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josei – finisgeekis http://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 03 Mar 2021 18:16:06 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32 josei – finisgeekis http://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Haru no Noroi”: contra certas dores não existe alívio http://www.finisgeekis.com/2021/03/03/haru-no-noroi-contra-certas-dores-nao-existe-alivio/ http://www.finisgeekis.com/2021/03/03/haru-no-noroi-contra-certas-dores-nao-existe-alivio/#comments Wed, 03 Mar 2021 18:12:07 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22676 Haru no Noroi (“A Maldição de Haru) é uma história sobre dor.

Suas personagens são receosas, indecisas, mas também valentes e determinadas – contra, muitas vezes, seus melhores interesses.

É um mangá sobre a morte e o luto. Porém, como outras histórias de seu gênero, é fundamentalmente sobre aqueles que ficam para trás. E as terríveis distâncias que estão dispostos a percorrer para não sucumbir ao desespero.

É difícil adivinhar aonde o mangá josei de Asuka Konichi pretende nos levar a julgar apenas por suas primeiras páginas. Isto porque o enredo se debruça sobre habitantes de uma realidade tão exótica à maioria de nós que parece saída de um livro empoeirado.

Haru e Natsumi são descendentes do zaibatsu Tachibana, uma das linhagens mais influentes do Japão no século XIX. Hoje, a família é uma sombra do que foi um dia, mas ainda preserva seu orgulho – e seu respeito quase fanático à tradição. Haru, filha mais nova, tem o casamento arranjado a Togo, filho de outro importante magnata.

Pouco tempo depois, ela morre de câncer. Tinha apenas 19 anos.

A doença não a levou de forma súbita. Pelo contrário, foi uma batalha que se estendeu por anos. Como tantas famílias amaldiçoadas por este fardo, os Tachibana se vêem sem propósito quando a filha finalmente morre. O fato de serem uma linhagem tradicionalíssima, que prezam união e continuidade acima de tudo, só torna a tragédia mais traumática.

Para Natsumi, a perda tem contornos mais pessoais. Mais do que qualquer membro da família, ela tornou proteger a vida da irmã como missão de vida. Sua morte a faz se sentir como um súdito que falhou a seu mestre. No velório, ela não esconde que contempla o suicídio.

Pensar em um ente querido nesses termos pode parecer um exagero, mas a relação entre as irmãs nada tem de sutil. A devoção de Natsumi a Haru era tamanha que ela decidiu mudar sua carreira e estudar nutrição para ajudar a manter-se saudável.

Quando Haru foi hospitalizada, passou a dedicar cada hora livre de seu dia a acompanhá-la no hospital. O preço desta dedicação foi a negligência completa de sua vida amorosa, podada no talo justamente na época em que Natsumi deveria estar curtindo sua juventude, aprendendo a se relacionar.

Em uma conversa com Togo, ela confessa sequer saber se gosta de homens ou mulheres. A adoração à irmã a consumiu de tal forma que não deixou espaço para qualquer exercício de afeto.

É essa obsessão doentia que faz Natsumi tomar uma decisão chocante, mesmo para um mangá que fala de suicídio e casamentos arranjados.

Contra seus melhores instintos, Haru decide começar um relacionamento com Togo, marido de Haru. Seu objetivo é menos aplacar a solidão que tentar, por todos os meios a seu alcance, manter vivo o que restou de sua irmã. Nem que seja apenas a memória de encontros passados.

Konichi equilibra tantos temas espinhosos, com tanto desapego, que é nada menos que um milagre que Haru no Noroi não sucumba à farça. É mérito da autora ter conseguido não só fazer sua premissa improvável funcionar, como apontado na experiência de Natsumi e sua família uma humanidade que todos somos capazes de reconhecer.

Cada família infeliz é infeliz a sua própria maneira, lembrava Tolstói, mas os dramas dos Tachibana são universais.

A mãe de Natsumi e Haru abandonou a família, incapaz de viver sob a felicidade postiça de um casamento arranjado. Sua madrastra fez o melhor para ser aceita pelas enteadas, mas é tão incapaz de esconder a dor da rejeição quanto Natsumi e Haru são dispostas a aceitá-la.

