidão. Conformada – e até animada, – transforma-se no instrumento da vontade de Kyros. Da família, fala sem rancor. Eles são o passado. O presente agora é outro.

Ela, que prometia ser uma antagonista carismática, uma heroína a fazer frente ao nosso vilão, mostra que Tyranny não tem espaço para essas fantasias.

No totalitarismo não existem “heróis”. Apenas engrenagens e a sujeira entre elas. Que você, como agente de Kyros, tem o dever de limpar.

Não é uma experiência confortável, mas é isto em si é positivo. Se, ao jogar Tyranny, você se sentir angustiado consigo mesmo, leve para o bem. É sinal de que você ainda é humano.

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Por que é tão difícil retratar vilões em games (e o que fazer para facilitar) http://www.finisgeekis.com/2016/05/02/por-que-e-tao-dificil-retratar-viloes-em-games-e-o-que-fazer-para-facilitar/ http://www.finisgeekis.com/2016/05/02/por-que-e-tao-dificil-retratar-viloes-em-games-e-o-que-fazer-para-facilitar/#comments Mon, 02 May 2016 23:31:03 +0000 http://finisgeekis.com/?p=4687 Moralidade.

Aqueles que acompanham a cena de games já devem estar acostumados a ver essa palavra em descrições de jogos. De fato, da mesma forma como Skyrim fez com que open worlds se tornassem o novo dogma, games moderninhos dos anos 2000 se ancoraram em “dilemas morais” e liberdade de escolha.

É difícil saber quem deu o primeiro tiro, mas a tendência certamente ganhou os holofotes com Star Wars: Knights of the Old Republic (2003) e com as promessas (se não a entrega) de Peter Molyneux em Fable (2004).

Obviamente, decisões morais em games existem desde muito antes. Como fãs da “velha guarda” dos RPGs isométricos sempre nos lembram, clássicos como Planescape: Torment e o primeiro Fallout entregavam dilemas complexos que continuam imbatíveis após quase 20 anos.

Não é à toa que esses RPGs quase sempre são tidos como referência por games que se vangloriam de proporcionar liberdade de escolha.

É isso que promete a Obsidian em seu futuro jogo Tyranny, ainda sem data de lançamento. Tal como seu último sucesso, Pillars of Eternity, a trupe de desenvolvedores veteranos pretende entregar mais um tributo old school aos games “cabeças” de outrora. A diferença, aqui, está na moralidade.

Em Tyranny, só podemos jogar como vilões.

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A guerra entre o bem e o mal terminou, e o mal venceu. Kyros, o soberano das trevas, tornou-se o novo ditador do mundo. Como um oficial do grande tirano, sua tarefa é fazer cumprir sua vontade e garantir que os perdedores continuem devidamente submissos.

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A Obsidian não é conhecida por apostar na mesmice, e parece que dessa vez eles chutaram um dos maiores vespeiros do mundo dos games. Isto porque poucas coisas são mais difíceis e têm um histórico de fracassos maior do que PC maus convincentes.

Se é verdade que “escolhas morais” se tornaram extremamente populares em jogos, também é verdade que pouquíssimos entre eles as fizeram direito. Não é preciso navegar muito tempo para se deparar com artigos sobre os exemplos mais ridículos de dilemas morais, ou mesmo apelos para que desaparecem de todo.

De fato, videogames são tão pouco sutis que, na maioria dos casos, nos colocam escolhas não entre o “bem” ou o “mal”, mas entre o leal e estúpido e a criança que grita com a mãe. Não há espaço para vilões sedutores ou heróis mal-humorados. Ou vestimos o manto de paladinos da justiça, ou amarramos latas nos rabos de cachorros.

Mesmo jogos que se gabam de um sistema “cinza” de moralidade não fogem à regra. Raros são os títulos que oferecem uma “terceira via” no estilo do primeiro The Witcher. Na maioria das vezes, tudo o que nos resta é escolher o mal menor entre duas opções cretinas.

