Warning: Use of undefined constant CONCATENATE_SCRIPTS - assumed 'CONCATENATE_SCRIPTS' (this will throw an Error in a future version of PHP) in /home/finisgeekis/www/wp-config.php on line 98

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/feed-rss2.php on line 8
mangá – finisgeekis http://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Thu, 14 Jul 2022 19:46:57 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32 mangá – finisgeekis http://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 Yuuta Nishio: um mangaká para as angústias de nosso tempo http://www.finisgeekis.com/2022/07/14/yuuta-nishio-um-mangaka-para-as-angustias-de-nosso-tempo/ http://www.finisgeekis.com/2022/07/14/yuuta-nishio-um-mangaka-para-as-angustias-de-nosso-tempo/#respond Thu, 14 Jul 2022 19:43:19 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23178 Uma mulher anda de bicicleta. O terno e mochila de laptop entregam que não pedala a passeio.

Um caminhão a ultrapassa. A motorista lembra alguém que conhece. Alguém importante, insubstituível. Alguém que lhe prometera construir uma vida com ela, que jamais a largaria para rodar Japão afora. A não ser que algo de muito errado tivesse acontecido.

Ela acelera, indiferente ao penteado desfeito e o suor que arruinava sua maquiagem. No retrovisor do caminhão ela enxerga a ponta de um cigarro. A pessoa de seu coração nunca fumava. A ciclista sorri, deixando que a bicicleta a embale em uma descida enquanto caminhão segue seu caminho.

Ela está feliz.

A sequência é uma de tantas pitadas de poesia visual encontradas nas páginas de Yuuta Nishio. Chamado por alguns de um Inio Asano dos mangás yuri, Nishio combina um olhar apurado para problemas íntimos com uma leveza que serve de antídoto aos anos de fadiga em que vivemos.

Um novo Inio Asano?

Comparações costumam ser armadilhas. Às vezes, o paralelo está menos nas páginas que na nossa mente. Às vezes, trazer à discussão uma obra ou autor de sucesso cria expectativas que história nenhuma é capaz de cumprir.

Meu primeiro contato com Yuuta Nishio veio justamente de uma comparação. No caso, com Inio Asano, mangaká de quem escrevi à exaustão nesse blog e que, para o bem ou para o mal, conquistou uma posição única nas discussões sobre a mídia. Há um espaço em formato de Boa Noite Punpun no universo dos mangás que apenas Asano é capaz de preencher.

Isso não impediu Rebecca Silverman do ANN de chamar Nishio de um “Inio Asano-lite”: um autor que “toca em muitos temas e estilísticas similares”, dentro de “história[s] mais gente[is] com um apelo um pouco diferente”.

Não é preciso abrir seus mangás para entender o mais visível desses apelos: Nishio escreve histórias yuri. Isto, por si só, já lhe abre um terreno que os protagonistas de Asano enxergam apenas com o canto dos olhos.

O autor de Nijigahara Holograph já foi considerado “a voz de uma geração”, mas é uma voz distorcida pelas preocupações dos homens jovens, problemáticos e sexualmente precoces que encabeçam a maioria de suas histórias. Há conflitos humanos que personagens como estas nunca experimentaram. Em especial quando se desenrolam em espaços aos quais homens não são convidados.

O que não significa que não haja uma vibe indiscutivelmente “asânica” nas histórias que Nishio conta. Como os adolescentes de Umibe no Onnanoko, as personagens do autor mostram uma completa franqueza em relação ao sexo. As mulheres sobre as quais escreve usam o corpo para se relacionar com o mundo, sem atentar para charminhos, tropos românticos – ou mesmo, em alguns casos, convenções sociais.

Em contraste com a pobreza temática de certos mangás de romance, as personagens de Nishio não se deixam definir por seus afetos. Elas não são namoradas, apenas estão com outras – por pouco ou muito tempo, a depender das circunstâncias, mas sempre cientes de que a vida é uma jornada que deverão realizar sozinhas. E o amor e o sexo, apenas duas – e não necessariamente as mais importantes – das paradas.

Em Mizuno & Chayama, esse relacionamento une duas garotas separadas por rivalidades entre suas famílias. Mizuno é a filha de um político ambientalista em combate contra uma grande empresa do ramo de chá que emprega metade da cidade. Chayama é ninguém menos que a filha do dono da empresa, cujo rosto estampa outdoors.

Ambas se se sentem frustradas: Mizuno porque todos a veem como uma extensão de seu pai: uma celebridade influente a quem podem pedir favores; Chayama, porque a riqueza de seus pais causa rancor entre os colegas mais humildes.

Chayama, em particular, é vítima de um bullying tão violento que parece tirado das páginas de um romance de Mieko Kawakami. A tortura vem das mãos de Aikawa, que em origem – e até aparência – lembra uma versão malévola da Aiko Tanaka de Boa noite Punpun. Pobre, divide uma casa enterrada no lixo com uma mãe que torra dinheiro em produtos milagrosos vendidos por seitas. Aikawa odeia sua vida e põe a culpa na Corporação Chayama, menos por acreditar que são culpados por suas dores que para mascarar sua violência com um verniz de justiça.

Como Asano, Nishio usa e abusa do sexo para atiçar o desconforto do leitor. Mizuno é molestada por um aliado de seu pai durante um jantar da campanha. Ninguém se move para ajudá-la: a eleição é mais importante que o desconforto da filha. O irmão de Aikawa, pré-adolescente, adquiriu o hábito de se masturbar contra os móveis. Por conta da negligência da família, não aprendeu como seu corpo funciona. Sobra à jovem limpá-lo quando chega ao orgasmo.

Quando todas essas violências acumuladas atinge um ponto de ebulição, não nos surpreendemos ao ver o sangue derramado. Há algo de As Flores do Mal na maneira como Mizuno & Chayama migra lentamente para uma tragédia anunciada.

Novos rumos depois dos 30

Sob muitos aspectos, o mangá não poderia ser mais diferente de After Hours, trabalho anterior de Nishio. Aqui, o foco é a relação de Emi, uma mulher de 24 anos, perdida e desempregada, por Kei, charmosa DJ seis anos mais velha.

Não deixe o título e as luzes de balada passarem a mensagem errada. Embora sua história se passe em becos escuros e raves alucinadas, não há nada de libidinoso e chocante em sua história de amor. As baladas de Emi e Kei pertencem ao mesmo universo de Paripi Koumei: um underground sempre às claras – ainda que suas luzes sejam artificiais e estroboscópicas.

É difícil ler o mangá sem pensar em Solanin, obra de Asano sobre os dramas de um grupo de jovens adultos que se envolvem na criação de uma banda de rock. Emi e Kei são mais velhas que o elenco daquele mangá, mas isso só dá mais peso ao seu projeto de vingar na carreira das raves.

Não há nada de misterioso em sonhar de viver de arte nos seus vinte e poucos anos. Fazê-lo depois dos trinta, por outro lado, é uma decisão intrigante a ponto de carregar todo um enredo.

Ao contrário da titubeante Minare de Nami yo Kiitekure (ou de todo o elenco de Honey & Clover), a Emi e Kei nem sempre sabem o que elas querem, mas sabem exatamente o que elas são. Elas não precisam de uma jornada de auto-conhecimento. O seu futuro pertence a elas.

Embora escondido sob a agressividade de sua trama, esse mesmo otimismo está também presente em Mizuno & Chayama. Se Asano é trágico mesmo quando tenta ser leve, há uma leveza nos mangás de Nishio que se sobrepõe às cenas mais chocantes.

Mizuno & Chayama, que se passa no último ano do Ensino Médio – literalmente, o último ano (de suas adolescências/antes do início de sua vida adulta). A despeito dos sapos que são obrigadas a engolir, suas protagonistas nunca perdem de vista de que aquilo que vivem é uma fase que um dia passará sem deixar traumas ou rancores.

Após três anos de pandemia, violência galopante, desmandos políticos e histeria, histórias como essa soam como nada menos que um curativo mental.

Muitos mangás falam sobre os tombos, os machucados, o desespero de e ver sem rumo. Nishio escreve sobre o que acontece quando decidimos nos levantar. E este momento, ela nos ensina, sempre chega.

Todos estamos na sarjeta…

“After hours”, a DJ Kei explica, são aquelas horas entre o fim da balada e o início do próximo dia útil. As horas incertezas que ainda não fazem uma manhã, mas tampouco pertencem à noite; em que o frenesi do escapismo já passou, mas ainda não fomos rendidos pela chave-de-braço da rotina. Um momento para nos situarmos – e, quando a situação pede, respirar.

De certa forma, esses anos 20 que vivemos vem se mostrando as after hours do século XXI, tal como os anos 20 do século passado foram a era do jazz. Que saibamos aproveitá-los tão bem quanto Emi e Kei, ou Mizuno e Chayama; se não para fundar uma rave ou mudar de cidade, para dar à nossa vida o rumo que precisa.

Como escreveu Oscar Wilde, todos estamos na sarjeta, mas alguns olhamos para o céu.

]]>
http://www.finisgeekis.com/2022/07/14/yuuta-nishio-um-mangaka-para-as-angustias-de-nosso-tempo/feed/ 0 23178
“A Música de Marie”: por um sonho que abrace nossa humanidade http://www.finisgeekis.com/2022/06/17/a-musica-de-marie-por-um-sonho-que-abrace-nossa-humanidade/ http://www.finisgeekis.com/2022/06/17/a-musica-de-marie-por-um-sonho-que-abrace-nossa-humanidade/#respond Fri, 17 Jun 2022 15:30:09 +0000 https://www.finisgeekis.com/?p=23138 Cerca de trinta anos atrás, algumas pessoas pensavam que a queda do Muro de Berlim seria o capítulo final de um século de catástrofes que nunca mais se repetiria. Sem dúvida, faltavam problemas a se resolver. O futuro traria sua parcela de desafios. Mas nenhum deles voltaria a sacudir os pilares do sistema. Havíamos chegado ao fim da história.

Hoje em dia, poucos acreditam nessa ilusão.

Nossa sociedade vive com medo: não apenas de regredirmos a uma era de extremismos e incertezas que julgávamos acabada, mas também o medo de termos ido longe demais. A crise ambiental se faz sentir um pouco mais a cada dia que passa. Novas tecnologias nos trazem não utopias, mas algoritmos obscuros, controle político e fake News.

É difícil acreditar que A Música de Marie, mangá de Usamaru Furuya recém-lançado pela NewPop, não tenha sido escrito com tal medo em mente. Publicado originalmente entre 1999 e 2001, é um trabalho a um só tempo atual e nostálgico; atemporal, mas também hesitante em abordar seu tempo.

Uma caixa de música

A Música de Marie é o tipo de fantasia que não vemos todos os dias – se é que de “fantasia” podemos chamá-la. Seu mundo fictício é mecânico, movido a pistões, engrenagens e ponteiros analógicos. Não perca tempo, contudo, buscando a desilusão ou inquietude com o mundo industrial tão presentes na ficção steampunk.  

