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Japão – finisgeekis http://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 17 Mar 2021 19:21:27 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32 Japão – finisgeekis http://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 De onde vem o fascínio dos animes com a Irlanda? http://www.finisgeekis.com/2021/03/17/de-onde-vem-o-fascinio-dos-animes-com-a-irlanda/ http://www.finisgeekis.com/2021/03/17/de-onde-vem-o-fascinio-dos-animes-com-a-irlanda/#comments Wed, 17 Mar 2021 19:21:27 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22707 Em 2018, o site francês Manga-News perguntou a Nagabe qual era a história por trás do subtítulo de seu maior sucesso, A Menina do Outro Lado: Siúl a Run.

Senti que o entrevistador tinha lido minha mente. Eu sabia que Siúl a Rún ( “Ande, meu amor”), é uma música tradicional irlandesa. Mesmo após ler oito volumes de seu mangá, porém, não havia conseguido captar a conexão.

Será que a canção apareceria futuramente em algum momento de clímax? Será que o universo da história fictício seria cindido por uma guerra, como aquela a que seus versos se referem?

A resposta de Nagabe foi tão gélida quanto um banho de mar na Irlanda durante uma tarde de chuva:

“Eu não conhecia nada dessa música […]. Foi meu responsável editorial que, um dia, me trouxe um CD me dizendo “Escute bem essa canção, eu acho que a atmosfera corresponde ao seu mangá. Eu a escutei e achei que ela tinha uma linha melódica triste, mas ao mesmo tempo colorida de esperança, que ia perfeitamente com a atmosfera que eu gostaria de criar em “A Menina do Outro Lado”.

Verdade seja dita, saber que Nagabe escolheu seu título apenas porque soava bem não me impressona tanto assim. Rola na internet o rumor – talvez apócrifo- de que Hideaki Anno teria escolhido o  nome “Evangelion” porque a palavra soava difícil. Miyazaki confessou que puxou sua Nausicaa de um dicionário de mitologia (embora, anos depois, tenha lido de fato a Odisseia).

Não há nada errado em se inspirar em uma música por conta da vibe. Ainda mais em uma canção que tem alguma penetração no Japão, tendo já sido gravada por intérpretes locais.

Álbum da cantora KOKIA, com faixas em irlandês, inclusive “Siúl a Rún”.

O que me chamou a atenção é que esse está longe de ser um incidente isolado. Para cada Fate/ ou Durarara! que aborda diretamente a cultura ou mitologia irlandesa, há um punhado de animes e mangá que parece se referir à Ilha Esmeralda sem uma razão muito específica.

Há um motivo para ‘Legend of Galactic Heroes’ possuir uma nave chamada Mannanan Mac Lir? Ou ‘Last Exile’ retratar uma nau batizada de ‘Claoímh Solais?

O que há na cultura irlandesa que atrai de tal forma os animes?

Para responder a essa pergunta, é preciso voltar no tempo.

Do Japão à Irlanda…

Seja qual for esse feitiço que une as duas culturas, els não é novo. Já no final do século XIX, um escritor criado em Dublin largou tudo o que tinha para construir uma vida em terras nipônicas.

Seu nome era Patrick Lafcadio Hearn, e ele se tornou o primeiro ocidental a fazer fama escrevendo sobre o folclore e as tradições japonesas. Sua obra mais conhecida, Kwaidan, é um compêndio de histórias de youkai, criaturas fantásticas – e muitas vezes assustadoras – da mitologia nipônica.

Primeira edição de “Kwaidan”, obra mais conhecida de Hearn

Hearn escrevia sobre temas japoneses, mas seu interesse em fantasmas e assobrações carregavam um toque da Dublin em que viveu. O escritor viveu nos anos da Renascença Literária Irlandesa, um importante movimento que repaginou as lendas e mitos gaélicos às sensibilidades do final do século XIX.

Em uma carta ao poeta e dramaturgo W.B. Yeats, um dos maiores expoentes do movimento, ele confessou ter sido influenciado por contos de fada narrados por sua babá irlandesa.

Lafcadio Hearn (também conhecido como Koizumi Yakumo) e sua esposa, Koizumi Setsuko

Hearn teve alguma influência na cena cultura japonesa. Um de seus maiores fãs foi Okuma Shigenobu, fundador da Universidade de Waseda, que o convidou para lecionar lá.

Seu verdadeiro impacto, porém, aconteceu no próprio Ocidente. Hearn estava na posição privilegiada de ser um dos poucos ocidentais escrevendo em inglês sobre um Japão, em uma época em que o interesse pelo país estava nas alturas.

Em grande parte, isso se deveu à Exposição Universal de 1900, de que o país participou com seu próprio pavilhão. Todos os países da Europa queriam saber mais sobre essa nação misteriosa e sua cultura diferente.

Pavilhão japonês na Exposição Universal de 1900, em Paris

A Irlanda, em particular, levou o fascínio a outro patamar. Yeats, conhecido de Hearn, ficou de tal forma fascinado com o teatro noh que decidiu escrever sua própria peça em estilo japonês, At the Hawk’s Well.

A obra passou no crivo dos próprios japoneses, que a adaptaram a sua língua duas vezes, em 1949 e 1967. Hoje, ela faz parte do repertório tradicional do teatro noh.

Montagem da peça Takahime, “At the Hawk’s Well”, co-organizada pelo ator noh Gensho Umekawa e o grupo musical irlandês Anúna.

e da Irlanda ao Japão

Mas será mesmo que é daí que vem a fascinação com a Irlanda no dias de hoje?

Sim, Hearn não passou batido aos holofotes da cultura pop. Um de seus contos foi adaptado às telas nos anos 1980. O mangaká Eiji Ohtsuka transformou sua vida em uma série chamada Yakumo Hyakkai (em referência a Yakumo Koizumi, o nome que adotou ao se naturalizar japonês). Touhou Project batizou duas de suas personagens em sua homenagem.

Capa do manga Yakumo Hyakkai

Mas esses exemplos são gotas d’água no oceano de Cúchullains, Diarmuid Ua Duibhnes e Cliffs of Mohers na cultura pop. E nada disso parece ter muito a ver com Hearn.

O escritor foi uma sensação no Japão de sua época. Porém, como lembra Rie Kido Askew, seu apelo sempre foi mais “cult” que mainstream. Por escrever em inglês, suas obras ficavam restritas aos japoneses que dominavam a língua estrangeira.