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Vocês se merecem

Há também o fato de que, ao contrário do que dizem os moralistas, “fazer o mal” não agrada à maioria das pessoas. Vários psicólogos já constataram que gamers preferem jogos em que ajam de acordo com seus corações, tratam NPCS como pessoas reais e sentem culpa por más ações cometidas por seus avatares.

Levando tudo isso em consideração, pessimistas de plantão podem dizer que a Obsidian abocanhou mais do que é capaz de engolir. Felizmente, o diretor Brian Heins e sua equipe não precisam começar do zero.

Ao longo das décadas, várias estratégias foram pensadas para tornar a maldade não só tolerável, mas divertida.

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1) Dar um contexto às ações

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Em A Lista de Schindler, o oficial da SS Amon Göth gosta de tomar café da manhã enquanto atira nos judeus em seu campo de concentração. Göth é mau pelo simples prazer de ser mau. Suas ações não parecem fazer sentido, e justamente por isso fazem dele um vilão tão odiado.

De fato, mais do que a maldade em si, é justamente a arbitrariedade que traz calafrios ao pescoço. Um latrocínio provoca menos comoção do que um tiroteio em uma escola. Assassinatos políticos, então, quase se passam por boa ação. Países democráticos não têm o menor pudor em erguer estátuas a quem matou em nome de uma causa.

Ao contrário da ideologia pacifista repetida nos últimos 70 anos, poucas pessoas são contra a violência. A maioria é capaz de tolerar (quando não louvar) qualquer tipo de atrocidade, desde que bem justificada.

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Uma notável exceção

A intolerância é aplaudida quando feita em nome da tolerância. Guerras são ruins, mas são válidas se forem defensivas. Chacinas são perdoadas se forem uma “reação” a alguma injustiça. Atentados terroristas em nome de boas causas são um sacrifício para um bem maior. Mortes, torturas e depredações são fair play se o alvo as “merecer”.  Até um serial killer ganha misericórdia se conseguir se enquadrar como “vítima do sistema.”

O ser humano tem uma enorma facilidade de processar más ações se conseguir se convencer de que, por trás delas, há um pingo de razão. Vide a imensa popularidade dos anti-heróis, que não raramente têm uma contagem de corpos digna de criminosos de guerra.

Punisher

Vilões arbitrários, por outro lado, nos dão angústia. Se já é doloroso assisti-los, ser obrigado a encarná-los é um esforço que muitos consideram não valer a pena.

Aqui, poucos exemplos são melhores do que o grande clássico da arbitrariedade: Grand Theft Auto. Em GTA IV, o protagonista Niko Bellic é um imigrante empurrado para uma versão deturpada do Sonho Americano. Tal como Tony Montana em Scarface, ele  é uma personagem cativante, que provavelmente teria um futuro diferente caso tivesse vivido em outras circunstâncias.

GTA V, por outro lado, nos introduz a um trio de criminosos que parece fazer o mal apenas por fazer. Mesmo louvado pelos seus aspectos técnicos, o jogo causou desconforto pelo excesso de maldade gratuita.

Os exemplos não param por aí. No Russian, a polêmica missão de Call of Duty: Modern Warfare 2 que envolve um massacre de civis em um aeroporto, foi lançada com a opção para “pulá-la” sem qualquer prejuízo. E Hatred, um simulador de chacina isométrico que quase foi banido do Steam, se provou um fracasso de público e crítica.

Esse tipo de violência descerebrada é uma ótima forma de extravasar, mas dificilmente mantem nossa atenção por muito tempo. Como diz Brian Heins, diretor do Tyranny:

Eu fico desapontado quando jogo games em que a opção “má” exige que eu aja como um psicopata, assassinando todo mundo na minha frente. Às vezes isto é legal, mas é muito restritivo quando é a única opção. Especialmente quando o jogo me pune por tomar estas decisões.

Dar justificativas aos vilões é uma ótima forma de apaziguar a consciência – e, de quebra, de construir histórias mais complexas. Porém, ela não é a única. Apoiar barbaridades em nome de uma causa funciona no papel. Na prática, interpretar este tipo de vilão cedo ou tarde pode abalar o espírito de qualquer um.