Trata-se de um mundo construído, mas desprovido de construtores: tão belo e misterioso quanto uma velha caixinha de música flagrada nas vitrines de um antiquário.

O paralelo, aliás, é proposital. Como o título deixa claro, A Música de Marie é a história sobre uma música – mais precisamente, sobre um garoto abençoado (ou amaldiçoado) a ouvi-la.

Quando criança, Kai sofreu um acidente de que não deveria ter sobrevivido. Contrariando as expectativas, ele retorna ao mundo dos vivos e descobre, no processo, que adquiriu sentidos excepcionais. Em primeiro lugar, o episódio o dotou de uma audição fora de série, capaz de escutar até mesmo tensões nas rochas e bolsos subterrâneos de gás. A habilidade prontamente o transforma em uma sensação na vila de mineradores em que vive.

Mais importantemente, ele se tornou capaz de ouvir e enxergar Marie, deusa protetora da humanidade.

Como tantos profetas da mitologia, Kai sobrevive à experiência um tanto menos humano. Seu amor pela deusa ultrapassa o metafórico e se transforma em desejo físico. Para Pipi, que o ama desde a infância e não consegue imaginar um futuro senão ao seu lado, seu retorno é um acontecimento agridoce.

Quando suas tentativas de impressionar o garoto começam a pôr em risco sua própria vida – por exemplo, motivando-a “voar” para ficar parecida com Marie – somos tentados a nos perguntar se esse paraíso mecânico é assim tão paradisíaco.

Infelizmente para Pipi – e todos os cidadãos de seu mundo – algo mais sério que a solidão ameaça os pilares de seu mundo.

Se o país de Kai é belo como uma bailaria de porcelana sobre uma caixa de música, não demora para sentirmos que seu mundo perfeito, milimetricamente planejado, é tão claustrofóbico e opressivo quanto a estante de uma cristaleira.

Os sinais são sutis, mas consistentes. Ninguém entende muito bem como as máquinas que tanto usam funcionam. Depósitos legados por gerações passadas estão repletos de aparelhos estruturalmente intactos, mas que se recusam a funcionar. Sempre que um inventor descobre uma tecnologia nova, sua invenção é destruída em uma pane misteriosa.

Kai, cuja audição supera aquela das outras pessoas, escuta um ruído dissonante imediatamente antes de enguiçarem. É como se as máquinas quebrassem de propósito após receberem um comando. Um comando que só pode ter uma única fonte.

O leitor estará perdoado se pensar em Drosselmeyer, o sinistro fabricante de brinquedos do conto O Quebra-Nozes – que inspirou o igualmente macabro antagonista de Princess Tutu. Esta é exatamente a atmosfera que Furuya constrói para sua personagem titular.

Seria a Marie que seu povo tanto venera menos uma deusa benfeitora que uma inteligência criada para manter humanos no lugar?

E se esse lugar for bom – como de fato – seria mesmo correto tirá-los de lá? O que é preferível: a liberdade para se destruir ou a segurança trazida por um demiurgo?

Como Furuya resolve esse impasse é algo que você terá de ler o mangá para descobrir. Estragar a surpresa de seu enredo seria uma afronta à sua trama, tão bela e delicada como o mecanismo de um relógio de bolso.

Ainda assim, sem dar mais detalhes, posso contar que há uma falha filosófica em seu trabalho que destoa do todo como uma chave presa entre as engrenagens.

Tal como obras como Nausicaa do Vale do Vento e a série Nier, Furuya brinca com a ideia de que a humanidade será a arquiteta de sua própria destruição – de maneira que apenas seu fim poderia salvar o planeta de um apocalipse generalizado. Ao contrário destas obras, contudo, o autor parece acreditar que o armagedom pode ser evitado mantendo as pessoas longe de laptops e motores a diesel.

É como se o mesmo impulso elétrico que faz um circuito funcionar fosse responsável por acender o ódio e a mesquinhez no coração das pessoas.

No que diz respeito a ideias, esta está longe de ser nova. O que nem de longe significa que não seja problemática.

O mito da humanidade pura

A ideia de que o ser humano é um ser puro enquanto vive em paz com a natureza e é corrompido pela ação da sociedade remonta a séculos, quando não milênios. Ele ganhou popularidade, em particular, em períodos que passaram por rápidas (e bem-sucedidas) transformações sociais. Afinal, se é a sociedade quem estraga os humanos, basta mudar a sociedade para criar pessoas perfeitas.

Se essa proposta soa bem-intencionada (ainda que ingênua e potencialmente perigosa), algumas de suas variações resistiram pior à passagem do tempo. Historicamente, esse discurso também foi utilizado para infantilizar populações nativas, opor-se ao progresso da ciência e fundamentar políticas reacionárias – voltadas não só contra fábricas e chaminés, mas para a glorificações de ideologias retrógradas, fanáticas, violentas e primitivistas.

O Saque de Roma em 410 pelos Vândalos, de Joseph Nöel Sylvestre (1847)

É verdade que a era industrial tem problemas. Destruição do meio-ambiente, guerras mundiais, relações de trabalho desumanas são apenas algumas das muitas tragédias em seu currículo. Mas também é verdade que ela nos trouxe antibióticos, vacinas, sistemas públicos de bem-estar social e tecnologias de telecomunicação que, por sua vez, nos ajudaram a nos organizar politicamente e melhorar nosso sistema.

Ao mesmo tempo, não é preciso ir muito longe para enxergar que o país sorridente de Furuya existe apenas nas páginas de seu mangá. Como nossas mitologias atestam, violência, egoísmo, engodo e mesquinhez acompanham o ser humano desde que aprendeu a contas histórias. A natureza é responsável pelo brilho das estrelas e pelas estações do ano, mas também pelas doenças infecciosas e pelos nossos piores instintos. Ela não é “boa”; apenas “é”.

A era contemporânea pode ter industrializado a crueldade, mas ela de forma alguma a criou.

Saturno Devorando seu Filho, de Francisco Goya

Na sua utopia a um só tempo futurista e bucólica, Furuya parece construir seu próprio “fim da história”: uma sociedade não apenas afastada dos problemas do presente, mas da própria história humana, com todas as suas ironias, complexidades e contradições.

Como exercício intelectual, é o tipo de coisa que tem o seu valor. Ursula le Guin, uma das maiores mestras da ficção científica, já dizia que o escritor não tem obrigação de contar a verdade. Seu trabalho é nos incitar a imaginar o diferente, nem que apenas para que tenhamos coragem de questionar o status quo.

Ainda assim, em uma época em que nossos piores pesadelos começam a ganhar vida, é importante que aprendamos a sonhar com a realidade – e não apenas contra ela.

]]>
http://www.finisgeekis.com/2022/06/17/a-musica-de-marie-por-um-sonho-que-abrace-nossa-humanidade/feed/ 0 23138
“Shino Can’t Say Her Name”: a juventude é só o ponto de partida http://www.finisgeekis.com/2021/07/21/shino-cant-say-her-name-a-juventude-e-so-o-ponto-de-partida/ http://www.finisgeekis.com/2021/07/21/shino-cant-say-her-name-a-juventude-e-so-o-ponto-de-partida/#respond Wed, 21 Jul 2021 21:20:01 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22976 Abrir um mangá de Shuzo Oshimi é o mesmo que sair na rua quando uma tempestade está por vir. Sabemos que há um risco de congelarmos até o osso, terminarmos a noite com um blecaute e ainda acordarmos no dia seguinte com uma dor de cabeça.

Assassinato, vandalismo, misantropia, tortura: nada parece estar além da imaginação do autor de As Flores do Mal

Assim, quando soube que outra de suas obras estava para ser lançada no ocidente, me preparei para o pior. Qual foi minha surpresa ao descobrir que “Shino-chan wa Jibun no Namae ga Ienai” (em inglês, Shino Can’t Say Her Name) pouco tem a ver com seus outros trabalhos.

Originalmente publicado entre 2011 e 2012, o mangá é a prova que Oshimi tem um coração tão grande quanto sua capacidade de nos chocar. E uma versatilidade artística digna dos maiores autores.

O título deixa poucas dúvidas quanto ao enredo. Nossa protagonista, Shino Oshima, é uma garota que não consegue pronunciar seu próprio nome.

Ansiedade? Trauma? Distúrbio de fala? A própria Oshima não parece ter certeza. Tudo o que sabe é que sente espasmos quando expressa certas palavras, e seu nome é uma delas.

No primeiro dia de aula, durante a cerimônia de apresentação, essa dificuldade a transforma na piada de toda sala.

Talvez sejam apenas os flashbacks de Heaven que custam a me sair da mente; talvez, o fato de outro mangá de Oshimi sobre uma personagem gaga envolver o gaslighting de um filho pela mãe. Quando abri Shino-chan, tive a certeza de que estava diante de outra experiência traumatizante sobre o bullying.  

Os ingredientes estão todos lá. Logo após o vexame em seu primeiro dia de aula, Oshima cai sob a asa de Kayo, uma rebelde boca-suja com um pôster de Mundo Fantasma na parede de seu quarto. Outro colega, um garoto chamado Kikuchi, faz os amigos gargalharem com uma imitação de sua gagueira.

Não é difícil pensar que Kikuchi se tornará seu bully, e Kayo, uma versão light de Nakamura, chantageadora que leva o protagonista de Flores do Mal a um caminho de auto-destruição.

Mas  Shino-chan é um mangá com um rumo próprio. Tão inesperada, na verdade, que é até difícil acreditar que ainda estamos em uma história de Oshimi.

Kayo pode ser uma rebelde, mas canaliza sua energias em uma devoção pelo violão e pelo som de Bob Dylan. Kikuchi faz piadas de mal gosto, mas não está claro se tem noção do que realmente diz. Se Oshima fala de menos, o garoto parece amaldiçoado a falar demais – para a confusão, e a mágoa, de quem quer que o escute.

Kayo também, aprendemos, tem dificuldades em se expressar. Aspirante a roqueira, ela é incapaz de cantar afinado. Uma tarefa que logo descobre que Oshima é capaz de desempenhar. Como tantos gagos, sua dificuldade não o afeta no canto da maneira como o faz na conversa do dia a dia.

Há aqui ecos óbvios de Solanin e A Voz do Silêncio, impregnados de um humor negro que poucos além de Oshimi teriam coragem de botar no papel (quando Kayo sugere que Oshima use um caderno para se comunicar, a primeira palavra que escreve é “pinto”).

Seu paralelo mais próximo, na verdade, é Kokosake, longa de Mari Okada sobre uma garota que recobra a voz por meio da música. Você sabe que o mundo é uma caixinha de surpresas quando o autor de Flores do Mal e a escritora de Anohana podem ser citados em uma única frase.