Ademais, o “fator novidade” que o tornou tão popular no ocidente não existia no circuitos nacionais. Afinal de contas, não havia falta de escritores japoneses escrevendo – em japonês – sobre sua própria cultura.

Se não fosse bastante, Hearn pode ter sido influenciado por histórias de fadas e deuses irlandeses, mas ele pouco fez para tornar esses mitos mais conhecidos no país em que escolheu morar.

De fato, por mais que olhamos as referências à Irlanda nos animes, mais parece que elas estão lá justamente por serem obscuras.

Segundo Rika Muranaka, compositora de Metal Gear Solid, a faixa The Best is Yet to Come foi cantada em irlandês porque Hideo Kojima disse que “não queria ouvir letra em inglês”, nem em nenhuma outra língua que ele reconhecesse.

Yoko Taro, criador da série Nier, deu instruções parecidas aos compositores Keichi Okabe e Emi Evans. “[T]er letras que você reconhece e entende pode distrai-lo do gameplay”, ele justifica. O resultado foram músicas cantadas em línguas inventadas – uma delas baseadas no gaélico escocês.

Em outras palavras, a língua irlandesa é conveniente porque não significa nada. Ou melhor, ela passa uma vibe genérica de “exotismo” capaz de intrigar até mesmo os japoneses mais viajados.

Ironicamente, é exatamente como muitas produções ocidentais lidam com a cultura japonesa de uma maneira cotidiana. Se obras do nosso hemisfério usam samurais, geishas e flores de cerejeira para carimbar uma personagem como “estrangeira”, animes e games nipônicos fazem o mesmo com os Túatha Dé Dánnan e viaturas da Garda Siochána.

Fractale

Mas isso também não explica tudo. Por que a Irlanda e não qualquer outro lugar da Europa – ou do Ocidente como um todo?

Talvez, porque Japão e Irlanda tenham mais em comum do que salta aos olhos à primeira vista. E não falo apenas de serem cercados pelo mar.

Soft power

A Irlanda é um país minúsculo nos confins da Europa – até recentemente, paupérrimo para os padrões do mundo desenvolvido. Porém, ela tem uma vantagem gigantesca sobre qualquer um de seus vizinhos: há irlandeses por toda parte.

O censo dos Estados Unidos estima que quase um em cada dez americanos tenham ascendência irlandesa, incluindo presidentes como John Kennedy, Barack Obama e Joe Biden. O primeiro ministro da Austrália declarou hoje que um terço do país têm raízes irlandesas. Isto sem contar imigrantes em países como Canadá, Chile, África do Sul e muitos outros.

Essa comunidade age como um “megafone” global para a cultura, língua e folclore do país. Além disso, gera um imenso mercado consumidor para as obras vindas da ilha, sejam os livros da Sally Rooney ou filmes do Cartoon Saloon.

E não falo apenas de gente com ascendência irlandesa, mas pessoas sem nenhum vínculo com a ilha que decidem provar uma Guiness ou arriscar uma cúpla focal depois de participarem de uma festa de São Patrício.

Tal como, aqui no Brasil, muita gente se apaixona pelo Japão porque cresceu frequentando a feirinha da Liberdade ou visitando o Kinkaku-Ji do Brasil.

Ambos os países têm de sobra o que cientistas políticos chamam de soft power: a capacidade de projetar sua influência não disparando balas, mas espalhando cultura. No caso da Irlanda, esse é um poder que chegou até à realeza japonesa.

Segundo o jornal Irish Times, a ex-imperatriz Michiko fala um pouco de irlandês, toca harpa e era amiga do poeta Séamus Heaney. Uma de suas filhas, a princesa Mako, fez parte de seus estudos no University College Dublin.

Se nada mais, as aristocratas estão afinadas com o interesse de seus súditos. Organizado pela primeira vez em 1992, a Festa de São Patrício já é um evento nacional no Japão. Em 2019, nada menos que 15 cidades organizavam paradas – em Tóquio, 130 mil pessoas tomaram as ruas.

Parada do dia de São Patrício em Tóquio, 2015. Foto de Yoshiaki Miura

Será que isso é o bastante para que a TG4, emissora irlandesa em língua gaélica, adicione animes a sua programação?

Provavelmente não. Mas eu continuarei na torcida. De preferência, acompanhado de um pint de Guinness.

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A imaginação do desastre em “Asadora!” http://www.finisgeekis.com/2021/02/17/a-imaginacao-do-desastre-em-asadora/ http://www.finisgeekis.com/2021/02/17/a-imaginacao-do-desastre-em-asadora/#comments Wed, 17 Feb 2021 18:18:39 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22626 O ano é 2020. Tóquio está em chamas, seus habitantes em fuga diante de um perigo desconhecido. A cidade, que se preparava para hospedar as Olimpíadas, começa a se perguntar se durará até a manhã seguinte.

Poderia ser as manchetes de qualquer jornal de um ano atrás, quando “Covid-19” e “coronavírus” entraram no rol de nossos piores pesadelos. Mas é a tomada inicial de “Asadora!”, mangá que ressuscita a fórmula dos filmes de kaiju para a segunda década do século XXI.

“Desastre” é o tema do momento – de certa forma, de todos os momentos. Não é fácil encontrar algo relevante a dizer sobre o tema quando os jornais parecem disputar a todo instante com a ficção. Nos piores casos – como “2020 – Japão Submerso” – o paralelo com o presente apenas escancara o que não passa de oportunismo em lucrar com as manchetes.

Não seria fácil se o autor em questão não fosse Naoki Urasawa. Poucos mangakás tem um dom similar de transformar tudo o que tocam em ouro que o autor de Monster, 20th Century Boys e Pluto.

Com personagens comoventes e uma trama geracional que atravessa as décadas, Asadora! Não é diferente.

O cenário é a cidade de Nagoya no final dos anos 1950, em um Japão não de todo recuperado da hecatombe da Segunda Guerra. Nossa protagonista é Asa, uma valente menina com coragem demais e paciência de menos.

Asa vive o que parece ser um dia normal até que flagra um ladrão escapando de uma casa na vizinhança. Desesperado por ver seus planos arruinados, o bandido a sequestra.

Subitamente, o contâiner em que monta seu cativeiro treme. Ao abrir a porta, Asa e o ladrão descobre que não foi apenas sua rotina que foi virada de ponta cabeça.