É o caso de uma ex-colega minha, que tinha crises de choro durante os ensaios de uma peça  em que interpretava uma vilã maquiavélica. Vestir uma máscara que não nos representa, por mais curto que seja, nunca é agradável. Para conseguirmos nos divertir dessa maneira, é necessário recorrer a artifícios.

2) Desengajamento moral

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Segundo o ex-terrorista britânico Maajid Nawaz, para dialogar com aqueles que odiamos é necessário “humanizá-los”. Deixar de vê-los apenas como um panfleto de suas opiniões e entender que são pessoas de carne e osso, tal como nós.

Na ficção – e, em especial, nos videogames – geralmente se segue o caminho contrário quando se busca enaltecer a vilania. É muito mais fácil eliminar hordas de adversários quando pensamos neles apenas como pixels na tela ou números em uma lista de baixas.

Algumas táticas são mais velhas do que andar para trás. Remover rostos (ou cobri-los com máscaras ou bandanas). Substituir nomes próprios por rótulos. Implementar visuais sugestivos, de maneira que aliados e inimigos possam ser identificados à distância.

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É o caso dos nazistas nos primeiros Medal of Honor, dos guardas em Skyrim com seus elmos e vozes idênticas, dos darkspawn em Dragon Age e dos orcs em boa parte dos games de fantasia. É muito mais fácil assassinar stormtroopers sem nome do que indivíduos com amigos e família esperando seu retorno.

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Alguns especialistas chamam esse processo de desengajamento moral, e ele está na raiz do sucesso de GTA, Postal e similares. Um jogador é plenamente capaz de se divertir à beça atropelando pedestres e metralhando helicópteros. Desde que, antes, consiga se convencer de que aquele não é ele, e que aquelas pessoas não existem de verdade.

Em grande parte, o desengajamento moral é estimulado pelos próprios desenvolvedores. Em alguns casos, no entanto, ele pode surgir naturalmente, mesmo nos jogos mais sérios. Para isso, é necessário que o gamer consiga

3) Ligar o modo automático

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Acho que não é um exagero dizer que ninguém curte o mesmo game da mesma forma em playthroughs repetidas. Um primeiro contato pode ser uma viagem de descoberta; o décimo nono, um esforço complecionista para platinar o jogo e encontrar easter eggs.

Não é preciso dizer que nossa experiência afeta e muito nosso processo de escolha. Muitos gamers preferem curtir um jogo “naturalmente”, da maneira que lhes parece mais certa, para em playthroughs consecutivas usar guias e explorar opções diferentes. O que era um dilema moral da primeira vez deixa de ser na segunda, terceira ou quarta.

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Nunca mais perca alguém na Suicide Mission

Para alguns especialistas, isso se dá porque temos duas formas diferentes de processar nossas ações. Uma é racional, meticulosa, atenta para todos os detalhes. Outra é intuitiva, direta-ao-ponto, focada em padrões e repetições.

Quando jogamos um jogo pela primeira vez, estamos atentos a tudo: o ambiente, as linhas de diálogo, cada fresta do mapa. Se às vezes perdemos o sono com decisões tomadas em um game é porque não fazemos ideia de quão definitivas elas serão para o desenlace da história.

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Por outro lado, quando já estamos acostumados com o jogo, o cérebro trabalha no automático. Não há razão para poupar um NPC se sabemos que não há consequências, ou para se esforçar no bom-mocismo se, no final, os ganhos são muito pequenos.

Ao perambular por Skyrim, um jogador pode querer proteger o mundo dos daedras maléficos. Na 180ª hora de jogo, porém, é muito provável que não tenha escrúpulos para sacrificar um aliado para completar a quest da Boethiah.

A motivação para praticar o bem eventualmente some, e sacrificar um NPC genérico com 4 linhas de diálogo pré-gravadas se torna um preço aceitável para o achievement Oblivion Walker e uma das melhores armaduras do jogo.