A vida como ela é

As semelhanças com Okada vão além do enredo. Embora o cinema da autora nem sempre acerte em cheio, seus melhores trabalhos são justamente aqueles em que se inspira na sua própria juventude. Sem Mari, aluna problema que faltava nas aulas, não teríamos Jintan, o inesquecível protagonista de Anohana.

Se a semelhança entre os nomes (Oshima/Oshimi) não deixa claro, Shino-chan é igualmente baseado em experiências reais.

Quem nos conta é o próprio autor, num posfácio que acompanha o mangá. Quando criança, ele descobriu que sofria de disfemia tônica, um tipo de distúrbio de fala que provoca espasmos no começo das frases.

Essa condição lhe trouxe muita dor de cabeça na adolescente, mas nem tudo foram lágrimas. Segundo ele, ter dificuldade em se comunicar o ensinou a ouvir e a observar. Foi graças a isto que aprendeu a “ler” as expressões faciais das pessoas, algo que se tornou de imensa utilidade quando se pôs a desenhar mangás.

É um sentimento que sua história sucede em provocar, mérito de um final tão doce e poderoso que me impede até de falar a respeito. Não porque dependa de spoilers, mas porque contém uma epifania. Como um bom contista, Oshimi termina sua história com uma cena que nos faz reavaliar tudo o que pensávamos das suas personagens. E, com alguma sorte, também das pessoas de carne e osso do lado de cá da página.

“Eu não usei as palavras ‘gagueira’ ou ‘distúrbio de fala’ em momento algum nesse mangá. Por quê? Porque eu não queria que essa história se tornasse apenas sobre qualquer uma dessas coisas.

Conforme eu o desenhava, eu pensei: “desde que ele possa ressonar com qualquer um, mas ainda sim permanecer uma história sobre uma única pessoa, está bom o suficiente para mim”.

Histórias sobre adolescentes muitas vezes são uma desculpa para adultos extravasarem suas próprias fantasias. Seja ao retrarem experiências que temem ou desejam – envolvendo sexo, drogas ou violência– seja ao colocarem nos anos escolares num pedestal, como se o auge da nossa vida terminasse aos dezessete anos.

Shino-chan não é sobre nenhuma dessas coisas. Suas personagens não experimentam grandes libertinagens, grandes reviravoltas, acontencimentos excepcionais. Nem precisam de tanto para nos emocionar. Para elas, a adolescência é valiosa porque é apenas o ponto de partida; a estaca zero que lembramos com carinho não porque foi a mais importante, mas porque foi a que estourou o casulo dos adultos que viríamos um dia a nos tornar.

É difícil apontar o que é mais tocante. O fato de um mangaká conhecido por trabalhos tão misantrópicos revelar um lado tão humano ou o fato de ter decidido compartilhá-lo de maneira tão íntima.

Seja como for, só temos a agradecê-lo.

]]>
http://www.finisgeekis.com/2021/07/21/shino-cant-say-her-name-a-juventude-e-so-o-ponto-de-partida/feed/ 0 22976
“Hana-chan e a forma do mundo” : retrato de um Japão que não existe mais http://www.finisgeekis.com/2021/07/14/hana-chan-e-a-forma-do-mundo-retrato-de-um-japao-que-nao-existe-mais/ http://www.finisgeekis.com/2021/07/14/hana-chan-e-a-forma-do-mundo-retrato-de-um-japao-que-nao-existe-mais/#respond Wed, 14 Jul 2021 21:20:28 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22962 Quando era pequeno, o prédio em que eu morava pegou fogo.

Acordei de madrugada com os gritos da minha mãe. Meu pai não esperou para que eu entendesse que aquilo não era um sonho. Fui puxado escada abaixo com tanta força que tive a impressão de que voávamos.

Nos raros momentos em que uma curva nos forçava a aterrissar, lembro-me de ter sentido o chão frio e molhado. Estranho fogo aquele, que alagava em vez de queimar.

Dias depois, quando já tinha me recuperado do susto, as peças entraram em seus lugares.

Nosso incêndio havia, sim, espalhado labaredas – embora, felizmente, não a ponto de condenar o prédio. A questão é que os vizinhos haviam espalhado toalhas molhadas para conter o fogo.

A explicação me fez sentido, mesmo naquela época. Mas nem ela foi suficiente para apagar a memória de que eu tinha escapado das chamas como quem desce um tobogã.

É sobre esse senso de maravilhamento, essa capacidade de tirar uma aventura das experiências mais mundanas de que fala Hana-chan e a Forma do Mundo.

As formas do mundo

Não é à toa que o incêndio da minha infância foi a primeira coisa a me vir à mente ao abrir o mangá de Ryotaro Ueda. Hana-chan, também, começa com um desastre. Ou seria mesmo?

Uma criança brinca na chuva. Sua professora para o carro ao seu lado e insiste para que saia dali. Um tufão está a caminho. A menina, Hana-chan, diz que já fez os preparativos, mas não parece se dar conta da severidade do que está por vir.

Quando o tufão chega, suas consequências são tão mágicas – por falta de palavra melhor – que nos perguntamos se tudo aquilo não passou de uma fantasia.

O que, realmente, aconteceu com Hana-chan? Pergunta errada. O mangá de Ueda não é uma história sobre as experiências de uma menina, e sim sobre as formas inusitadas, fabulosas que assumem quando são filtradas por sua mente.

É um mangá sobre o que significa apreender o mundo quando ainda somos jovens o suficiente para escapar do cabresto da razão e do raciocínio abstrato. Justamente por isso, é uma carta de amor à imaginação – e à importância de cultivá-la.

O mangá é uma série de contos descrevendo episódios da vida de Hana-chan e seus amigos. Seria fácil descrevê-lo como um slice of life, mas isso não dá conta de explicar o quanto a obra destoa das convenções do gênero. Na verdade, não fossem os nomes japoneses e arrozais espalhados pela paisagem, seria até fácil esquecer de que se trata de um mangá.

Estamos na linha Minha Experiência Lésbica com a Solidão de obras que bebem dos BDs franceses e HQs independentes americanas tanto quanto dos quadrinhos japoneses. Pela personalidade tanto quanto pelo visual, Hana-chan chega a lembrar uma personagem do Ziraldo. Ponha uma panela em sua cabeça e ela se camuflaria perfeitamente em um volume de Menino Maluquinho.

Um Japão que não existe mais

Mangás sobre “garotas fofas fazendo fofices” muitas vezes são escritos para adultos. A “infância” idealizada que retraram é um exercício de escapismo: um contraste aos perrengues, horas extras e boletos que o dia a dia nos lança.

Hana-chan tem uma proposta diferente. Alguns de seus contos, como aquele sobre um plano da prefeitura para eliminar ervas daninhas com robôs, começa e termina no mundo da fantasia. Outros, como a trama sobre uma mulher cujo visual lembra a Sadako de O Chamado, apenas molham os pés no surreal, quando muito.

Ueda nunca traça a linha que separa uma coisa da outra, e seu trabalho é mais bem sucedido por isto. Não só porque faz jus à magia dos primeiros anos das nossas vidas, mas também porque eleva esse mistério acima da mera fantasia.

É, de fato, incrível o quanto aprendemos da vida ‘real’  Hana por meio de uma história que nos diz tão pouco. Hana-chan e seus amigos vivem em uma cidade escondida nas montanhas que diminui a cada ano que passa. Abandonados pela população em declínio, arrozais são consumidos pela natureza. Hana-chan e seus amigos brincam em ruas não asfaltadas, terrenos baldios, carcaças de fuscas abandonados.

Quando o escoamento de uma represa ameaça destruir a vila de Hana, tive a impressão de estar lendo uma versão japonesa de As Cidades Afundam em Dias Normais.

Há de fato mais em comum entre o mangá e esse romance de Aline Valek. Tal como a escritora brasileira fez com seu retrato do cerrado, Ueda escreve sobre um Japão que não existe mais – apagado por águas, reais e metafóricas.

“A chuva é quando o mundo troca de pele” diz Hana-chan. Cedo ou tarde, tudo o que conhecemos passa por esta metamorfose.

Muitas vezes, o que encontramos do outro lado é irreconhecível.

Todos nós temos um lugar a que não podemos voltar. Mesmo que não desapareça de maneira tão dramática quanto o Japão rural de Ueda.

Isso porque jamais voltaremos a enxergar o mundo com a imaginação de Hana-chan. O prédio onde morava quando minha casa pegou fogo continua firme e forte. Na verdade, continuo morando no mesmo andar de onde levantei vôo com meu pai naquela noite.

Mas onde o Vinicius de sete anos via uma experiência de outro mundo, eu enxergo apenas tijolo e cimento, escadas e extintores de incêndio. Para o mal, mas também para o bem, a perda de inocência é um caminho sem retorno.

O mangá de Ueda, porém, sugere que não é necessário lutar contra a corrente.

Memórias se remetem ao passado, mas não pertencem a ele. Elas existem também no presente, no futuro, em qualquer tempo em que pessoas estiverem dispostas a relembrá-las e compartilhá-las.

E, ao salpicá-las de magia, podemos garantir que nosso futuro, também, preserve algo de mágico.

]]>
http://www.finisgeekis.com/2021/07/14/hana-chan-e-a-forma-do-mundo-retrato-de-um-japao-que-nao-existe-mais/feed/ 0 22962
“I Had That Same Dream Again”: um melodrama igual, mas diferente http://www.finisgeekis.com/2021/06/16/i-had-that-same-dream-again-um-melodrama-igual-mas-diferente/ http://www.finisgeekis.com/2021/06/16/i-had-that-same-dream-again-um-melodrama-igual-mas-diferente/#respond Wed, 16 Jun 2021 22:12:53 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22910 Não importa se estamos falando do Pulitzer ou de um top 10 mental tirado de Alta Fidelidade. Todo tipo de prêmio tem seus award-baits: obras feitas sob medida para ticar todas as caixas de quem as avalia.

Esses trabalhos não são necessariamente ruins. Às vezes, são apenas reflexo do talento de alguns artistas em lidar com fórmulas pré-estabelecidas. E do poder que estas fórmulas exercem dentro de suas respectivas mídias.

I Had That Same Dream Again (originalmente Mata, Onaji Yume wo Miteita), indicada ao Prêmio Eisner 2021, é esse tipo de obra. Não estou dizendo que foi feita com esta (ou qualquer outra) premiação em mente. Mas o mangá tem o exato perfil daquelas histórias que fisgam o coração de leitores e críticos:

Fácil, culturalmente acessível, socialmente relevante sem abusar do valor de choque, sofisticado na medida certa para se distinguir do nosso slice of life de cada dia. Tudo isto embalando um melodrama cativante – ainda que o resultado seja mais previsível que ver o sol nascer de manhã.

A procura da felicidade

Baseado em romance de Yoru Sumino (Eu Quero Comer seu Pâncreas), o mangá conta a história de uma garota chamada Nanoka – e de três amigas improváveis que conhece no caminho da escola.