O “tremor” em questão é nada menos que o Tufão Vera de 1959, até então o maior desastre climático a açoitar o Japão. Embora para nós estrangeiros ele tenha sido eclipsado por outras tragédias (como os terremotos de Kanto e Kobe), aquele setembro de 1959 foi um divisor de águas.

Se nada mais, o fato do Japão ter saído por cima na tragédia é prova do quanto ela mudou o país. Os estragos de 1959 levaram a nação a criar protocolos avançados contra desastres naturais – hoje, entre os melhores do mundo.

Asadora! não é uma história o tufão mais do que sobre a geração que o enfrentou. Estendendo-se de 1959 a 2020 — como anuncia a primeira cena — o mangá mostra como cada uma daquelas pessoas, a sua maneira, encarnaram na própria vida o cabo-de-guerra entre passado e futuro.

Kasuga, o ladrão, é um antigo ás de Marinha Imperial que não consegue emprego como piloto. Em um golpe de ironia para quem voou contra americanos, obter um brevê no japão dos anos 1950 exige uma prova de inglês. Shota, amigo de Asa, é um garoto sem talento para esportes, mas cuja família o força a treinar para as Olimpíadas de Tóquio.

O motivo? “Vestir” os sapatos de seu irmão, que deveria ter participado das olimpíadas de 1940.

Esses conflitos ficam mais claros quando o mangá coloca um pé no sobrenatural, e começamos a ter a impressão de que a casa de Asa não foi destruída por um mero tufão.

O monstro de Urasawa não tem nome – ainda – mas é impossível não notar a referência à Godzilla. Poucas personagens, afinal de contas, resumem tão bem o zeitgeist japonês dos anos 1950: as lembranças das cidades devastadas por bombardeios, o espírito de solidariedade entre vítimas, o trauma da guerra nuclear.

Na medida em que esses temas se emaranham mais e mais com a história de Asa e Kasuga, o leitor estará perdoado se pensar que Asadora fará com o kaiju mais famoso de todos os tempos o mesmo que Pluto fez com Astroboy.

Mas Asadora vai muito além de uma homenagem à Godzilla. A trama de Urasawa se desenrola ao longo de anos durante os quais a aparição do monstro é apenas uma de tantas emoções na trajetória de suas personagens. Trajetória esta que as leva a outro evento, tão – ou mais – importante que o famoso lagarto radioativo.

Em dado momento, Kasuga é contatado por Coronel Jissoji, seu antigo mentor durante os anos de guerra. O ex-oficial está envolvido na organização das Olimpíadas de Tóquio e precisa da ajuda do piloto.

Mais do que medalhas de ouro estão em jogo no evento, ele explica. O campeonato será a chance do Japão de provar aos outros países – e a si mesmo – que estava pronto para caminhar com seus próprios pés.

Nada pode tirar esse plano dos trilhos. Nem mesmo uma visita inexperada de um kaiju das profundezas.

Lendo Asadora durante à luz da pandemia de Covid-19, é tentador pensar que pouca coisa está em jogo no mangá de Urasawa. Afinal de contas, qual é a importância de um evento esportivo diante de um catástrofe de proporções nacionais?

Se um vírus fez as Olimpíadas de 2020 serem adiadas (e, possivelmente, canceladas nos próximos meses), não é de se esperar que um kaiju faça o mesmo?

Como Urasawa nos lembra, não exatamente.

Um novo Japão

Historicamente, as Olimpíadas de 1964 foram tudo isso que Cel. Jissoji disse – e mais um pouco.

Os planos para o campeonato remontam à 1940, quando a cidade de Tóquio foi escolhido para hospedá-lo. Era a chance para o Japão, então uma potência ascendente, de encarar os poderes ocidentais de igual para igual.

Infelizmente, o crescimento do Japão tomou rumos mais sombrios. A repercussão das atrocidades cometidas durante a invasão da China levou o comitê olímpico a transferir as Olimpíadas para Helsinque. O agravamento da Segunda Guerra Mundial eventualmente cancelou-o por completo.

Em 1964, o governo japonês estava determinado a fazer diferente. Para carregar a tocha, escolheram Yoshinori Sakai, cidadão de Hiroshima nascido no dia em que a bomba caiu.  Boa parte dos terrenos e edifícios onde o evento foi realizado eram antiga propriedade das forças armadas imperiais, ocupadas pelos EUA após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Recebê-las de volta para um evento que celebrasse a paz entre as nações era mais do que golpe de marketing. Era um caminho para construir, sobre as ruínas do fascismo, os pilares de um futuro democrático.

Yoshinori Sakai levando a tocha olímpica. Fonte

Não é por acaso que o duelo entre Kaneda e Tetsuo no longa Akira acontece justamente no estádio olímpico. Mais do que um edifício, é o Japão esperançoso de 1964 que explode em pedaços na Neo Tokyo distópica de Katsuhiro Otomo.

A imaginação do desastre

Estádio Nacional de Tóquio em ruínas no filme “Akira”

Asadora! e Akira não são pontos fora da curva. Poucas coisas nos fazem refletir sobre o que os podres- e pérolas – de nossa sociedade do que vê-la em chamas numa tela de cinema.

Godzilla, referência principal de Asadora, é um dos exemplos mais conhecidos, mas está longe de ser o único. Da Estátua da Liberdade soterrada em Planeta dos Macacos à Toquio alagada de O Tempo com Você, estas histórias funcionam porque questionam uma normalidade que damos por certa.

É isso que levou a escritora Susan Sontag a dizer que filmes clássicos de ficção científica não são realmente sobre “ciência”. O seu assunto é o desastre.

Esse tipo de filme, ela argumenta, “está preocupado com a estética da destruição, com as belezas peculiares encontradas em causar estrago”.

Essa imaginação do desastre, como ela a batizou, nos traz histórias moralmente simples, em que os monstros são sempre monstruosos e não há dúvidas de quem são os mocinhos. Com isto, ela serve de válvula de escape a fantasias de violência, impedindo-as de tornarem-se um fascínio perigoso.

Ela nos fala do poder da amizade e da união entre nações; na capacidade dos seres humanos em colocar de lado suas diferenças e trabalhar por um bem comum. Seus heróis são muitas vezes cientistas, capazes – com algum esforço – de convencer políticos a fazerem o que é melhor para a humanidade.

Exaustos como estamos à mercê da pandemia, solidão e um presidente genocida, é fácil entender o apelo dessas histórias.