4) Evitar “decisões importantes”

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Isso pode soar um sacrilégio, já que games funcionam sob o lema de que “mais é mais”, e  “decisões importantes” se tornou uma das buzzwords mais comuns depois de “épico” e “cinemático”.

No entanto, como estudiosos de ética estão cansados de lembrar, responsabilidade pessoal está ligada ao nosso poder de afetar o mundo à nossa volta. Quanto menos poder temos, mais fácil se torna libertar nosso Mr. Evil interior.

Quando nossas ações mudam o destino do universo, um ato de maldade é um crime sem paralelos. Quando mal somos notados por NPCs, “bem” e “mal” se torna uma questão de gosto.

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Reduzir o peso de decisões é um caminho que desenvolvedores preguiçosos muitas vezes seguem para não precisarem encarar as questões difíceis em torno da maldade. E, de quebra, passarem uma ilusão de escolha sem se preocupar em construir uma história complexa e reativa.

Se essa solução é o beijo da morte para jogos narrativos, ela é ao mesmo tempo o que faz das sandboxes tão divertidas. Em muitos casos, NPCs são gerados proceduralmente e são “repostos” caso o pior aconteça. Por mais cidadãos que desapareçam, explodam ou sejam amarrados na linha do trem, a vida sempre voltará ao normal.

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Nada ilustra melhor esse ponto do que a maneira como RPGs lidam com o furto. Com raríssimas exceções, NPCs não fazem uso de nenhum objeto de cena. Eles estão lá única e exclusivamente para serem tomados pelo jogador.

Em alguns (muitos) casos, os objetos sequer têm um vínculo funcional com seu dono ou com o ambiente em que é encontrado. Não há motivo algum para se sentir culpado ao roubar uma casa quando tudo o que seu morador possui é uma espada de fogo + 2 no armário do banheiro.

Curiosamente, é isso mesmo que a Obsidian pretende evitar. Como Brian Heins nos diz no primeiro Dev Diary:

Nós não queremos que vocês sejam a “garota de recados do Mal. Se vocês fossem só um subordinado ou um lacaio, sua habilidade para influenciar ou mudar o mundo seria restrita, e sua responsabilidade pelo fato de que o mal venceu diminuiria.

Isso exigiu que nós construíssemos nossas quests e conteúdo para reforçar esse ponto a cada momento. Nós não queríamos que vocês fossem abordados por NPCs aleatórios pedindo ajuda para resgatar seu gato da árvore. Suas escolhas moldam nações.

O diretor de Tyranny nos lembra de um ponto importante: quanto mais buscamos artifícios para deglutir a maldade, mais um jogo se aproxima do estereótipo de vilão bocó que marca presença em CRPGs desde sempre.

É uma verdadeira corda bamba, em cima de dois precipícios bastante fundos. A renascença do RPG isométrico já segue há bons anos, e não há falta de opções para o gamer saudoso da complexidade dos velhos tempos. Torment: Tides of Numenera, afinal de contas, já está em early accessTyranny precisará impressionar, ou ganhará o epitáfio de primo mal sucedido de Pillars of Eternity.

Por outro lado, o sucesso de um RPG é medido pela empatia com suas personagens. Se a Obsidian não conseguir criar um protagonista com que possamos nos reconhecer, Tyranny pode sucumbir à própria ambição.

Muito pouco material já foi lançado sobre o jogo. O Dev Diary, entretanto, já nos dá uma certeza: os criadores de Pillars of Eternity não estão interessados em tomar atalhos. Se a aposta vingará é algo que descobriremos ao longo do ano. E ao qual estarei torcendo com todo o afinco.

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Eu acho que o meio está rapidamente se movendo na direção de se tornar mais cinemático do que era – o que é bom e ruim, eu creio. É bom na medida em que agora podemos mostrar tanto quanto contamos. E é ruim porque nós subitamente precisamos mostrar, e menos fica a cargo da imaginação… algo com que, de várias maneiras, nós jamais poderemos competir.