A primeira é Minami, colegial que passa as tardes sozinhas escrevendo em um prédio abandonado. Seu sonho, conta a Nanoka, é ser escritora. A segunda é “Skank”, uma jovem solteira que ganha a vida “vendendo sua juventude”. A terceira é uma velha senhora com uma admiração por um pintor de nome curioso: Live Me.

É óbvio, desde o primeiro momento, que cada uma dessas mulheres escondem mais do que deixam mostrar à primeira vista). Minami é uma órfã que se automutila. “Skank”, como seu apelido sugere, possui um histórico de delinquência e abuso de substâncias. A senhora parece ter uma vida mais tranquila, mas a urgência com que afasta Nanoka de más decisões sugere uma tragédia cicatrizada pelos anos.

Há algo de dickensiano na maneira como essas três mulheres se tornam parte da vida de Nanoka. Em mais de um momento, o mangá parece uma versão de Um Conto de Natal, livro sobre um velho avarento que lentamente aprende o caminho da compaixão e generosidade.

Por conta de suas diferentes idades – e pontos de vista – Minami, Skank e Vovó funcionam como os Fantasmas do Natal do Passado, Presente e Futuro. E Nanoka, como o Scrooge de Charles Dickens, entende que suas conversas nada mais são que avisos do que pode lhe acontecer se não mudar de atitude.  

Dizer que I Had That Same Dream Again é previsível é o mesmo que chamar um furacão de “mau tempo”. O roteiro de Sumino praticamente obriga Nanoka fazer as perguntas certas, dando-lhe como conflito um trabalho de escola em que tem de responder o que significa ‘felicidade’. Há livros de catecismo que vendem sua mensagem com mais sutiliza.

Ainda assim, há uma autenticidade no mangá com que é difícil não simpatizar. Nanoka, em particular, age e fala como uma garota real. Lendo seus diálogos, é quase possível escutar sua voz irritante.

Ela é uma típica genki girl, embora sua energia nem sempre seja apontada para o lugar certo. É uma leitora compulsiva que, em vez de compartilhar sua cultura, a utiliza para diminuir os outros. Aqueles que a desagradam são “errados na cabeça”, expressão que usa na cara dura, mesmo com aqueles que pretende ajudar.

Em nenhum momento isso é mais evidente do que quando se ergue em defesa de Kiryu, colega que sofre bullying. Longe de ser declarada heroína da sala, Nanoka consegue a um só tempo antagonizar sua turma, e o próprio Kiryu, a quem chama de “covarde” por se recusar a reagir da maneira como ela julga a ideal.

Aqueles de vocês que acompanham o Finisgeekis sabem que tenho um problema com protagonistas cheios de si. Falo do geniozinho metido a prodígio de Penguin Highway ou da “heróina” de Olhos de Gato, para quem “heroísmo” significa fazer sujeira para os outros limparem.  Chame isto de mea culpa, se quiser: fui uma criança do tipo durante boa parte de minha vida escolar.

Nanoka é praticamente o oposto dessas personagens. De aspirante a mary sue, ela eventualmente aprende que o mundo não gira em torno de seu umbigo – e que ajudar o próximo significa apoiá-los em suas próprias soluções, não forçá-los a aceitar as nossas.

Mesmo nos seus momentos mais insuportáveis, é difícil não sorrir com a esnobice de Nanoka. Isto porque a garota tem o hábito de ilustrar seu ponto com comparações charmosas, poéticas de tão estapafúrdias.

“A vida é que nem cáries” ela solta em dado momento “Se você não quer ficar com ela, precisa tirá-la imediatamente”.

“A vida é como a parte de dentro de uma geladeira. Mesmo se eu esquecer dos pimentões, que eu detesto, nunca vou esquecer dos bolos, que eu amo”.

Frases como essa dão uma voz indistinguível à protagonista, mas também cumprem um objetivo narrativo. Nanoka pode ser arrogante,mas ela realmente tem um dom com as palavras. E será polindo-o, logo entendemos, que amadurecerá de criança a mulher formada. Um dia, possivelmente, até mesmo a escritora.

Há uma revelação ao final da história que reenquadra a relação entre Nanoka e as três mulheres. Chamá-la de “twist” talvez seja lhe dar um crédito que nunca reinvindica. Repleto de referências a livros infantis, de O Pequeno Príncipe a O Serviço de Entregas de Kiki, o mangá de Sumino nunca esconde que tipo de coelho pretende tirar da cartola.

Mas talvez dizer que a vida, em si, é previsível seja a mensagem fundamental por trás da história. “Todo mundo é igual, mas diferente” diz Skank a Nanoka. Cada vida carrega seus próprios problemas. Mas, num nível fundamental, estamos todos na mesma, em momentos distintos da vida,  sonhando o mesmo sonho.

]]>
http://www.finisgeekis.com/2021/06/16/i-had-that-same-dream-again-um-melodrama-igual-mas-diferente/feed/ 0 22910
De onde vem o fascínio dos animes com a Irlanda? http://www.finisgeekis.com/2021/03/17/de-onde-vem-o-fascinio-dos-animes-com-a-irlanda/ http://www.finisgeekis.com/2021/03/17/de-onde-vem-o-fascinio-dos-animes-com-a-irlanda/#comments Wed, 17 Mar 2021 19:21:27 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22707 Em 2018, o site francês Manga-News perguntou a Nagabe qual era a história por trás do subtítulo de seu maior sucesso, A Menina do Outro Lado: Siúl a Run.

Senti que o entrevistador tinha lido minha mente. Eu sabia que Siúl a Rún ( “Ande, meu amor”), é uma música tradicional irlandesa. Mesmo após ler oito volumes de seu mangá, porém, não havia conseguido captar a conexão.

Será que a canção apareceria futuramente em algum momento de clímax? Será que o universo da história fictício seria cindido por uma guerra, como aquela a que seus versos se referem?

A resposta de Nagabe foi tão gélida quanto um banho de mar na Irlanda durante uma tarde de chuva:

“Eu não conhecia nada dessa música […]. Foi meu responsável editorial que, um dia, me trouxe um CD me dizendo “Escute bem essa canção, eu acho que a atmosfera corresponde ao seu mangá. Eu a escutei e achei que ela tinha uma linha melódica triste, mas ao mesmo tempo colorida de esperança, que ia perfeitamente com a atmosfera que eu gostaria de criar em “A Menina do Outro Lado”.

Verdade seja dita, saber que Nagabe escolheu seu título apenas porque soava bem não me impressona tanto assim. Rola na internet o rumor – talvez apócrifo- de que Hideaki Anno teria escolhido o  nome “Evangelion” porque a palavra soava difícil. Miyazaki confessou que puxou sua Nausicaa de um dicionário de mitologia (embora, anos depois, tenha lido de fato a Odisseia).

Não há nada errado em se inspirar em uma música por conta da vibe. Ainda mais em uma canção que tem alguma penetração no Japão, tendo já sido gravada por intérpretes locais.

Álbum da cantora KOKIA, com faixas em irlandês, inclusive “Siúl a Rún”.

O que me chamou a atenção é que esse está longe de ser um incidente isolado. Para cada Fate/ ou Durarara! que aborda diretamente a cultura ou mitologia irlandesa, há um punhado de animes e mangá que parece se referir à Ilha Esmeralda sem uma razão muito específica.

Há um motivo para ‘Legend of Galactic Heroes’ possuir uma nave chamada Mannanan Mac Lir? Ou ‘Last Exile’ retratar uma nau batizada de ‘Claoímh Solais?

O que há na cultura irlandesa que atrai de tal forma os animes?

Para responder a essa pergunta, é preciso voltar no tempo.

Do Japão à Irlanda…

Seja qual for esse feitiço que une as duas culturas, els não é novo. Já no final do século XIX, um escritor criado em Dublin largou tudo o que tinha para construir uma vida em terras nipônicas.

Seu nome era Patrick Lafcadio Hearn, e ele se tornou o primeiro ocidental a fazer fama escrevendo sobre o folclore e as tradições japonesas. Sua obra mais conhecida, Kwaidan, é um compêndio de histórias de youkai, criaturas fantásticas – e muitas vezes assustadoras – da mitologia nipônica.

Primeira edição de “Kwaidan”, obra mais conhecida de Hearn

Hearn escrevia sobre temas japoneses, mas seu interesse em fantasmas e assobrações carregavam um toque da Dublin em que viveu. O escritor viveu nos anos da Renascença Literária Irlandesa, um importante movimento que repaginou as lendas e mitos gaélicos às sensibilidades do final do século XIX.

Em uma carta ao poeta e dramaturgo W.B. Yeats, um dos maiores expoentes do movimento, ele confessou ter sido influenciado por contos de fada narrados por sua babá irlandesa.

Lafcadio Hearn (também conhecido como Koizumi Yakumo) e sua esposa, Koizumi Setsuko

Hearn teve alguma influência na cena cultura japonesa. Um de seus maiores fãs foi Okuma Shigenobu, fundador da Universidade de Waseda, que o convidou para lecionar lá.

Seu verdadeiro impacto, porém, aconteceu no próprio Ocidente. Hearn estava na posição privilegiada de ser um dos poucos ocidentais escrevendo em inglês sobre um Japão, em uma época em que o interesse pelo país estava nas alturas.

Em grande parte, isso se deveu à Exposição Universal de 1900, de que o país participou com seu próprio pavilhão. Todos os países da Europa queriam saber mais sobre essa nação misteriosa e sua cultura diferente.

Pavilhão japonês na Exposição Universal de 1900, em Paris

A Irlanda, em particular, levou o fascínio a outro patamar. Yeats, conhecido de Hearn, ficou de tal forma fascinado com o teatro noh que decidiu escrever sua própria peça em estilo japonês, At the Hawk’s Well.

A obra passou no crivo dos próprios japoneses, que a adaptaram a sua língua duas vezes, em 1949 e 1967. Hoje, ela faz parte do repertório tradicional do teatro noh.

Montagem da peça Takahime, “At the Hawk’s Well”, co-organizada pelo ator noh Gensho Umekawa e o grupo musical irlandês Anúna.

e da Irlanda ao Japão

Mas será mesmo que é daí que vem a fascinação com a Irlanda no dias de hoje?

Sim, Hearn não passou batido aos holofotes da cultura pop. Um de seus contos foi adaptado às telas nos anos 1980. O mangaká Eiji Ohtsuka transformou sua vida em uma série chamada Yakumo Hyakkai (em referência a Yakumo Koizumi, o nome que adotou ao se naturalizar japonês). Touhou Project batizou duas de suas personagens em sua homenagem.

Capa do manga Yakumo Hyakkai

Mas esses exemplos são gotas d’água no oceano de Cúchullains, Diarmuid Ua Duibhnes e Cliffs of Mohers na cultura pop. E nada disso parece ter muito a ver com Hearn.