Nas palavras de Sontag:

A nossa é de fato uma era de extremos. Pois nós vivemos sob a ameaça contínua de dois igualmente medonhos, mas aparentemente opostos destinos: a banalidade ininterrupta e o terror inconcebível. É a fantasia, servida em largas doses pelas artes populares, que permitem que a maior das pessoas lide com esses espectros gêmeos.

A escritora Susan Sontag

Mais de cinquenta anos depois (Sontag publicou seu ensaio em 1965) nós vivemos, de novo, em uma era de extremos. Era de se esperar, portanto, que um mangá como Asadora!, abordando os temas que aborda, ofereceria justamente esse escapismo de que tanto precisamos.

Mas Asadora!, surpreendentemente, não é esse tipo de história.

Como é de se esperar de um mangá de Urasawa, ninguém é tão simples quanto parece. Kasuga é um herói de guerra, mas também um ladrão e sequestrador. Asa tem coragem, mas não bom-senso. Nakaido, cientista que ajuda a protagonista a identificar o monstro, é um covarde elitista. Nenhum deles é exatamente hero material.

Não há, tampouco, vilões convencionais. O “kaiju” – se é que,  de fato, podemos chamá-lo assim – não é um monstro mais do que uma força da natureza, nem mais nem menos maléfico do que o tufão de 1959.

Nenhum dos conflitos do mangá podem ser resolvidos pela violência.  Pelo contrário, cada uma das personagens sabe muito bem que foi a violência – mais, sua tolerância com a violência, nos anos sombrios da guerra, que os colocou nessa cilada em primeiro lugar. É para se remidir desse pecado que Kasuga, que ontem torpedava navios americanos, hoje voa para salvar civis; que Cel. Jissoji, ex-figurão do regime fascista, dedica a vida para reconstruir a democracia.

Urasawa é mais crítico e, justamente por isso, mais otimista que a ficção de kaiju que lhe serve de tributo. Como os organizadores das Olimpíadas de 1964, ele acredita que mesmo um país dilacerado pelo ódio e radicalismo pode dar a volta por cima, sem com isso deixar de responder por seus erros.

Seria o nosso mundo de 2021 capaz da mesma salvação? É demais sonhar que os Kasugas e Jissojis que arquitetam nossa própria ruína entendam que estamos à beira de um precipício e façam aquilo que é certo?

Talvez seja. Mas é o papel da fantasia, como Sontag nos lembra, nos dar corda para que sobrevivamos aos tempos difíceis, por mais problemáticas que sejam essas ilusões.

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“Kono Sekai no Katasumi ni”: a geração que não sabia ver http://www.finisgeekis.com/2017/09/12/kono-sekai-no-katasumi-ni-a-geracao-que-nao-sabia-ver/ http://www.finisgeekis.com/2017/09/12/kono-sekai-no-katasumi-ni-a-geracao-que-nao-sabia-ver/#comments Tue, 12 Sep 2017 17:11:05 +0000 http://finisgeekis.com/?p=18248 Das imagens que minha vó trouxe da Segunda Guerra, uma se destaca das demais. De tempos em tempos, aviões aliados sobrevoavam seu vilarejo, metralhando tudo o que encontravam pela frente.

Minha vó nunca ficava para o espetáculo: ao primeiro som das hélices, ela e suas amigas corriam para as montanhas.

“Eles nunca acertavam” ela dizia “Acho que no final só queriam assustar”.

Ouvi essa história incontáveis vezes, mas ela nunca deixou de me embasbacar.  Ali estava uma mulher que não fazia ideia de como funcionava uma “guerra”, mesmo quando as balas zumbiam acima de sua cabeça.

É um relato inocente, mas ao mesmo tempo aterrorizante. E graças ao diretor Sunao Katabuchi, ex-Studio Ghibli, pude vivenciá-lo em primeira mão.

Kono Sekai no Katasumi ni, filme de sua autoria lançado esse ano, traz a mesmíssima cena.

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Nesse canto do mundo

Lançado no Japão ano passado e no Ocidente esse ano, o filme vem colecionando prêmios e até recordes de crowdfunding. O anime é baseado em um mangá de Fumiyo Kouno, que brasileiros devem reconhecer como autora de Hiroshima – A Cidade da Calmaria.

Kono Sekai no Katasumi ni (“Nesse Canto do Mundo”) conta a história de Suzu, uma garota de 18 anos que se muda para Kure, uma cidade militar próxima de Hiroshima.

Tudo vai bem, até não estar mais. Como sabemos da história, Hiroshima seria aniquilada no dia 6 de agosto de 1945. Sede de uma importante base da marinha, Kure experimentaria seus próprios demônios: de bombardeios incendiários a voleios de artilharia.

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Não pense, porém, que está diante de um filme de sofrimento. Kono Sekai no Katasumi ni não é Gen Pés Descalços nem O Túmulo dos Vagalumes. Em uma decisão artisticamente ousada – e original – o filme de Katabuchi se desenrola como um slice of life, recheado de picuinhas, cenas cotidianas e  até humor.

Sua “guerra” não é feita só de batalhas ou carnificinas, mas de pessoas reais, lutando para fazer o melhor de suas vidas. É uma “guerra”, tal como a da minha vó, em que meninas podem ver sua cidade metralhada e caçoar da mira dos pilotos. E casais podem se amar mesmo na claustrofobia de um abrigo anti-bombas.

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O filme é estruturado em forma de diário, com datas que tanto anunciam o passar do tempo quanto dão a contagem regressiva para a tragédia que sabemos que virá.

Muito antes da primeira bomba cair, nós assistimos à vida de suas personagens mudando na medida em que o Império do Japão caminha para a derrota.

Racionamento de comida. Um irmão morto em campanha. Os efeitos da privação de sono, após noites a fio se protegendo de bombardeios. E as consequências terríveis de quando, num momento de desatenção, Suzu esquece de seguir o protocolo.

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A importância da leveza

Katabuchi conta sua história em um passo lento, fiel ao ritmo do mangá original. O resultado é um longa quase episódico, sem um grande conflito central.

Isto pode parecer estranho, considerando o que o filme trata do conflito mais “central” da história do Japão moderno. No entanto, justamente por sua leveza, ele consegue soprar uma lufada de ar fresco a um gênero batido.

Em uma de suas melhores cenas, o kempetai (polícia política) flagra Suzu desenhando um navio de guerra. Ela é arrastada até sua casa, onde ela e suas parentes sofrem uma humilhante batida policial. Isto é espionagem, eles dizem. As mulheres abaixam os olhos, e sentimos em sua tensão um misto de pavor e ódio incontido.