A frase acima é de David Gaider, escritor da Bioware, em entrevista que deu quando do lançamento de Dragon Age II. Sua opinião é ao mesmo tempo pé-no-chão e profética, e só mostra quanto Gaider está antenado na metamorfose pela qual os CRPGs passam. Dragon Age II foi criticado por simplicar demais as mecânicas do gênero, por emprestar demais dos games de ação e por – supostamente – ter se colocado como um “primo pobre” (e fantástico) do bem sucedido RPG/TPS Mass Effect. O lançamento causou alguma comoção – com direito até a uma “mea culpa” do diretor criativo Mike Laidlaw – mas ela pareceu superficial, se não mesmo derrotada. Entre os gráficos superiores, novos sistemas e orçamentos dignos de Hollywood, havia uma impressão sutil de que o novo, goste a gente ou não, chegou para ficar. Adicione a isso uma nova geração de gamers que conheceu pouco a era de ouro dos CRPGs e menos ainda os jogos de tabuleiro que a inspiraram e a situação piora ainda mais. Não há mais lugar para os RPGs de ontem, e quem pensa diferente pode fazer as malas e partir.

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Quem vibrou com esses títulos sabe a pena que isso é

Um recomeço inesperado

As malas eles fizeram, só que pouquíssimos (além de David Gaider) podiam imaginar quão longe eles chegariam. De 2011 até hoje há um Kickstarter de distância, e com a popularização do crowdfunding uma série de desenvolvedores não muito amado pelos investidores tradicionais arregaçaram as mangas e se puseram a desbravar fronteiras. O resultado? Em 2014, Divinity: Original Sin, homenagem saudosa à “era de ouro”, arrecadou 1 milhão de dólares dos fãs; Wasteland 2, sequel de um título obscuro de 1987, juntou quase 3. Pillars of Eternity, lançado esse mês, ultrapassou os 4 milhões, e Torment: Tides of Numenera, sucessor do clássico cult (e fracasso de vendas) Planescape: Torment está a caminho dos 5. Um gamer veterano que retomasse o hobby hoje após vinte anos de hiato se sentiria em casa: os velhos CRPGs isométricos são o novo preto.

As razões para isso talvez não sejam tão misteriosas. Já falei aqui antes do papel do “faz de conta” e da dificuldade dos games em reproduzi-lo. Se um roguelike ou uma narrativa emergente, como um RPG de mesa, trazem isso pelo acaso e pela imprevisibilidade, os CRPGs de eras passadas traziam pelo que lhes faltava. Não havia pixels suficientes para representar uma vestimenta, então estávamos livres para imaginá-la da forma que quiséssemos. Não havia uma voz oficial para o protagonista assinada por uma celebridade, então escutávamos a nossa. Não havia, muitas vezes, o aprisionamento de nossas personagens à uma lore rígida, então podíamos criar personagens do absoluto zero, muitas vezes reutilizando heróis de RPG de mesa ou outros videogames. Não havia a obrigação (ou o espaço em disco) para se contratar muitos dubladores, e assim nossos diálogos eram imensos, irrestritos e versáteis em opções.

O dilema lembra as disputas entre aqueles que consideram jogos um “playground” e os que pensam neles como narrativas, sucessores de filmes e livros. É uma discussão quase tão velha quanto Baldur’s Gate, e que levou desenvolvedores e pesquisadores a coçar muito a cabeça. O curioso dos RPGs é que, mais do que qualquer outro gênero, parecem estar no meio do tiroteio: seus “diferenciais” desde que mundo é mundo foram a liberdade de escolha e a qualidade narrativa, e há fãs de ambos os lados pronto para criticá-los quando pendem para um lado mais do que para outro. De onde vem a questão: e quando liberdade e narrativa forem auto excludentes? E se os longos textos e diálogos intermináveis – sem contar a preocupação em criar um enredo coerente – tirarem do jogador a sensação de autonomia? E se o emaranhado de atributos, cálculos e acrônimos incompreensíveis (porém indispensáveis) afugentarem um jogador que de outra forma teria amado mergulhar na história?