O escritor foi uma sensação no Japão de sua época. Porém, como lembra Rie Kido Askew, seu apelo sempre foi mais “cult” que mainstream. Por escrever em inglês, suas obras ficavam restritas aos japoneses que dominavam a língua estrangeira.

Ademais, o “fator novidade” que o tornou tão popular no ocidente não existia no circuitos nacionais. Afinal de contas, não havia falta de escritores japoneses escrevendo – em japonês – sobre sua própria cultura.

Se não fosse bastante, Hearn pode ter sido influenciado por histórias de fadas e deuses irlandeses, mas ele pouco fez para tornar esses mitos mais conhecidos no país em que escolheu morar.

De fato, por mais que olhamos as referências à Irlanda nos animes, mais parece que elas estão lá justamente por serem obscuras.

Segundo Rika Muranaka, compositora de Metal Gear Solid, a faixa The Best is Yet to Come foi cantada em irlandês porque Hideo Kojima disse que “não queria ouvir letra em inglês”, nem em nenhuma outra língua que ele reconhecesse.

Yoko Taro, criador da série Nier, deu instruções parecidas aos compositores Keichi Okabe e Emi Evans. “[T]er letras que você reconhece e entende pode distrai-lo do gameplay”, ele justifica. O resultado foram músicas cantadas em línguas inventadas – uma delas baseadas no gaélico escocês.

Em outras palavras, a língua irlandesa é conveniente porque não significa nada. Ou melhor, ela passa uma vibe genérica de “exotismo” capaz de intrigar até mesmo os japoneses mais viajados.

Ironicamente, é exatamente como muitas produções ocidentais lidam com a cultura japonesa de uma maneira cotidiana. Se obras do nosso hemisfério usam samurais, geishas e flores de cerejeira para carimbar uma personagem como “estrangeira”, animes e games nipônicos fazem o mesmo com os Túatha Dé Dánnan e viaturas da Garda Siochána.

Fractale

Mas isso também não explica tudo. Por que a Irlanda e não qualquer outro lugar da Europa – ou do Ocidente como um todo?

Talvez, porque Japão e Irlanda tenham mais em comum do que salta aos olhos à primeira vista. E não falo apenas de serem cercados pelo mar.

Soft power

A Irlanda é um país minúsculo nos confins da Europa – até recentemente, paupérrimo para os padrões do mundo desenvolvido. Porém, ela tem uma vantagem gigantesca sobre qualquer um de seus vizinhos: há irlandeses por toda parte.

O censo dos Estados Unidos estima que quase um em cada dez americanos tenham ascendência irlandesa, incluindo presidentes como John Kennedy, Barack Obama e Joe Biden. O primeiro ministro da Austrália declarou hoje que um terço do país têm raízes irlandesas. Isto sem contar imigrantes em países como Canadá, Chile, África do Sul e muitos outros.

Essa comunidade age como um “megafone” global para a cultura, língua e folclore do país. Além disso, gera um imenso mercado consumidor para as obras vindas da ilha, sejam os livros da Sally Rooney ou filmes do Cartoon Saloon.

E não falo apenas de gente com ascendência irlandesa, mas pessoas sem nenhum vínculo com a ilha que decidem provar uma Guiness ou arriscar uma cúpla focal depois de participarem de uma festa de São Patrício.

Tal como, aqui no Brasil, muita gente se apaixona pelo Japão porque cresceu frequentando a feirinha da Liberdade ou visitando o Kinkaku-Ji do Brasil.

Ambos os países têm de sobra o que cientistas políticos chamam de soft power: a capacidade de projetar sua influência não disparando balas, mas espalhando cultura. No caso da Irlanda, esse é um poder que chegou até à realeza japonesa.

Segundo o jornal Irish Times, a ex-imperatriz Michiko fala um pouco de irlandês, toca harpa e era amiga do poeta Séamus Heaney. Uma de suas filhas, a princesa Mako, fez parte de seus estudos no University College Dublin.

Se nada mais, as aristocratas estão afinadas com o interesse de seus súditos. Organizado pela primeira vez em 1992, a Festa de São Patrício já é um evento nacional no Japão. Em 2019, nada menos que 15 cidades organizavam paradas – em Tóquio, 130 mil pessoas tomaram as ruas.

Parada do dia de São Patrício em Tóquio, 2015. Foto de Yoshiaki Miura

Será que isso é o bastante para que a TG4, emissora irlandesa em língua gaélica, adicione animes a sua programação?

Provavelmente não. Mas eu continuarei na torcida. De preferência, acompanhado de um pint de Guinness.

]]>
http://www.finisgeekis.com/2021/03/17/de-onde-vem-o-fascinio-dos-animes-com-a-irlanda/feed/ 1 22707
“Haru no Noroi”: contra certas dores não existe alívio http://www.finisgeekis.com/2021/03/03/haru-no-noroi-contra-certas-dores-nao-existe-alivio/ http://www.finisgeekis.com/2021/03/03/haru-no-noroi-contra-certas-dores-nao-existe-alivio/#comments Wed, 03 Mar 2021 18:12:07 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22676 Haru no Noroi (“A Maldição de Haru) é uma história sobre dor.

Suas personagens são receosas, indecisas, mas também valentes e determinadas – contra, muitas vezes, seus melhores interesses.

É um mangá sobre a morte e o luto. Porém, como outras histórias de seu gênero, é fundamentalmente sobre aqueles que ficam para trás. E as terríveis distâncias que estão dispostos a percorrer para não sucumbir ao desespero.

É difícil adivinhar aonde o mangá josei de Asuka Konichi pretende nos levar a julgar apenas por suas primeiras páginas. Isto porque o enredo se debruça sobre habitantes de uma realidade tão exótica à maioria de nós que parece saída de um livro empoeirado.

Haru e Natsumi são descendentes do zaibatsu Tachibana, uma das linhagens mais influentes do Japão no século XIX. Hoje, a família é uma sombra do que foi um dia, mas ainda preserva seu orgulho – e seu respeito quase fanático à tradição. Haru, filha mais nova, tem o casamento arranjado a Togo, filho de outro importante magnata.

Pouco tempo depois, ela morre de câncer. Tinha apenas 19 anos.

A doença não a levou de forma súbita. Pelo contrário, foi uma batalha que se estendeu por anos. Como tantas famílias amaldiçoadas por este fardo, os Tachibana se vêem sem propósito quando a filha finalmente morre. O fato de serem uma linhagem tradicionalíssima, que prezam união e continuidade acima de tudo, só torna a tragédia mais traumática.

Para Natsumi, a perda tem contornos mais pessoais. Mais do que qualquer membro da família, ela tornou proteger a vida da irmã como missão de vida. Sua morte a faz se sentir como um súdito que falhou a seu mestre. No velório, ela não esconde que contempla o suicídio.

Pensar em um ente querido nesses termos pode parecer um exagero, mas a relação entre as irmãs nada tem de sutil. A devoção de Natsumi a Haru era tamanha que ela decidiu mudar sua carreira e estudar nutrição para ajudar a manter-se saudável.

Quando Haru foi hospitalizada, passou a dedicar cada hora livre de seu dia a acompanhá-la no hospital. O preço desta dedicação foi a negligência completa de sua vida amorosa, podada no talo justamente na época em que Natsumi deveria estar curtindo sua juventude, aprendendo a se relacionar.

Em uma conversa com Togo, ela confessa sequer saber se gosta de homens ou mulheres. A adoração à irmã a consumiu de tal forma que não deixou espaço para qualquer exercício de afeto.

É essa obsessão doentia que faz Natsumi tomar uma decisão chocante, mesmo para um mangá que fala de suicídio e casamentos arranjados.

Contra seus melhores instintos, Haru decide começar um relacionamento com Togo, marido de Haru. Seu objetivo é menos aplacar a solidão que tentar, por todos os meios a seu alcance, manter vivo o que restou de sua irmã. Nem que seja apenas a memória de encontros passados.

Konichi equilibra tantos temas espinhosos, com tanto desapego, que é nada menos que um milagre que Haru no Noroi não sucumba à farça. É mérito da autora ter conseguido não só fazer sua premissa improvável funcionar, como apontado na experiência de Natsumi e sua família uma humanidade que todos somos capazes de reconhecer.

Cada família infeliz é infeliz a sua própria maneira, lembrava Tolstói, mas os dramas dos Tachibana são universais.

A mãe de Natsumi e Haru abandonou a família, incapaz de viver sob a felicidade postiça de um casamento arranjado. Sua madrastra fez o melhor para ser aceita pelas enteadas, mas é tão incapaz de esconder a dor da rejeição quanto Natsumi e Haru são dispostas a aceitá-la.

Togo erige uma fachada de indiferença mas nos perguntamos, página após página, se aqueles sentimentos são deles ou de sua família. “Pessoas mortas não sentem tristeza!” ele esbraveja, alto o suficiente para que saibamos que não acredita de verdade naquilo que diz.

A relação de Natsumi e Togo nunca se materializa como amor. Quanto mais aprendemos sobre suas vidas, mais percebemos que este nunca foi o ponto.

Por tradição, mas também afeto, as outras pessoas da sua vida se apressam para varrer Haru de seus pensamentos e devolvê-los a sua vida antiga. O que está realmente em jogo, eles logo aprendem, é quanto tempo conseguirão andar na corda bamba entre este esquecimento e a memória da irmã que os contamina como uma maldição.

O mangá veste seu simbolismo com orgulho. Haru significa “primavera”; Natsumi, “verão”. Os nomes de cada um dos oito capítulos acompanham o desenrolar do ano, com ênfase na passagem das estações. O primeiro e o último formam uma única frase que se torna mais sinistra quanto mais avançamos na história: “A primavera se foi”, “e o inverno virá”.

“Inverno”, pois é possível que, ao buscarem conforto, tudo o que encontrem sejam galhos secos. E se há alguma certeza é de que o percurso será longo e difícil e doloroso.

“Talvez nós não estejamos amaldiçoados” diz Togo a Natsumi “mas esse sentimento provavelmente nunca irá embora”.

Certas histórias usam o sofrimento humano como muleta para lágrimas fáceis. Outras torturam suas personagens para conquistar uma respeitabilidade que não merecem. Muitas vezes, apenas por sadismo.

Haru no Noroi pertence a um outro tipo, que prefere a descrição à explicação, a compaixão à lição de moral, a sutileza ao valor de choque. Um tipo de história corajosa o suficiente para nos olhar nos olhos e admitir que contra certas dores não existem alívios.

É pouco. Porém, como Togo e Natsumi nos mostram, mesmo um pouco de honestidade pode salvar o futuro de uma pessoa.