Assim que os policiais vão embora, no entanto, todas começam a gargalhar. E descobrimos que as caretas não eram de ódio, mas de dificuldade em segurar as risadas. A tonta da Suzu, uma espiã? Nem em um milhão de anos!

O episódio, logo descobrimos, é um de muitos. Quando um porta-aviões naufraga e os peixes morrem por conta do óleo, ela celebra: hoje teremos pescada! Quando os americanos lançam panfletos sobre a cidade, ela não se preocupa com as batidas do kempetai: acabam de ganhar papel higiênico!

O texto não se prende a dramas óbvios. O casamento de Suzu é arranjado, mas isto não impede que ela e seu marido, Shusaku, acabem se apaixonando. Personagens morrem, mas o luto nunca degringola ao melodrama.

Kono Sekai no Katasumi ni foi criticado por Hideaki Anno por dar holofotes a uma mulher que “não faz nada”. Ledo engano. Suzu possui um poder que nenhum dos adolescentes birrentos de Evangelion é capaz de igualar: o de sempre sorrir, independente das circunstâncias.

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Se essa sutileza funciona, é porque está ancorada em uma arte primorosa, que tira o máximo do que a animação tem a oferecer. Katabuchi já trabalhou no Studio Ghibli em filmes como O Serviço de Entregas de Kiki. Em suas tomadas, ele prova que aprendeu as lições de seus mestres.

O traço é cartunesco, um meio-termo entre o realismo kawaii de O Túmulo dos Vagalumes e o impressionismo de Princessa Kaguya. Suzu é uma desenhista amadora, que nunca sai de casa sem um lápis. Ao longo do filme, as cenas são interpoladas com as imagens de seu bloquinho.

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É uma técnica usada para efeito extremo, que torna o filme não apenas competente, mas inesquecível.

Em certo momento, Kure vira o palco de uma dogfight entre zeros e corsairs. Rajadas de metralhadora zumbem de todos os lados. Baterias anti-aéreas fazem as casas tremerem. Estilhaços furam telhados, e pessoas correm para os abrigos.

Suzu, no entanto, se esquece de se mexer. Mesmerizada pelo espetáculo, começa a ver a batalha como uma aquarela: as explosões como gotas de tinta, os rastros flamejantes como pinceladas.

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É uma cena poética e virtuosística, que esperaríamos de um filme como Sonhos de Akira Kurosawa. Quando os clarões tomam formas de estrelas de Van Gogh, é difícil acreditar que a referência não seja proposital.

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Mais do que isso, é um comentário sobre a própria protagonista. E a geração que, como ela, sofreu a radiação de uma bomba, mas nunca entendeu como uma “guerra” funcionava.

A geração que não sabia “ver”.

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Em dado momento, Shusaku, que trabalha na marinha, explica a Suzu os navios que estão no porto. Destróiers, submarinos, o próprio Yamato que acaba de chegar.

Suzu, porém, não presta atenção. Vendo que está devaneando, o marido a segura pela cabeça e a gira na direção do mar. “É para lá! ”

Como outras cenas do filme, a sequência vai além da superfície. De certa forma, é um retrato do próprio Japão de 1941: de uma mulher – uma sociedade – que não consegue ver o desastre de seu regime, mesmo quando ele atraca bem na frente de seus olhos.

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Não se trata de negacionismo, a ideia de que o Japão e seus aliados, Alemanha e Itália, não fizeram “nada de errado”.  É algo mais simples.

Para Suzu, tal como para a minha vó e tantos outros civis, nada daquilo fazia sentido. Jogos diplomáticos, linhas de suprimento, embargos comerciais e bloqueios aéreos são pautas de gabinetes. Não de pessoas comuns, iletradas, batalhando pelo seu sustento dia após dia.

Em 15 de agosto de 1945, o Imperador foi ao rádio anunciar a derrota. Para a maioria dos japoneses, foi a primeira vez em que ouviam sua voz.

Ao escutar seu anúncio, Suzu desmonta. Como pode aquilo ser uma “derrota”? Ela, que conseguiu sobreviver? Ela, que sofreu o que não sabia ser capaz de aguentar? Para que tanto sacrifício, se tudo foi em vão?

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É um questionamento que o próprio filme responde. A tomada corta para a vila de Kure, onde vemos hasteada uma bandeira coreana. O que para Suzu era o fim, para os povos oprimidos da Ásia (tal como para os judeus na Europa) era apenas o começo.

A Guerra do Pacífico foi causada pelo imperialismo japonês e terminou com a dissolução de seu império colonial. Coreanos, chineses e outras minorias – que trabalhavam no Japão, às vezes, como escravos – estavam finalmente livres.

Minorias cuja luta Suzu nunca enxergou, muito embora estivessem, como os navios de guerra, bem na frente de seus olhos.

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Poucos diretores sabem falar de guerra e sofrimento sem mostrar uma gota de sangue. Katabuchi consegue, por uma hora e quarenta minutos. É uma pena, no entanto, que seu filme derrape no final.

Quando a bomba finalmente cai, o anime cede à pornografia do sofrimento, com direito a cadáveres mutilados e infestados por vermes. É uma sequência gratuita e batida, que não acrescenta nada à mensagem da história.

Talvez seja enganador falar de Kono Sekai no Katasumi ni como um “filme de Hiroshima”.  Durante a maior parte do longa, a cidade está sempre “do outro lado da montanha”: tanto geográfica quanto narrativamente.

Ao “subir as cortinas” e mostrar o gore da explosão, Katabuchi apenas diminui o papel de sua heroína. Diante da hecatombe nuclear, ela passa, de protagonista, a mera nota de rodapé.

Suzu, que tanto batalhou para sorrir, merecia melhor.

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Afinal, qual é a graça de séries sobre comida? http://www.finisgeekis.com/2017/07/25/afinal-qual-e-a-graca-de-series-sobre-comida/ http://www.finisgeekis.com/2017/07/25/afinal-qual-e-a-graca-de-series-sobre-comida/#comments Tue, 25 Jul 2017 13:10:08 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17563

Um jovem e um velho estão sentados num balcão. A comida que pediram, duas tigelas de lamen, acaba de chegar.