Togo erige uma fachada de indiferença mas nos perguntamos, página após página, se aqueles sentimentos são deles ou de sua família. “Pessoas mortas não sentem tristeza!” ele esbraveja, alto o suficiente para que saibamos que não acredita de verdade naquilo que diz.

A relação de Natsumi e Togo nunca se materializa como amor. Quanto mais aprendemos sobre suas vidas, mais percebemos que este nunca foi o ponto.

Por tradição, mas também afeto, as outras pessoas da sua vida se apressam para varrer Haru de seus pensamentos e devolvê-los a sua vida antiga. O que está realmente em jogo, eles logo aprendem, é quanto tempo conseguirão andar na corda bamba entre este esquecimento e a memória da irmã que os contamina como uma maldição.

O mangá veste seu simbolismo com orgulho. Haru significa “primavera”; Natsumi, “verão”. Os nomes de cada um dos oito capítulos acompanham o desenrolar do ano, com ênfase na passagem das estações. O primeiro e o último formam uma única frase que se torna mais sinistra quanto mais avançamos na história: “A primavera se foi”, “e o inverno virá”.

“Inverno”, pois é possível que, ao buscarem conforto, tudo o que encontrem sejam galhos secos. E se há alguma certeza é de que o percurso será longo e difícil e doloroso.

“Talvez nós não estejamos amaldiçoados” diz Togo a Natsumi “mas esse sentimento provavelmente nunca irá embora”.

Certas histórias usam o sofrimento humano como muleta para lágrimas fáceis. Outras torturam suas personagens para conquistar uma respeitabilidade que não merecem. Muitas vezes, apenas por sadismo.

Haru no Noroi pertence a um outro tipo, que prefere a descrição à explicação, a compaixão à lição de moral, a sutileza ao valor de choque. Um tipo de história corajosa o suficiente para nos olhar nos olhos e admitir que contra certas dores não existem alívios.

É pouco. Porém, como Togo e Natsumi nos mostram, mesmo um pouco de honestidade pode salvar o futuro de uma pessoa.

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Hozumi: uma mestre na arte de contar histórias http://www.finisgeekis.com/2016/10/25/hozumi-uma-mestre-na-arte-de-contar-historias/ http://www.finisgeekis.com/2016/10/25/hozumi-uma-mestre-na-arte-de-contar-historias/#comments Tue, 25 Oct 2016 16:20:34 +0000 http://finisgeekis.com/?p=11901  

Josei é um estilo de pouca sorte. Em uma pesquisa feita pelos meus colegas da Blogosfera Otaku BR, ficou em último lugar na lista de preferências de grupos de anime no Facebook, com meros 1,2% dos votos.

É verdade que, no Brasil, a oferta de mangás à demografia é lastimável.  Sem o deslumbre adolescente do shoujo e do shounen ou a aura de “transgressão” associada ao seinen, o  josei parece, a princípio, estar em uma competição desleal.

Obviamente, isso é uma grande injustiça. O que aparenta ser o ponto fraco da demografia é, na realidade, o seu maior diferencial. Longe das idealizações comuns em obras juvenis e da apelação temática de muitas obras ditas “maduras”, o estilo dedicado a jovens mulheres conta com alguns dos quadrinhos mais surpreendentes do mercado.

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Leitores brasileiros tiveram uma prévia disso esse ano, com o lançamento nacional de The Wedding Eve pela Panini. Composto de seis histórias curtas, o volume é uma lufada de ar fresco a uma mídia que parece presa nos anos da escola.

E não apenas pelo fator “novidade”. Sua autora, Hozumi, é uma verdadeira mestre na arte de contar histórias. Suas obras são um show de maturidade e franqueza – e uma mostra daquilo que mangás podem ser quando se pensa diferente.

Uma escritora de contos

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Dizem que o segredo de um bom conto é ter uma “chave”, um momento especial em que passamos a enxergar as coisas de outra forma.

Ao contrário de romances, contos não têm espaço para longas descrições e worldbuilding. Ao contrário de novelas e séries, não podem contar com a isca de cliffhangers intermináveis.