Apesar de meu apreço pela “velha guarda”, sempre me incomodei com que direcionava essas limitações como críticas aos novos CRPGs do mundo AAA. Afinal de contas, trata-se de um estilo de jogo que veio a outro propósito, e tem um currículo próprio de inovações bem sucedidas. Quem nunca se impressionou com uma cinemática bem feita ou com a voz da Jennifer Hale que atire a primeira pedra. Entretanto, o “retorno” dos CRPGs isométricos conta uma história que não pode ser negada: há uma experiência única no gênero que se perdeu com o passar do tempo. E alguns gamers estão dispostos a voltar para buscá-las.

O retorno do filho pródigo

Aqueles que jogam desde os anos 1980 e 1990, todavia, sabem que a coisa não é tão simples. Há motivos para o gênero ter mudado em primeiro lugar, e muito do que era feito antigamente só era feito porque não se conheciam alternativas viáveis. O gamer contemporâneo que explore um título de vinte anos sofrerá o mesmo choque de um estrangeiro perdido em uma feira livre. Afinal, estamos falando de uma época anterior aos quest markers, auto-travel, autosave, regeneração automática; a era das mortes permanentes, diários de campanha pouco claros, resolução de tela sofrível e sistemas de combate desesperadores. A época em que era possível “perder” o jogo simplesmente por deixar de ter um item específico em um lugar específico em um momento específico.  Lembro-me com amargura de ter abandonado Planescape: Torment depois da terceira vez em que tive de recomeçar o jogo do zero por ter jogador fora quest items sem saber que eram importantes.

Seria a nostalgia suficiente para trazer esse estilo de volta à moda, ou seria preciso reinventá-lo? É possível reinventar esse tipo de jogo sem perder sua essência?

A despeito de seu sucesso, a nova leva de RPGs isométricos deixa algumas dúvidas. Divinity: Original Sin modernizou seu visual, sistema de combate, criação e customização de personagens, mas sofre de diálogos prolixos e um sistema de crafting para dar dor de cabeça em qualquer um. Wasteland 2 tem batalhas estupidamente difíceis e uma lista de perícias gigantesca, que exige um planejamento minucioso na hora de criar sua equipe. Qual foi minha surpresa, portanto, ao ver que os criadores de Pillars of Eternity resolveram nadar contra a corrente.

Segundo o diretor de projeto, Josh Sawyer, o objetivo do sistema de regras é impedir a criação de personagens inviáveis. Todos que já tiveram experiências com CRPGs sabem que montar cuidadosamente um protagonista é uma das tarefas mais importantes no gênero – e fonte de boa parte da diversão. Afinal, nada dá mais prazer do que ver uma personagem evitando um combate graças ao bom uso de perícias, ou derrotando um inimigo superior por meio da sinergia entre party members.

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A proposta é estranha, mas assusta menos quando vista em prática. Para os revoltados de plantão: não se alarmem. Há habilidades melhores que outras e o jogo ainda recompensa aqueles que dominam o sistema. Ademais, a dificuldade de alguns encontros vai fazer bom uso dessas recompensas. A “mágica” está em três fatores: níveis de dificuldade minuciosamente customizáveis, diversidade de builds para cada classe e a possibilidade de criar party members, “NPCs do jogador”, ao longo da aventura. Sozinhas, cada uma das medidas não impressionaria muito, mas juntas formam um equilíbrio interessante. Até que ponto vai ser suficiente para levar o gosto por CRPGs isométricos a uma nova geração é ponto para debate. De qualquer maneira, eles não estão sozinhos na luta. Os novos CRPGs do universo AAA também deverão se reinventar caso queiram resistir à popularidade das sandboxes e dos jogos de ação. A diferença é que, ao contrário de Pillars of Eternity, eles não têm um passado ao qual voltar. Dragon Age se diz “sucessor espiritual” de Baldur’s Gate, e várias franquias reivindicam o legado de uma “tradição” RPGística. Mas a verdade é que, mais do que nunca, estes jogos são cartas de despedida a uma origem perdida

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