Sensei” pergunta o jovem “O que se come primeiro? O caldo ou o macarrão? ”

“Primeiro” responde o velho “Nós observamos. Pegue o hashi e acaricie a superfície. Admire o brilho da gordura, as raízes de menma, a alga que afunda lentamente. Concentre-se nas três fatias de tyashu. E então…”

“Nós comemos?”

“Não. Nós pedimos desculpas ao porco”. Ele se aproxima tyashu e sussurra “Nós nos veremos em breve”.

Poderia ser um esquete de Isekai Shokudou, o anime gastronômico da temporada. Mas é uma cena de Tampopo, filme de 1985 e um dos clássicos do cinema japonês.

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Começo mencionando essa cena porque, se não a tivesse assistido, não entenderia nada da última tendência que venho observando em séries japonesas.

Falo, aqui, de séries sobre comida. Não sobre culinária, ingredientes exóticos ou duelos gastronômicos com pratos que deixam as pessoas nuas. Sobre o simples ato de comer.

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Afinal, qual seria o ponto de um anime que se resume a personagens de RPG curtindo a hora do almoço? Em especial quando os pratos não são maravilhas da haute cuisine, mas o PF nosso de cada dia?

Onde termina a ficção e começa o food porn?

Aparentemente, na audiência. Dois desses mangás, afinal, não só foram adaptados ao live action, como ganharam espaço na grade da Netflix.

Assistir aos outros comendo parece ser tão popular na Terra do Sol Nascente que foi o entretenimento que escolherem para exportar ao mundo.

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Gourmet mangá

Pode parecer sarcasmo, mas não é. No Japão, mangás sobre comida são tão bem estabelecidos que já conquistaram um gênero próprio

Não falo de Shokugeki no Souma, que usa a gastronomia como mera roupagem para um shounen de esporte. Nem de tantos slice of life cujas personagens cozinham ou trabalham em padarias.

Chamados de gourmet manga ou ryori manga, são histórias cujo foco não está no ato de cozinhar, mas no simples prazer da refeição.

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Não existe ação ou reviravoltas – em alguns casos, nem mesmo um enredo. Kodoku no Gourmet, referência do gênero, nos traz a “emocionante” história de um funcionário de escritório desbravando o almoço de cada dia.

Alguns, nem mesmo isso. Ekiben Hitoritabique o ANN desenterrou do arco da velha, é uma propaganda gratuita para bentôs de estação de trem. Que se estendeu por 15 tankobons

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Isso sim é publicidade

Como que um gênero como esse pode fazer tanto sucesso? E como essas histórias, muitas vezes, acabam sendo legitimamente cativantes?

É o que eu me aventurei a descobrir.

Tóquio, a capital da gastronomia

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O Japão pode ser conhecido como a “terra do peixe cru”, mas sua culinária há muito já superou o bairrismo. Apenas Tóquio possui 304 estrelas do Guia Michelin, a publicação mais respeitada do ramo.

Isso é mais que o dobro de Paris (134) e o triplo de Nova York (99). Outras grandes cidades japonesas, como Kyoto e Osaka, também estão no top 10.

Se entrarmos na cozinha do dia a dia, não há sequer comparação. Em São Paulo, existem cerca de 111 restaurantes para cada 100 mil habitantes. Em Tóquio, são 1122, dez vezes mais.

Shokugeki no Souma não mentiu. O Japão é, sem sombra de dúvida, a capital mundial da gastronomia.

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É de se esperar que um país com essa aptidão fosse projetar seu entusiasmo na cultura.

De fato, como lembra a revista Hashitag, os gourmet mangás se tornaram um apêndice importante da indústria gastronômica nipônica. A influência das séries é tamanha que chegou a influenciar o mercado culinário, ditando tendências e popularizando ingredientes.

Não é de se espantar. Afinal de contas, não há nada melhor para atiçar o apetite do que ver um bife marmorizado na nossa leitura de cada dia.

Porém, isso não responde tudo.

A “Década Perdida”

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Os gourmet mangás, afinal de contas, não acompanham qualquer tipo de comida – nem qualquer tipo de comedor. Ao contrário do que o título indica, seus “heróis” não estão interessados em gastronomia fina, mas na comida do dia-a-dia.

Para Jason Thompson do ANN, isso tem a ver com a chamada Década Perdida, um período de recessão econômica que sacudiu o Japão nos anos 1990.

Em 1991, o estouro de uma bolha imobiliária encerrou o período de vagas gordas que o país curtiu no pós-guerra. Em 1995, com o Terremoto de Kobe e o Atentado ao Metrô de Tóquio, pairou sobre o Japão uma nuvem ainda mais densa de pessimismo, com forte influência para a cultura e os animes.

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Os gourmet mangás, para Thompson, foram um fruto dessa nuvem. Eles são uma ode ao “copo meio cheio”: um lembrete às pessoas de que, por mais duro que seja abandonar os luxos, é possível encontrar felicidades nas pequenas coisas.

Nobushi no Gourmet, lançado internacionalmente como Samurai Gourmet, encapsula perfeitamente essa mentalidade. Sua trama acompanha um ex-funcionário que descobre que sua vida não faz sentido.

Aos 60 anos, forçado a se aposentar, constata que seu mundo era o escritório. Impossibilitado de trabalhar, sente-se como um samurai sem mestre, à espera do seppuku.

Felizmente, é na macheza do próprio ronin que ele encontra sua redenção. Espécie de Walter White nipônico e bom caráter, o protagonista emula a fanfarronice do guerreiro para voltar a se respeitar como homem: comendo sem pressa, bebendo à vontade, repetindo sem remorso.

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A mensagem não poderia ser mais clara. Samurai Gourmet é um retrato perfeito da ética de trabalho japonesa – sintoma de um país, como diz meu amigo Fábio do Anime21, em que é esperado que pessoas vivam para trabalhar, e não trabalhem para viver.

Mas seria apenas isso? Eu acho que não.

A gula é eterna

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Por mais que goste do argumento de Thompson, ele não me convence 100%.

Ele não explica Tampopo, lançado em 1985, muito antes da crise, quando o Japão ainda era visto como a próxima nova potência. Nem Oishinbo, primeiro grande sucesso do gênero, em publicação desde 1983. De fato, como bem mostra a Hashitag, os gourmet mangás remontam aos anos 1970.

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Oshinbo, primeiro gourmet mangá de sucesso

Tampopo, aliás, talvez traga uma pista para o mistério.