A história precisa ser direta ao ponto e impressionar com pouco. Deve se focar em coisas reconhecíveis e detalhes marcantes. Deve ser sincera – e inclemente. Como dizia o escritor Júlio Cortázar, se a literatura fosse uma partida de boxe, o romance venceria por pontos; o conto, por nocaute.

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Mangás não têm exatamente um histórico de sucesso com esse tipo de história. O problema não é falta de talento. O ritmo de produção insano dos quadrinhos japoneses é um inimigo para qualquer boa narrativa.

Para começar, quase sempre são serializados. Suas tramas precisam ser divididas em capítulos de duração específica, com cliffhangers e outros truques óbvios para cativar o leitor. Pressões editoriais podem fazer com que a série se arraste indefinidamente, ou que seja cortada da noite para o dia.

Nadar contra a corrente pode custar o futuro da obra, quando não a reputação do mangaká. O próprio Inio Asano disse que Oyasumi Punpun, um dos raros mangás a seguir um plano autoral pré-concebido, perdia leitores a cada capítulo.

Como histórias curtas, com começo, meio e fim, one shots poderiam ser a exceção da regra. Infelizmente, na maioria dos casos, são escritos como submissões a concursos ou para “vender a ideia” de uma série. Não são contos, mas pitches publicitários, protótipos disputando o carinho de uma editora.

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Dragon Ball é um entre tantos mangás que começou como one shot.

Hozumi é tão diferente que, ao lê-la, temos a impressão de que caímos em uma outra mídia por engano. A autora faz em poucos capítulos o que outros mangakás não conseguiriam em vários tankobons.

Enquanto outros se esquivam das limitações, Hozumi as transformou em força. Seus trabalhos tem uma sutileza e um impacto emocional que valorizam o fato de serem curtos. Hozumi escreve contos.

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The Wedding Eve, sua premiada obra de estreia, é um exemplo de tudo o que faz de melhor. Suas seis histórias acompanham pessoas que passaram por  maus bocados, mas que não deixaram a dor fazê-las esquecer de como sorrir.

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Órfãos que tratam um espantalho como um “mãe” adotiva. Irmãos que carregaram um rancor do colégio até a velhice. Um escritor anti-social que pensa estar sendo assombrado. Uma menina que não entende a “separação” dos pais. A história de uma família contada por seu gato.

No papel, The Wedding Eve é um mangá sobre antecipação, nosso último dia de espera antes do maior evento das nossas vidas. Na verdade, são histórias sobre o futuro, aquilo que acontece depois do “felizes para sempre”. Sobre quando olhamos para o passado e descobrimos, como disse certa escritora, que virar adulto acontece por acaso, uma escolha por vez.

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Histórias de colegiais são tão populares em mangás e animes que às vezes nos fazem esquecer algumas coisas. Por exemplo, que existe vida para além do primeiro beijo.

O tempo sempre passa, nem sempre como gostaríamos. Erros acontecem. Pessoas nos deixam – às vezes, por nossa culpa.

Porém,também existe beleza no luto, alegria na vida de um órfão, amor entre pessoas que já se machucaram. Saber achá-los faz toda a diferença. Em alguns casos, é tudo o que realmente importa.

É uma lição que a Naho de Orange, disposta a sacrificar marido e filho por um colega de classe que mal conheceu, nunca aprenderá. Como uma vez disse Inio Asano, viver é muito mais difícil que morrer.

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Na obra de Hozumi, The Wedding Eve não é um ponto fora da curva. Em seu Sayonara Sorcier, a autora trabalha as mesmas questões, dessa vez na Paris da Belle Époque. Seu protagonista é Theo Van Gogh, irmão do pintor de Noite Estrelada e um dos maiores negociantes de quadros da Europa.

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Não deixe a roupagem de época enganá-los. O mangá não é um drama histórico, nem uma trívia sobre o mundo da arte. O verdadeiro interesse de Hozumi é a relação fraternal.

Sua fábula de carruagens, tinta à óleo e intrigas acadêmicas é apenas um veículo para falar de algo mais importante: o amor entre irmãos, e o que estão dispostos a fazer para proteger um ao outro.