]]>
http://www.finisgeekis.com/2021/03/03/haru-no-noroi-contra-certas-dores-nao-existe-alivio/feed/ 1 22676
A imaginação do desastre em “Asadora!” http://www.finisgeekis.com/2021/02/17/a-imaginacao-do-desastre-em-asadora/ http://www.finisgeekis.com/2021/02/17/a-imaginacao-do-desastre-em-asadora/#comments Wed, 17 Feb 2021 18:18:39 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22626 O ano é 2020. Tóquio está em chamas, seus habitantes em fuga diante de um perigo desconhecido. A cidade, que se preparava para hospedar as Olimpíadas, começa a se perguntar se durará até a manhã seguinte.

Poderia ser as manchetes de qualquer jornal de um ano atrás, quando “Covid-19” e “coronavírus” entraram no rol de nossos piores pesadelos. Mas é a tomada inicial de “Asadora!”, mangá que ressuscita a fórmula dos filmes de kaiju para a segunda década do século XXI.

“Desastre” é o tema do momento – de certa forma, de todos os momentos. Não é fácil encontrar algo relevante a dizer sobre o tema quando os jornais parecem disputar a todo instante com a ficção. Nos piores casos – como “2020 – Japão Submerso” – o paralelo com o presente apenas escancara o que não passa de oportunismo em lucrar com as manchetes.

Não seria fácil se o autor em questão não fosse Naoki Urasawa. Poucos mangakás tem um dom similar de transformar tudo o que tocam em ouro que o autor de Monster, 20th Century Boys e Pluto.

Com personagens comoventes e uma trama geracional que atravessa as décadas, Asadora! Não é diferente.

O cenário é a cidade de Nagoya no final dos anos 1950, em um Japão não de todo recuperado da hecatombe da Segunda Guerra. Nossa protagonista é Asa, uma valente menina com coragem demais e paciência de menos.

Asa vive o que parece ser um dia normal até que flagra um ladrão escapando de uma casa na vizinhança. Desesperado por ver seus planos arruinados, o bandido a sequestra.

Subitamente, o contâiner em que monta seu cativeiro treme. Ao abrir a porta, Asa e o ladrão descobre que não foi apenas sua rotina que foi virada de ponta cabeça.

O “tremor” em questão é nada menos que o Tufão Vera de 1959, até então o maior desastre climático a açoitar o Japão. Embora para nós estrangeiros ele tenha sido eclipsado por outras tragédias (como os terremotos de Kanto e Kobe), aquele setembro de 1959 foi um divisor de águas.

Se nada mais, o fato do Japão ter saído por cima na tragédia é prova do quanto ela mudou o país. Os estragos de 1959 levaram a nação a criar protocolos avançados contra desastres naturais – hoje, entre os melhores do mundo.

Asadora! não é uma história o tufão mais do que sobre a geração que o enfrentou. Estendendo-se de 1959 a 2020 — como anuncia a primeira cena — o mangá mostra como cada uma daquelas pessoas, a sua maneira, encarnaram na própria vida o cabo-de-guerra entre passado e futuro.

Kasuga, o ladrão, é um antigo ás de Marinha Imperial que não consegue emprego como piloto. Em um golpe de ironia para quem voou contra americanos, obter um brevê no japão dos anos 1950 exige uma prova de inglês. Shota, amigo de Asa, é um garoto sem talento para esportes, mas cuja família o força a treinar para as Olimpíadas de Tóquio.

O motivo? “Vestir” os sapatos de seu irmão, que deveria ter participado das olimpíadas de 1940.

Esses conflitos ficam mais claros quando o mangá coloca um pé no sobrenatural, e começamos a ter a impressão de que a casa de Asa não foi destruída por um mero tufão.

O monstro de Urasawa não tem nome – ainda – mas é impossível não notar a referência à Godzilla. Poucas personagens, afinal de contas, resumem tão bem o zeitgeist japonês dos anos 1950: as lembranças das cidades devastadas por bombardeios, o espírito de solidariedade entre vítimas, o trauma da guerra nuclear.

Na medida em que esses temas se emaranham mais e mais com a história de Asa e Kasuga, o leitor estará perdoado se pensar que Asadora fará com o kaiju mais famoso de todos os tempos o mesmo que Pluto fez com Astroboy.

Mas Asadora vai muito além de uma homenagem à Godzilla. A trama de Urasawa se desenrola ao longo de anos durante os quais a aparição do monstro é apenas uma de tantas emoções na trajetória de suas personagens. Trajetória esta que as leva a outro evento, tão – ou mais – importante que o famoso lagarto radioativo.

Em dado momento, Kasuga é contatado por Coronel Jissoji, seu antigo mentor durante os anos de guerra. O ex-oficial está envolvido na organização das Olimpíadas de Tóquio e precisa da ajuda do piloto.

Mais do que medalhas de ouro estão em jogo no evento, ele explica. O campeonato será a chance do Japão de provar aos outros países – e a si mesmo – que estava pronto para caminhar com seus próprios pés.

Nada pode tirar esse plano dos trilhos. Nem mesmo uma visita inexperada de um kaiju das profundezas.

Lendo Asadora durante à luz da pandemia de Covid-19, é tentador pensar que pouca coisa está em jogo no mangá de Urasawa. Afinal de contas, qual é a importância de um evento esportivo diante de um catástrofe de proporções nacionais?

Se um vírus fez as Olimpíadas de 2020 serem adiadas (e, possivelmente, canceladas nos próximos meses), não é de se esperar que um kaiju faça o mesmo?

Como Urasawa nos lembra, não exatamente.

Um novo Japão

Historicamente, as Olimpíadas de 1964 foram tudo isso que Cel. Jissoji disse – e mais um pouco.

Os planos para o campeonato remontam à 1940, quando a cidade de Tóquio foi escolhido para hospedá-lo. Era a chance para o Japão, então uma potência ascendente, de encarar os poderes ocidentais de igual para igual.

Infelizmente, o crescimento do Japão tomou rumos mais sombrios. A repercussão das atrocidades cometidas durante a invasão da China levou o comitê olímpico a transferir as Olimpíadas para Helsinque. O agravamento da Segunda Guerra Mundial eventualmente cancelou-o por completo.

Em 1964, o governo japonês estava determinado a fazer diferente. Para carregar a tocha, escolheram Yoshinori Sakai, cidadão de Hiroshima nascido no dia em que a bomba caiu.  Boa parte dos terrenos e edifícios onde o evento foi realizado eram antiga propriedade das forças armadas imperiais, ocupadas pelos EUA após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Recebê-las de volta para um evento que celebrasse a paz entre as nações era mais do que golpe de marketing. Era um caminho para construir, sobre as ruínas do fascismo, os pilares de um futuro democrático.

Yoshinori Sakai levando a tocha olímpica. Fonte

Não é por acaso que o duelo entre Kaneda e Tetsuo no longa Akira acontece justamente no estádio olímpico. Mais do que um edifício, é o Japão esperançoso de 1964 que explode em pedaços na Neo Tokyo distópica de Katsuhiro Otomo.

A imaginação do desastre

Estádio Nacional de Tóquio em ruínas no filme “Akira”

Asadora! e Akira não são pontos fora da curva. Poucas coisas nos fazem refletir sobre o que os podres- e pérolas – de nossa sociedade do que vê-la em chamas numa tela de cinema.

Godzilla, referência principal de Asadora, é um dos exemplos mais conhecidos, mas está longe de ser o único. Da Estátua da Liberdade soterrada em Planeta dos Macacos à Toquio alagada de O Tempo com Você, estas histórias funcionam porque questionam uma normalidade que damos por certa.

É isso que levou a escritora Susan Sontag a dizer que filmes clássicos de ficção científica não são realmente sobre “ciência”. O seu assunto é o desastre.

Esse tipo de filme, ela argumenta, “está preocupado com a estética da destruição, com as belezas peculiares encontradas em causar estrago”.

Essa imaginação do desastre, como ela a batizou, nos traz histórias moralmente simples, em que os monstros são sempre monstruosos e não há dúvidas de quem são os mocinhos. Com isto, ela serve de válvula de escape a fantasias de violência, impedindo-as de tornarem-se um fascínio perigoso.

Ela nos fala do poder da amizade e da união entre nações; na capacidade dos seres humanos em colocar de lado suas diferenças e trabalhar por um bem comum. Seus heróis são muitas vezes cientistas, capazes – com algum esforço – de convencer políticos a fazerem o que é melhor para a humanidade.

Exaustos como estamos à mercê da pandemia, solidão e um presidente genocida, é fácil entender o apelo dessas histórias.

Nas palavras de Sontag:

A nossa é de fato uma era de extremos. Pois nós vivemos sob a ameaça contínua de dois igualmente medonhos, mas aparentemente opostos destinos: a banalidade ininterrupta e o terror inconcebível. É a fantasia, servida em largas doses pelas artes populares, que permitem que a maior das pessoas lide com esses espectros gêmeos.

A escritora Susan Sontag

Mais de cinquenta anos depois (Sontag publicou seu ensaio em 1965) nós vivemos, de novo, em uma era de extremos. Era de se esperar, portanto, que um mangá como Asadora!, abordando os temas que aborda, ofereceria justamente esse escapismo de que tanto precisamos.

Mas Asadora!, surpreendentemente, não é esse tipo de história.

Como é de se esperar de um mangá de Urasawa, ninguém é tão simples quanto parece. Kasuga é um herói de guerra, mas também um ladrão e sequestrador. Asa tem coragem, mas não bom-senso. Nakaido, cientista que ajuda a protagonista a identificar o monstro, é um covarde elitista. Nenhum deles é exatamente hero material.

Não há, tampouco, vilões convencionais. O “kaiju” – se é que,  de fato, podemos chamá-lo assim – não é um monstro mais do que uma força da natureza, nem mais nem menos maléfico do que o tufão de 1959.

Nenhum dos conflitos do mangá podem ser resolvidos pela violência.  Pelo contrário, cada uma das personagens sabe muito bem que foi a violência – mais, sua tolerância com a violência, nos anos sombrios da guerra, que os colocou nessa cilada em primeiro lugar. É para se remidir desse pecado que Kasuga, que ontem torpedava navios americanos, hoje voa para salvar civis; que Cel. Jissoji, ex-figurão do regime fascista, dedica a vida para reconstruir a democracia.

Urasawa é mais crítico e, justamente por isso, mais otimista que a ficção de kaiju que lhe serve de tributo. Como os organizadores das Olimpíadas de 1964, ele acredita que mesmo um país dilacerado pelo ódio e radicalismo pode dar a volta por cima, sem com isso deixar de responder por seus erros.

Seria o nosso mundo de 2021 capaz da mesma salvação? É demais sonhar que os Kasugas e Jissojis que arquitetam nossa própria ruína entendam que estamos à beira de um precipício e façam aquilo que é certo?

Talvez seja. Mas é o papel da fantasia, como Sontag nos lembra, nos dar corda para que sobrevivamos aos tempos difíceis, por mais problemáticas que sejam essas ilusões.