O filme é uma série de esquetes cômicas, com níveis exponenciais de absurdo, sobre um caminhoneiro que busca salvar um restaurante decadente.

Há uma professora de etiqueta, que tenta a duras custas ensinar seus alunos a comer macarrão em silêncio (no Japão, fazer barulho é sinal de educação). Há um mendigo que pede esmola na rua dos restaurantes chiques, e de tanto beber restos de vinho que os clientes jogam fora, tornou-se um sommelier nato. Há uma mãe moribunda que, no lugar do último suspiro, faz um último yakimeshi para sua família.

 

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O que os esquetes têm em comum é um tributo à comida, e a seu papel central nas relações humanas.

É o espírito de Shinya Shokudou, talvez o ryouri mangá que melhor se internacionalizou. A série foca no dono de um boteco da madrugada e suas relações com seus clientes: yakuza, prostitutas, atores pornôs, excêntricos em geral.

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Seus comensais podem não ter chifres ou escamas como os seres de Isekai Shokudou, mas também são de outro mundo, à sua própria maneira. Estas são pessoas que, por pressões sociais ou decisões de vida, acabaram relegadas à marginalidade, condenadas à noite.

Tal como Aletta, a garçonete-demônio de Isekai, eles são párias, salvos do ostracismo pela beleza da gastronomia.

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Na vida cotidiana, comer se tornou uma obrigação. Engolimos tudo o mais rápido possível. Fast food e congelados são o combustível que nos mantém vivos.

Não estou julgando, só citando os fatos. Quem, afinal, tem tempo para filetar um peixe?

Opõe-se a esse paradigma os ativistas do slow food. Inspirados pela culinária italiana e espanhola, pregam a refeição como um ritual, uma forma de agregar as pessoas e unir gerações.

É a criação que eu recebi da minha vó calabresa, e razão pela qual não abro mão de meus almoços com a família.

Os gourmet mangás parecem advogar uma terceira via. A refeição rápida, porém digna. A comida simples (e nem tão saudável), mas degustada com paixão. O ritual solitário.

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É uma mentalidade, quiçá, tão japonesa quanto uma tigela de lamen. Porém, que toca em algo tão elementar que cumpre a função última da arte: transformar o específico em universal.

Não é preciso saber o que é um naruto ou um tonkatsu para simpatizar com um sorriso de saciedade. Cardápios vêm e vão; a gula é eterna.

 

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Uma aventura no Japão #10: quem tem medo do teatro noh? http://www.finisgeekis.com/2017/07/17/uma-aventura-no-japao-10-quem-tem-medo-do-teatro-noh/ http://www.finisgeekis.com/2017/07/17/uma-aventura-no-japao-10-quem-tem-medo-do-teatro-noh/#comments Mon, 17 Jul 2017 21:41:42 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17461 Você já deve­ ter ouvido falar do noh, o mais famoso e pomposo dos teatros japoneses.

Você já deve ter ouvido falar do noh, aquela ópera esquisita em que homenzarrões interpretam papéis femininos.

Você já deve ter ouvido falar do noh, cujas máscaras parecem saídas de um filme de terror.

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Como amante da cultura japonesa, eu já havia escutado as três coisas. O teatro noh, de fato, parece ter uma reputação ambivalente. Por um lado, é uma das artes mais luxuosas e tradicionais do Japão. Por outro, é vista como uma coisa meio démodé – quanto não completamente anacrônica.

Como cosplayer, tenho um enorme fascínio por máscaras. As de noh em particular, graças à escritora Fumiko Enchi, que escreveu um romance perturbador sobre o tema. Assim, não pude de deixar de conferir como é, realmente, o famigerado teatro.

Mas afinal, o que é o noh?

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Noh é um tipo de dramaturgia que envolve canto, dança e uso de máscaras. Ao contrário do kabuki, que preza pela extravagância, ou o rakugo, que dialoga com a experiência popular, o noh é extremamente codificado, tradicional e sisudo.

Isso não quer dizer que tenha se tornado apenas uma curiosidade de museu. Peças de noh geralmente falam de mortais assombrados por fantasmas, demônios ou deuses. Se você já se deparou com o famoso “terror japonês” (ou suas muitas paródias na cultura pop) saiba que ele já teve um pé no teatro noh.

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Paródia de assombração na série Midnight Diner do Netflix.

Embora grite “Nihon!” por todos os poros, o noh teve uma influência gigantesca na arte ocidental. Dramaturgos como Samuel Beckett, W.B. Yeats e Bertold Brecht basearam-se nele para escrever algumas de suas peças mais famosas.

Como o anime também é uma arte de performance, é óbvio que também paga homenagem ao gênero. Não só indiretamente, em muitos de seus roteiros, mas, às vezes, também diretamente.

Em Millenium Actress, por exemplo, a anciã que persegue a protagonista é ninguém menos que a Ryo no Onna: o fantasma de uma mulher destruída pelo sofrimento do amor.

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Na verdade, Ryo no Onna não é extaamente uma personagem, e sim uma máscara. Pode parecer estranho, mas no teatro noh as máscaras, de certa forma, têm vida própria.

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Embora haja muitas peças (e outras tanto têm sido escritas na modernidade), existe um número limitado de máscaras. Todos os papéis do noh se encaixam nestas categorias, que denotam não apenas aparência física, mas o próprio caráter da personagem.

Não são os papéis que vestem as máscaras; são as máscaras que vestem os papéis.

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Eu não precisei saber mais nada para decidir que o teatro noh era uma experiência que eu precisava viver. O que eu encontrei foi uma aventura tão sobrenatural quanto as histórias interpretadas no palco.

Ao longo desses artigos, eu narrei a vocês vários de meus passeios pelo Japão. Alguns mais turísticos, outros nem tanto. Nenhum deles, porém, foi mais exclusivo de japoneses do que esse.

O choque começou ao chegar no teatro. Nossa performance foi no Teatro Nacional de Noh em Tóquio, um prédio deslumbrante e moderno, verdadeira Sala São Paulo da dramaturgia nipônica.

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A pompa se refletia na indumentária. Foi o primeiro (e único) lugar no Japão em que encontrei japoneses (e não turistas) socialmente vestidos com kimonos.

Foi também o único lugar em que até mesmo o preço de algumas coisas na lojinha estava escrito em kanji (!). Por mais que a Vivian tenha tentado comprar o libretto, o staff simplesmente se recusou a nos vender: deu-nos apenas uma xérox em inglês do roteiro.