Mesmo quando tudo parece dar errado.

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Quem tem curiosidade para curtir a mangaká em seu melhor momento, no entanto, deve conferir em outro lugar. A honra fica com seu tocante  (e macabro) Usemono Yado. 

O que faz de nós humanos

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O mangá de três volumes, terminado em maio desse ano, não impressiona apenas por contar uma ótima história. Ele consegue brilhar com uma voz própria a despeito de usar  a mesmíssima premissa de outra obra de sucesso, o muito celebrado Death Parade.

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Ambas as obras se passam em um limbo para mortos que deixaram pontas soltas em sua vida. No anime da Madhouse, é um bar no qual precisam participar de uma série de jogos. No mangá de Hozumi, uma pousada em que devem procurar algo que perderam.

A experiência, claro, é apenas fachada para algo maior. Antes de partir dessa para melhor, precisamos aceitar que estamos mortos. E enfrentar os fantasmas de nossas escolhas ao longo da vida.

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Nem todos estão à altura do desafio. Em uma obra e outra, aqueles que não conseguem realizar o desafio acabam presos no limbo, trabalhando para receber outros “clientes”.

Ambas as histórias têm seus méritos. Usemono Yado, no entanto, nos mostra a diferença que faz quando um argumento promissor cai nas mãos de uma escritora talentosa.

Death Parade enfeitou uma premissa simples com um universo elaborado. Descobrimos que existem vários bares e vários “anfitriões”, cada qual com sua própria aparência e poderes. Até mesmo um “Deus” que joga bilhar com planetas.

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Nos seus 12 episódios, o conceito nunca decola. Personagens coadjuvantes são esquecidos pelos cantos. Sua meta-história sobre os “bastidores da morte” rouba tempo dos conflitos humanos. Suas lacunas e contradições tiram o brilho do todo.

Nascido ele próprio de um conto – o curta Death Billiards – Parade parece não ter entendido o que faz do formato tão único. Na sanha de fazer muito, penetrou pouco.

Usemono Yado, em contrapartida, vive de sua simplicidade. Há uma garota misteriosa que age como a senhoria da pousada. E há um homem, também misterioso, que leva as mortos aos portões do limbo. Nós sabemos ela está morta, pois só mortos podem entrar na pousada. E sabemos que ele, que sempre a olha atentamente, deve carregar a chave de sua tragédia pessoal.

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Mais do que isso não precisamos saber. As breves histórias de seres humanos enfrentando a própria morte dão conta do recado. Cada uma traz uma pequena peça do quebra-cabeças, que culminam em um clímax sem uma única ponta solta.

Na sua clareza, o mangá de Hozumi não é apenas bem escrito. É também mais honesto – e adulto.

Por mais que acreditemos que exista um ser superior julgando nossa vida, a triste verdade é que, na prática, estamos sozinhos. Se existe um “manual de regras” a ser seguido, nós só o descobrimos depois de cruzar o batente do nosso próprio limbo.

Em Death Parade, os mortos são julgados por uma raça de homúnculos incapazes de sentir emoção. Em Usemono Yado, não há julgamento, pois Hozumi sabe que não há nada para julgar.

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E teria como ser diferente? Seria mesmo possível julgar o mérito de uma vida? O que deve ser levado em conta, nossas intenções ou suas consequências? Nossa certeza ou nossa honestidade? O fato de que nunca erramos ou nossa capacidade de nos arrepender?

A resposta é: nada. Vivemos de acordo com aquilo que achamos ser melhor, e é a nós que devemos satisfações. Na vida, tal como na morte, nossos juízes não são barmen com cabelos brancos, mas nossas próprias consciências.

É conflito do jesuíta de Shusaku Endo em O SilêncioÉ o desespero do protagonista de A Fonte da Donzelaque não entende como Deus pode exigir misericórdia para os homens que mataram e estupraram sua filha É a agonia que levou um prisioneiro de Auschwitz a escrever nos muros: “Se Deus existe, ele precisará implorar pelo meu perdão.”

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A morte em Usemono Yado é muito mais apavorante, pois ela apenas é. Se existe um propósito para a existência, ele está muito além do nosso entendimento. De resto, precisamos nos contentar com o que temos. O vento se ergue, precisamos tentar viver.