]]>
http://www.finisgeekis.com/2021/02/17/a-imaginacao-do-desastre-em-asadora/feed/ 1 22626
“My Broken Mariko”: por que não devemos sucumbir ao desespero http://www.finisgeekis.com/2021/01/27/my-broken-mariko-por-que-nao-devemos-sucumbir-ao-desespero/ http://www.finisgeekis.com/2021/01/27/my-broken-mariko-por-que-nao-devemos-sucumbir-ao-desespero/#respond Wed, 27 Jan 2021 18:26:27 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22559 Há um motivo pelo qual histórias de vingança raramente terminam bem.

O ódio não é um sentimento passivo. Ele é uma arma que corta dos dois lados. Ele cobra de nós cada gota de sofrimento que infligimos aos outros – frequentemente, com juros inimagináveis.

A tragédia dessas histórias não está tanto na morte que propele o herói à ação, e sim no fato de que nos deixam com uma perda ainda maior: uma vida inutilmente desperdiçada honrando uma pessoa que jamais voltará.

My Broken Mariko, mangá de Waka Hirako, é esse tipo de história.

Uma tragédia anunciada

A Mariko do título é uma mulher de 26 anos que comete suicídio. Sua melhor amiga, Shii, fica a par da morte pelo noticiário. Há apenas algumas semanas elas haviam saído juntas. Mariko parecia perfeitamente normal.

“Normal”, claro, é uma mentira que ambas combinaram em se contar. Mariko foi abusada pelo pai durante toda a infância e adolescência. Sua mãe a abandonou nos braços do marido, culpando-a pelo crime de “tê-lo seduzido”. Adulta, caiu nos braços do primeiro homem que lhe abriu um sorriso: um cafajeste que a espancava regularmente.

Shii entende que sua morte é um ‘mistério’ apenas porque ela se recusava a enxergar a verdade escancarada diante de seus olhos. Uma vida de abusos e silêncios havia transformado Mariko em uma bomba relógio que finalmente explodira. E ela, a amiga que falhara em protegê-la, em uma cúmplice da tragédia.

Dizer que My Broken Mariko é um soco no estômago não chega perto de fazer jus ao seu impacto. Com uma história enxugada aos detalhes essenciais e um traço que salienta o descompasso emocional da protagonista, ele corta mais fundo que a exuberância visual de Happy Sugar Life ou mesmo a ironia de um Inio Asano.

Hirako disse em entrevista que baseou a história em sua mãe, uma sobrevivente de abuso doméstico. “Em vez de fazer pesquisa adicional” ela disse ao ANN “eu desenhei a história enquanto revivia os sentimentos e emoções que já estavam no meu coração”.

A inspiração salta aos olhos a cada página. Mesmo seus quadros mais absurdos estremecem com o terror inapagável de quem experimentou aquilo de verdade.

Shii decide que precisa fazer algo, qualquer coisa, para vingar a injustiça sofrida pela amiga. Lembrando-se de férias que nunca chegaram a fazer em vida, ela resolve remediar o problema em morte, roubando as cinzas de Mariko e levando-a consigo para uma última viagem juntas.

O que se inicia como uma viagem de luto movida por amizade – ou, talvez, amor reprimido – logo sucumbe a um pesadelo. De sapatos perdidos a mochilas roubadas, tudo o que é possível dar errado a Shii acontece. Insone e devastada, a protagonista é rapidamente corroída pela inutilidade de seu plano.

Ela sabe que cinzas nenhuma preencherão o vazio em seu peito. Ela jamais conseguirá se perdoar se não fizer alguém pagar pela morte de Mariko.

Mas quem, afinal de contas, seria essa pessoa?

O pai, que a abusou na adolescência?

A mãe, que a abandonou nas suas garras, imputando a ela a culpa pela violência que sofria?

O namorado que a espancava – e a quem Mariko insistia em retornar, surra após surra, a despeito dos aviso de Shii?

Da própria Shii, por não ter sido capaz o suficiente,  atenta o suficiente para impedir que a pessoa que amava cometesse suicídio?

Nas suas noites mal-dormidas, Shii é assombrada por memórias de seus anos com Mariko:  momentos em que a amiga lhe deu todas as pistas de que sofria, conversas em que implorou por sua ajuda.

A culpa de ter negado tais pedidos dá lugar ao desespero de que eles eram inaceitáveis. Em uma dos flashbacks mais chocantes, Mariko ameaça se matar se Shii arranjasse um namorado.

A cena não é uma confissão de amor.  Mariko nunca demonstrou interesse em Shii, por mais que ela, entre soluços e copos de cerveja, tenha vez ou outra sugirido que aceitaria ser sua parceira.

Mas a ideia de que poderia entregar-se a um terceiro – de que poderia, enfim, curtir a felicidade de que ela fora privada – a move a ponto de cortar os pulsos em público.

Estaria Mariko realmente  pedindo socorro? Ou não seria tudo aquilo uma tentativa de puxá-la consigo ao abismo? De empurrar a Shii, a única pessoa que lhe demonstrou amor, uma culpa que ela sabia não ser sua, mas que não sabia a quem mais entregar?

Shii chega ao auge de sua dor quando contempla ela própria se matar, movida não por ódio próprio, mas por rancor à própria Mariko.

A mensagem não seria mais clara se fosse escrita com um estilete em nossa pele. A violência não é uma pessoa que possa ser derrotada , um mal que possa ser extirpado com um estalar de dedos. É algo que nos corroi aos poucos, de maneiras que sequer enxergamos, até não haver mais diferença entre a ferida inicial e as pequenas rachaduras que se seguem — e, lentamente, nos demolem.

O mundo gira, indiferente

Uma obra menor se daria por satisfeita largando-nos desamparados nesse poço de amargura, apostando na visceralidade de seu material para chocar os leitores. Hirako, porém, encara o abismo de frente e se recusa a ceder ao desespero.

E é nessa fé valente – quase insana – no melhor da natureza humana que My Broken Mariko se mostra uma obra-prima.

Surpreendentemente para um mangá sobre abuso e suicídio, My Broken Mariko é recheado de humor e ironia visual.

Fiel à etiqueta japonesa, Shii tira os sapatos antes de entrar na casa dos pais de Mariko. Ao fugir com a urna debaixo dos braços, é obrigada a correr descalça e pisa em uma barata. Na praia onde pretende espalhar as cinzas da amiga encontra a seguinte placa: “Suicídio não é crime, mas espalhar lixo é”.

Em parte, esse humor funciona para avivar o desespero que Shii enfrenta. Como na literatura de Franz Kafka, as personagens de Hirako habitam um mundo desalmado que insiste em girar à revelia de suas dores.

Mas ele mostra, também, que o mundo deve continuar a girar. Como escreveu Haruki Murakami em Norwegian Wood, outra história sobre um jovem devastado por um suicídio, “Os mortos sempre estarão mortos, mas nós temos de continuar vivendo”.

Não é possível dizer que My Broken Mariko tem um final feliz. De certa maneira, não existem finais felizes após uma tragédia como a que Shii enfrenta.

Mas Hirako nos guia a uma conclusão que, se não de todo positiva, ao menos proporciona a Shii o privilégio que ela nunca imaginou obter: uma resposta.

O que exatamente Shii aprende é um mistério que Hirako deixa propositalmente em aberto. No fundo, é também irrelevante. O milagre que a resgata do ódio próprio não vem de mensagens ou palavras, mas de sobreviver a uma grande reviravolta e então descobrir, espantada, que a vida não lhe tolheu a capacidade de aprender.

Toru, protagonista de Norwegian Wood, sofre uma epifania parecida. Talvez não haja palavras melhores que as de Murakami para ilustrar o Shii também experimenta:

 – Há pessoas que conseguem abrir seus corações e pessoas que não conseguem. Você é uma das que consegue. Ou, mais precisamente, você pode abrir se quiser.

— O que acontece quando pessoas abrem seu coração?

Com o cigarro pendurado na boca, Reiko uniu as mãos sobre a mesa. Ela estava gostando daquilo.

— Elas melhoram.

]]>
http://www.finisgeekis.com/2021/01/27/my-broken-mariko-por-que-nao-devemos-sucumbir-ao-desespero/feed/ 0 22559
“Rayearth” e a guerra sem fim http://www.finisgeekis.com/2020/10/22/rayearth-e-a-guerra-sem-fim/ http://www.finisgeekis.com/2020/10/22/rayearth-e-a-guerra-sem-fim/#comments Thu, 22 Oct 2020 20:02:36 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22416 Tudo começou com um desafio.

Um dos editores da revista shoujo Nakayoshi confessou à mangaká Nanase Ohkawa que estavam com um problema. A publicação não conseguia expandir seu público para além das crianças.

Ele esperava que Ohkawa e seu grupo, um quarteto de mulheres conhecidas como CLAMP, tivessem o sucesso que até então os havia eludido: uma série infantil que mantivesse as leitoras interessadas mesmo depois de crescidas.

À luz do presente, a aposta parecia fadada a dar certo. Mas aqueles eram os anos 1990. Cardcaptor Sakura, seu grande sucesso na demografia shoujo, ainda estava por ser escrito. O pedido do editor trazia um dificuldade, mas era uma dificuldade que Ohkawa não podia ignorar. Tinha sido a Nakayoshi, afinal de contas, que trouxera ao mundo A Princesa e o Cavaleiro Sailor Moon.

Lançar um título em suas páginas colocaria a CLAMP no rol dos grandes do universo dos mangás.

O título em questão foi Guerras Mágicas de Rayearth, e seu sucesso superou em muito o briefing original. Mais de vinte e cinco anos depois, a série não apenas superou as barreiras de sua demografia, como continua a inspirar uma geração de adultos.

Apontar o que torna esse isekai da CLAMP tão especial é, de certa forma, uma tarefa insolúvel. Nenhuma obra se torna um clássico desse porte significando o mesmo para todos que a apreciam. Parte dessa riqueza talvez venha do fato de que, para elevar sua história, Ohkawa trouxe ao mundo de Céfiro um dos problemas mais espinhosos da experiência humana.

Com Rayearth finalmente disponível no streaming brasileiro, não poderia haver oportunidade melhor para mergulhar nessa questão.

Até que ponto temos o poder de mudar o mundo?

Todos que já leram ou assistiram à obra sabem dizer exatamente onde ela prova a que não é uma série como as outras. Falo, é claro, do final do primeiro arco, quando o conflito que move a série finalmente se revela pelo que de fato é.

Rayearth começa sem surpresas. Três meninas são teleportadas a um mundo paralelo para salvar uma princesa do grande vilão. Em retrospecto, é possível imaginar Ohkawa puxando as cordinhas de seu enredo, preparando as leitoras da Nakayoshi para um choque de que não se esqueceriam.

Capítulos depois, descobrimos que a princesa não é uma donzela em defesa, e sim uma rainha pescadora, fadada a governar uma terra regida pelas suas emoções. O vilão não é um inimigo, mas o grande amor de sua vida, lutando uma guerra ingrata para libertá-la de seu fardo. E as guerreiras mágicas não são heroínas, e sim as executoras que ela própria convocou para dar fim a sua agonia.