Não é a mais açucarada das mensagens. Porém, nem só de açúcar vive uma pessoa. Saber fazer as pazes com as agruras é também o que faz de nós humanos.

 

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“Helter Skelter”: o culto às aparências é muito mais forte do que imaginamos http://www.finisgeekis.com/2016/07/19/helter-skelter-o-culto-as-aparencias-e-muito-mais-forte-do-que-imaginamos/ http://www.finisgeekis.com/2016/07/19/helter-skelter-o-culto-as-aparencias-e-muito-mais-forte-do-que-imaginamos/#comments Tue, 19 Jul 2016 14:31:46 +0000 http://finisgeekis.com/?p=8167  

Até onde você iria por uma aparência perfeita?

Hoje em dia, é provável que a resposta seja “não muito longe”. Poucas coisas são marcas mais fortes da nossa geração do que a crítica à beleza a todo custo. “Come as you are “tornou-se um lema para a forma como nos relacionamos com a moda, com a etiqueta e com nossos próprios corpos.

Se isso fosse realmente verdade, é pouco provável que Helter Skelter, mangá vencedor do prêmio Osamu Tezuka em 2004, lançado recentemente no Brasil, fizesse tanto sucesso.

Desenhado com um traço agressivo e estilizado, o quadrinho é um retrato gráfico, cínico e intratável da face mais sombria do culto às aparências. E de como, por mais que nos esforcemos, lutar contra ele será sempre uma batalha perdida.

A beleza que destrói

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“Seria aquilo que você pensa ser uma máscara o seu verdadeiro rosto? Ou seria o seu verdadeiro rosto, na verdade, uma máscara?”

– Kobo Abe

O josei de Kyoko Okazaki nos apresenta Lilico, uma supermodelo para dar inveja a qualquer um. Linda, popular e desejada, ela é vista como uma mulher perfeita, cobiçada por estilistas, agências de publicidade e diretores.

Lilico, no entanto, guarda um grande segredo. Sua beleza fenomenal não foi presente da natureza, mas o resultado de plásticas. E não qualquer plástica: dos dedos dos pés até as sobrancelhas, cada centímetro do seu corpo foi remodelado por uma cirurgiã.

Se a transformação parece extrema demais (mesmo para nossa geração fissurada em plásticas) é porque de fato o é. O procedimento de Lilico é experimental e requer que ela tome um coquetel de drogas para manter a saúde da pele.

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O problema é que essas drogas têm efeitos colaterais. Dores, sangramentos e escoriações viram parte de sua rotina. Um maquiador passa a acompanhá-la aonde quer que vá. Para sustentar sua beleza escultural, ela acaba destruindo o próprio corpo.

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Histórias de terror envolvendo plásticas são quase tão antigas quanto as próprias cirurgias, e não parece que o conto de Okazaki tenha no realismo uma prioriade. Este, no entanto, não é sua intenção.

Por mais curioso que pareça, Helter Skelter não é um livro sobre o corpo, mas sobre fantasias – e o efeito perverso que têm sobre nossa mente.

Obcecada pela promessa de sucesso fácil, Lilico se torna dependente de uma “mãe” adotiva que a trata como um ganso dos ovos de ouro. Entre a exploração da “madrinha” e as despesas com a clínica de estética, a modelo vive em uma corda bamba entre o sucesso e a falência. Ela sabe que, no momento em que sair dos holofotes, sua vida de sonhos  se desmanchará como um castelo de cartas.

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Quando uma jovem modelo ameaça roubar seu espaço, é esse o futuro que prevê para si. Lilico se torna paranoica. Com medo de envelhecer e perder seu lugar ao sol, ela se volta contra tudo e contra todos – incluíndo a si mesma.

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Kyoko Okazaki não nos poupa dos detalhes sórdidos, e esta é talvez a maior força de seu mangá. Na sua espiral de auto-destruição, Lilico se prostitui para celebridades ricas, tortura sexualmente sua assistente e ataca rivais com ácido sulfúrico.

É um retrato chocante, e não é à toa que alguns reviewers criticaram a obra por apelar demais com sua depravidade. É também verdade que a obra foi vítima (ou beneficiária?) da própria fama. Em um golpe mórbido de ironia, a própria autora foi desfigurada em um acidente de carro.

No entanto, basta nos lembrarmos de que coisas do tipo já aconteceram de fato para percebermos que Helter Skelter pode ter vários defeitos, mas falta de honestidade não é um deles.

A “aparência” só existe mesmo nas aparências?

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“Eu não sei bem como dizer, mas eu me pergunto se uma máscara, sendo universal, melhora nossa relação com os outros mais do que nosso rosto nu”.

 – Kobo Abe

Não devemos julgar as coisas pelas aparências.

Por trás desse lugar-comum, está o julgamento de que aquilo que somos e como nos mostramos ao mundo são coisas diferentes. Quando estas duas “pessoas” entram em conflito, é o momento em que sofremos.

Helter Skelter nos propõe um exercício interessante. O que aconteceria se a diferença fosse apagada? Se a máscara que escolhemos para nós devorasse nosso verdadeiro rosto?

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Lilico… ou Tiger Lily?

Por mais que os horrores sofridos (e praticados) por Lilico nos assombrem, não dá para negar o apelo de sua decisão. Mascarar-se, afinal de contas, é uma coisa que todos fazemos. Para alguns, por necessidade.

Por mais satisfeitos que estejamos, ninguém tem a vida que sempre desejou. Estamos sempre um pouco aquém das nossas expectativas, seja ao nos olhar no espelho, seja ao encarar o teto e pensar em seu colega que já tem uma carreira enquanto você, perdido e formado, não sabe o que fazer da vida.

Lilico não quer apenas ser bonita. Ela usa a devassidão para se esquecer da solidão; o luxo para mascarar o desespero; a vida pública, sem direito à privacidade, para sossegar os esqueletos que tentam escapar de seu armário.

Conforme a fachada vai caindo e seu rosto postiço começa literalmente a se desprender da carne, somos apresentados a uma Lilico perturbadora, com um passado vergonhoso e tendências criminosas.

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Seus sacrifícios são terríveis, mas têm um propósito. Ao se oferecer de cobaia a uma médica inescrupulosa, Lilico comprou o sonho de se tornar a sua própria fantasia – e enterrar, finalmente, a pessoa que estava condenada a ser.

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Em seus pés, é difícil negar que muitos fariam o mesmo. Helter Skelter, afinal, não é apenas a sátira sobre a hubris de uma celebridade. É a cutucada em uma verdade desconfortável que escondemos há muito tempo.

Não é de se espantar, portanto, que sua história já tenha sido contada antes.

O Rosto de um Outro

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O escritor japonês Kobo Abe não é conhecido como o Kafka do Japão à toa. Cotado várias vezes para o Nobel, ele foi um dos nomes mais perturbadores da literatura nipônica.

Seu romance O Rosto de um Outro soará familiar a todos que tentem digerir o mangá de Kyoko Okazaki. Trata-se da história de um homem cuja face foi desfigurada após um acidente de laboratório.

Condenado a viver literalmente como um homem sem rosto, ele é possuído por uma ideia fixa: criar uma máscara tão, mas tão realista que pudesse se passar por um rosto de verdade.

Não o seu rosto, contudo. Tal como Lilico de Helter Skelter, ele vê no acidente que sofreu uma oportunidade para se reinventar – e transformar-se naquilo que a vida nunca lhe permitiu ser.

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O experimento é um sucesso. O protagonista, cientista habilidoso, desenvolve um material que imita a pele em quase tudo. Mesmo seus velhos conhecidos são enganados pelo disfarce. As consequências, porém, são bem diferentes do que ele imaginara.

Ao vestir o rosto de um “outro”, ele, também, começa a se tornar outro.

A “máscara” parece ter uma personalidade própria e o faz se comportar de uma maneira estranha. Ele fica agressivo. Tem fantasias envolvendo crimes. Compra uma arma. Em um pico de maquiavelismo, decide seduzir a própria esposa passando-se por outro homem.