Lendo a história pela primeira vez, durante uma viagem de avião aos 18 anos, tive a impressão de que algo mais forte que a turbulência me sacudia no assento. Ainda hoje estremeço ao pensar no quão mais poderosa ela foi àqueles que a acompanharam em sua infância.

Precisei, contudo, de outra década para descobrir que Ohkawa não fora a primeira a dar vida àquela fábula. Vinte anos anos, a escritora americana Ursula Le Guin havia ganhado o prêmio Hugo com uma história suspeitamente parecida, Os Que se Afastam de Omelas.

O conto trata de uma cidade, à primeira vista, perfeita demais para existir. Seu povo não precisava de reis, de armas ou de escravos. De procissões nababescas a orgias lisérgicas, Omelas tinha o suficiente para realizar qualquer sonho. Como a Céfiro de Rayearth, era uma terra limitada apenas pela imaginação.

Havia apenas um porém: num calabouço subterrâneo, escondido das vistas dos outros, uma criança era mantida nas piores condições de cativeiro. Sem luz ou ar fresco, longe do contato humano, ela dormia sobre seus escrementos enquanto o resto das pessoas aproveitava sua utopia.

Ninguém sabe ao certo por que manter a criança naquele estado era necessário. Apenas que, sem seu sacrifício, o paraíso em que viviam deixaria de existir. E ninguém estava disposto a desafiar o pacto maldito que fazia as flores desabrocharem.

Le Guin não foi a única, nem a primeira, a nos convidar a pensar numa utopia movida pelo sofrimento de um pilar. No entanto, seu conto é aquele que coloca esta fábula nos termos mais próximos aos de Rayearth. De fato, para nós que temos familiaridade com a série, as últimas palavras de Omelas soam suspeitamente com a voz de Lantis:

Às vezes, uma das garotas ou um dos meninos adolescentes que vão ver a criança não voltam para casa para chorar ou enraivecer-se; não voltam, de fato, para casa de todo. […] Cada um sozinho, eles se dirigem a oeste ou a norte, em direção às montanhas. Eles continuam em frente. Eles deixam Omelas, eles seguem adiante escuridão adentro e não retornam. O lugar aonde eles vão é um lugar ainda menos imaginável para a maioria de nós que a cidade da felicidade. Eu não posso de forma alguma descrevê-lo. É possível que ele não exista. Mas eles parecem saber onde eles estão indo, aqueles que se afastam de Omelas.

É um final poderoso como a rajada de um mashin, não pela natureza de sua crítica, mas pela sutileza como a expressa. Indignar-se com a injustiça não é o suficiente.

Le Guin nos convida, como Zagato no início de Rayearth, a ousar a acreditar em um mundo diferente.

Mesmo que, para alcançá-lo, precisemos seguir adiante escuridão adentro, sem a menor garantia de que encontraremos alguma coisa do outro lado.

Zagato é um daqueles que se afastaram de Omelas.

O poder de ditar nosso próprio destino

Essas similaridades entre as duas obras levaram alguns a afirmar que Rayearth e Omelas são essencialmente a mesma história. Mas existe uma diferença fundamental nos pensamentos de Ohkawa e le Guin que não pode ser menosprezada.

Individualista convicta, a líder do CLAMP acredita que cada pessoa é responsável – e a única responsável – por mudar seu destino. Como ela disse em uma entrevista à Animerica,

Eu acho que é uma mentira [dizer] que existe uma força mística aí fora, manipulando sua sina. […] Eu acho que destino é algo que você escolhe fazer, mesmo quando você está sendo conduzido por ele. Por exemplo, se você está no trabalho e você quer pedir demissão, é necessário muita energia para fazê-lo. Você estará perdendo uma vida estável, e se você não gosta disto, você terá de aprender a lidar com a maneira como as coisas são. Mas se você quiser mudar as coisas, apenas você pode fazer isso para você mesma. Se você não gostar de fazer isto, você deixa as circunstâncias ditarem seu destino. Mas se você tem determinação e coragem, eu acho que você pode mudar seu destino.

A mangaká e roteirista Nanase Ohkawa

É, talvez, por conta dessa crença inabalável na ação humana que Ohkawa não perde tempo explicando como Céfiro deu a volta por cima.  No anime, as guerreiras mágicas abandonam o mundo paralelo tão cedo sua missão acaba.  No episódio final, somos brindados com um vislumbre do que ele se tornou, já inteiramente reconstruído.

No mangá, temos de nos contentar com explicação de que todas as dificuldades enfrentadas pelas guerreiras mágicas foram“palavras certas em linhas tortas”, escritas por um demiurgo – Mokona – e postas em prática por uma heroína ainda mais romântica e individualista que Ohkawa – Hikaru.

 

Ohkawa dá por certo que sua protagonista tem o que precisa para nos por no caminho do progresso — e as outras pessoas, a unidade de propósito para seguir seu exemplo.

Mas será que as coisas, na realidade, são simples assim?

Não seria a guerra civil em que Céfiro se encontrava quando da chegada das guerreiras mágicas a prova de que seus habitantes têm suas próprias ideias de como o mundo deva ser? E que elas não são, necessariamente, compatíveis?

Não seria a própria insistência de Esmeralda em viver – e morrer – sob o sistema do pilar prova de que não acreditava na capacidade das pessoas de resolver seus próprios problemas?

Não estaríamos nós, habitantes de um mundo onde não existem guerreiras mágicas, mais próximos do pessimismo de Esmeralda que do otimismo de Hikaru?

Uma guerra sem fim

Para Ursula Le Guin, a resposta é sim. E é por isso que apostar todas as fichas em uma intervenção miraculosa é uma receita para o fracasso.

Em um ensaio chamado Uma Guerra Sem Fim, ela critica aqueles que, na luta pelo progresso, argumentam que a mudança violenta é a única solução possível. E que aqueles que não concordam são omissos — ou, pior, conformistas.

Le Guin nos lembra que nem todos têm o poder de ditar seu destino como aconselha Ohkawa. Para escravos, vítimas do Holocausto e toda sorte de oprimidos ao longo da história, virar o sistema de ponta cabeça nunca foi uma opção. O que não significa que não fizeram sua parte, nem que por isso valem “menos” que seus pares mais poderosos.

Como a autora explica, existem um meio-termo entre baixar a cabeça e morrer inutilmente por uma causa: A relutância em aceitar cegamente a tradição. O esforço para capacitar novas gerações.  A coragem de imaginar que um mundo melhor é possível – e a capacidade de fazer os outros acreditarem nele.

Essa resistência flexível, como ela a batiza, “não é um lugar fácil de se encontrar ou de se viver.” Insistir nessa luta, de certa maneira, é uma guerra sem fim.

“Mas […] é onde Gandhi se firmou. Lincoln chegou lá, dolorosamente. O Bispo Tutu, tendo vivido lá por anos em honra singular, viu seu país se mover, ainda que desajeitada e incertamente, em direção a um terreno de esperança.”

Ursula Le Guin. Foto de Marion Wood Kolisch. Fonte

À primeira vista, esse modelo de heroísmo tem pouquíssimo a ver com a Hikaru do mangá. Ele encontra, porém, um inesperado terreno comum com sua adaptação às telas.

Estamos no mundo, não contra ele

Como fãs bem sabem, o anime de Rayearth toma rumos bastante diferentes em sua segunda temporada.

Se no mangá o arco de Esmeralda é seguido por uma batalha real pelo legado da princesa, na série animada o que está em jogo é a própria alma de Céfiro.

Os medos desencadeados pela morte de Esmeralda se transformam em uma entidade que ameaça reduzir o mundo a uma terra de pesadelos.

Esse medo encarnado tem um nome – Debonair – mas é sua braço direito, Nova, quem rouba os holofotes da vilania.

A série pouco faz para esconder seu protagonismo: se Debonair é despachada em questõa de minutos, a batalha final contra Nova dura quatro episódios inteiros – mais um sem número de confusões que recheiam o segundo arco.

Esse destaque tem um motivo claro. Nova, afinal de contas, é para Hikaru o que Debonair é para Esmeralda: uma contraparte odiosa, falível e humana para uma garota impossivelmente boa, capaz de transformar a terra no paraíso pela simples força de se coração.

Se parasse por aí, teríamos os ingredientes de uma história convencional sobre o triunfo do bem. Porém, num twist que faria Le Guin sorrir, Hikaru derrota Nova não ao destrui-la, mas ao trazê-la para dentro de si, vícios e tudo.

Vista sob esse ponto de vista, toda a segunda temporada nada mais é que uma metáfora para o luto da própria Hikaru, que aprende a superar o trauma da morte de Esmeralda aceitando — e não suprimindo — seus defeitos.

A implicação desse aprendizado vai além do nível pessoal. Seres humanos são imperfeitos por natureza, e esta imperfeição deve ser levada em conta em nossos planos para um futuro melhor. Do contrário, eles estarão fadados a dar errado.

“Eu acho que todas as pessoas têm naturezas duais”  disse Ohkawa sobre o Kamui de X/1999, num comentário que serve igualmente bem para Hikaru/Nova “Eu teria medo de um homem bom que fosse apenas bom”. Esmeralda, aparentemente, também. Por isso convocou guerreiras para eliminar tal pessoa.

Ohkawa e Le Guin discordam sobre os limites da ação humana, mas estão na mesma página em relação ao que torna uma ação “humana”. Lendo suas obras lado a lado, não consigo afastar a impressão de que as personagens das duas escritoras também teriam figurinhas a trocar.

Não sei o que passou na cabeça de Águia ao entender que jamais seria o pilar de Céfiro. Ou na de Alcione, quando fez as pazes com a morte de Zagato e ajudou as guerreiras a encontrarem Debonair. Ou ainda nas daquelas crianças que protegeram Mokona dos escombros do palácio, cientes de que não tinha poderes para consertar o mundo; convictas de que, naquele momento, isto de pouco importava.

Mas suspeito que não seja muito diferente do que pensou George Orr, protagonista de outro livro de Le Guin, Os Tormentos dos Céus:

Nós estamos no mundo, não contra ele. Não funciona tentar permanecer fora das coisas e conduzi-las desta forma. Simplesmente não funciona, vai contra a vida. O mundo é, não importa como nós pensamos que ele deva ser. Você precisa ser junto com ele. Você precisa deixá-lo ser.

A entrevista com Nanase Ohkawa citada nesse artigo foi realizada em 1997 e publicada em LEDOUX, T. Anime Interviews: The First Five Years of Animerica, Anime & Manga Monthly (1992-1997). Cadence Books: San Francisco, 1997,  pp. 172-83

]]>
http://www.finisgeekis.com/2020/10/22/rayearth-e-a-guerra-sem-fim/feed/ 1 22416