Na intenção de voltar a ser uma pessoa normal, a personagem de Abe faz da própria vida o que já foi, com certeza, o sonho macabro de muitas pessoas. Ele ganha uma identidade postiça, sob a qual pode fazer o que quiser, e que pode a qualquer momento largar, para evitar responsabilidades.

Perto da crueldade de Lilico, o protagonista de O Rosto de um Outro é quase inocente. Porém, o que o livro não traz de terror gráfico ele entrega em perspicácia.

Em dado momento do romance, a personagem de Abe percebe que seu disfarce funciona não por ser perfeito, mas porque vestir o rosto de um outro é algo bem menos monstruoso – e muito mais comum – do que parece à primeira vista.

Mentiras brancas do dia a dia. Fórmulas ocas de cortesia. Modismos. Vidas duplas (ou triplas) levadas por adúlteros. Vícios que escondemos a sete chaves, mas que nos devoram secretamente por dentro. Todos nós, em maior ou menor medida, interpretamos um papel. E o rosto é nosso convite ao baile de máscaras que chamamos sociedade.

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Isso, claro, apresenta um problema. E se todas as pessoas tivessem, como o protagonista do romance, o poder de trocá-las à revelia?

E se nossa identidade mais íntima, aquilo que faz de nós indivíduos, pudesse ser descartada e trocada, como fazemos com uma roupa fora de moda, uma fandom que nos desinteresse ou um partido político com o qual deixamos de nos reconhecer?

A resposta de Abe é tão horripilante quanto a loucura de Lilico:

Incapaz de suspeitar dos outros, incapaz de acreditar neles, as pessoas precisariam viver em um estado de suspensão, de falência das relações humanas, como se olhassem para um espelho que não reflete nada.

Não, talvez elas deveriam se preparar para aceitar um estado ainda mais estarrecedor. Todo o mundo começaria a trocar de máscaras uma após a outra, tentando escapar da ansiedade de não enxergar tornando-se menos vísivel que o próprio invisível. E quando se tornasse prática comum buscar constantemente novas máscaras, a palavra “estranho” se tornaria obcena, pichada em banheiros públicos, e a identificação de estranhos – como as definições de família, nação, direitos, deveres – se tornaria obscura, incompreensível sem comentários copiosos.

O Rosto de um Outro foi escrito nos anos 1960, muito antes do transplante de rosto se tornar uma realidade. Felizmente para nós – e infelizmente para sua personagem perturbada – a possibilidade de ganhar uma nova face não trouxe a distopia que Abe imaginou.

No entanto, a modernidade trouxe sim algo parecido. Se é verdade que poucos trocam, literalmente, de rostos, é verdade que usamos e abusamos de “personas” e que o anonimato nunca foi tão fácil.

Acredito que poucos negariam que as pessoas não se comportam no mundo virtual do mesmo jeito que o fariam na vida real. O que divide opiniões é a causa. Será que as máscaras estimulam pessoas a serem o que não são? Ou apenas liberam impulsos que, no contato social, preferíamos manter escondidos?

Até que ponto a liberdade escapista não se transforma em outra coisa? Quantas vezes precisamos vestir uma máscara para nos esquecermos de que ela está ali, em primeiro lugar?

Nada disso, claro, é novo – e daí a genialidade dos trabalhos de Abe e Okazaki. Da turba de linchamento às escapadas sexuais, essa é uma navalha em cujo fio andamos desde os primórdios da civilização.

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É muito comum, em páginas de auto-ajuda ou “bem-estar”, nos depararmos com a história de que devemos “ignorar as aparências”. Aprender a nos amar por aquilo que somos na nossa “essência”. Fazer de nossa vida um livro aberto ao mundo.

Helter Skelter e O Rosto de um Outro, cada um à sua maneira, nos mostram que a realidade é mais complicada.

Que debaixo das nossas máscaras não existe beleza, honestidade, compaixão ou qualquer outra platitude abstrata. Existe, pura e simplesmente, um amontoado de carne, ossos e cartilagem.

E que nossas máscaras, por mais asquerosas que nos pareçam, são muitas vezes tudo o que nos separam da depravidade de nossa natureza interior.

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