A diferença não é apenas estética. O libretto possui todos os diálogos da peça. Isso é importante porque o teatro noh, além de ser cantado em uma espécie de vibrato (como a ópera) é narrado em japonês antigo, que mesmo os nihonjin atuais não conseguem entender.

Felizmente, isso não significa que estrangeiros não podem curtir também. O Teatro Nacional de Noh possui telas na frente de cada assento, com legendas em japonês e inglês.

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O que rola no palco

O Noh é frequentemente chamado de “ópera japonesa”, mas essa comparação é enganosa. Ao contrário da arte de Wagner, peças de noh costumam ser curtas. Tão curtas, na verdade, que geralmente são acompanhadas de peças menores.

Para destilar o clima sisudo, as histórias são intercaladas com um teatro cômico, chamado de kyogen. O espírito é o mesmo do rakugo: uma espécie de “sitcom” da era Edo, descontraída e irreverente.

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A comparação não é gratuita: as duas artes se comunicam, ou passaram a se comunicar. Nos últimos anos, certas peças de rakugo foram adaptadas ao kyogen, encenadas por um grupo de atores.

Em Showa Genroku Rakugo Shinjuu, o escritor Eisuke Higuchi sugere salvar o rakugo mudando-o à imagem da modernidade. Quão surpreso ele ficaria ao saber que a comédia encontrou outro caminho para sobreviver: mudando os outros à sua própria imagem.

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Contudo, as peças noh são outro universo. Não existem cortinas: observamos os atores entrando e saindo do palco. Este é ligado aos bastidores por um longo corredor diagonal, que eles percorrem bem devagar para não estragar os figurinos. Uma mera montagem de cena pode levar vários minutos.

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Não existe, também, muita ação. Boa parte da história é narrada, seja por um protagonista, seja por um coro. As falas dizem respeito a questões existenciais, e os mesmos pontos são repetidos várias vezes.

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Jiutai, coro de uma peça Noh, ao fundo com kimonos pretos.

Pode parecer uma ladainha, mas eu adorei. Aos meus olhos enviesados de ocidental, o Noh me pareceu um teatro grego.

Tal como nas peças de Sófocles e Eurípides, existe um coro que ora situa a ação, ora nos narra os pensamentos das personagens. Tal como na Grécia, o noh costumava a ser interpretado só por homens, de onde as máscaras femininas. Até mesmo o kyogen lembra as peças de sátiros, interlúdios cômicos montados entre as tragédias.

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Performance de Orestéia, obra-prima de Ésquilo

Curiosamente, não acho que minha opinião seja popular mesmo no Japão. Na apresentação que assistimos, uma parte significativa do público dormiu durante a peça. Se pessoas que vestem kimono e se demovem ao melhor teatro de Tóquio não conseguem se manter acordadas no espetáculo, imagine o cidadão médio.

O noh, de fato, não é para todos. É, no entanto, uma arte inesquecível, que eu amaria experimentar de novo.

Seus fantasmas amargurados ficaram na minha cabeça – e não acho que sairão tão cedo.

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Uma aventura no Japão #9: Sanja Matsuri: o festival dos yakuza http://www.finisgeekis.com/2017/07/10/uma-aventura-no-japao-9-sanja-matsuri-o-festival-dos-yakuza/ http://www.finisgeekis.com/2017/07/10/uma-aventura-no-japao-9-sanja-matsuri-o-festival-dos-yakuza/#comments Mon, 10 Jul 2017 22:05:08 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17397 Cidades não são apenas lugares. São também comunidades de pessoas, teias de rotinas, confusão. A “selva de pedra” não é feita só de concreto. É orgânica, como um ecossistema.

Em Tóquio, a selva de pedra por excelência, isso fica evidente em seus festivais. E nenhum festival sacode mais a capital japonesa – no sentido literal da palavra – do que o Sanja Matsuri.

Tive a oportunidade de frequentar vários festivais na vida. Com a exceção da gastronomia, creio que poucas ocasiões são melhores para entender uma cidade quando está “desarmada”, pronta para a descontração.

Festivais, contudo, muitas vezes pecam pela teatralidade. Toda festa é uma interrupção. Porém, se ela for brusca demais, sentimo-nos apenas como espectadores, esperando o desfile passar.

O Sanja Matsuri é o maior festival de Tóquio, mas isto diz pouco. É, também, um daqueles raros eventos para os quais não existem transeuntes. Todos participam, seja em um palanque, seja no burburinho das calçadas.

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A festa se inicia no templo de Asakusa, no bairro de mesmo nome de Tóquio. Santuários portáteis chamados mikoshi são desfilados ao redor do bairro.

Talvez eu tenha me expressado mal. Por “desfilados”, não estou pensando nos bonecos do Carnaval de Olinda. Os mikoshi são violentamente sacudidos de um lado para o outro, com uma fúria que o fará pensar que entrou em uma partida da seleção neozelandesa de rúgbi por engano.

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Não é preciso muito para entender que, a despeito das tintas budistas, o Sanja Matsuri parece mais um carnaval do que uma procissão religiosa. Os mikoshis são carregados por “times” específicos, uniformizados com seus próprios kimonos, que gritam e agitam os santuários como se em uma competição de gogó.

O evento é tão absurdo e hilário que serviu de inspiração para o hit do humor nonsense nos animes, Sayonara Zetsubou Sensei. No episódio 7 da primeira temporada, os alunos do Prof. Itoshiki decidem ir a um festival, onde são jogados sobre mikoshis e “homenageados” com o tratamento de Asakusa.

Se isso tudo ainda lhe parece pacato, talvez seja bom especificar que, por “kimono”, não estou me referindo ao traje formal japonês, mas ao happi, uma sobrecapa leve.

E o resto, você pergunta? Tradicionalmente, apenas roupa de baixo.

Nem todo mundo segue o costume à risca, mas esteja avisado: você verá sua cota de bundas nipônicas, não importa quanto tempo fique no festival.

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Não diga que eu não avisei

Curiosamente, a “pouca roupa” de alguns participantes acabou por se tornar uma atração em si. Isto porque o Sanja Matsuri é o festival favorito dos yakuza, que aproveitam a ocasião para ostentar suas tatuagens.

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A presença da máfia já se tornou tão famosa que se reflete até nos souvenirs. Andando pelas lojinhas do bairro, é possível encontrar até bonecas dos icônicos gângsters.

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Neto de calabreses que sou, confesso que tive medo de interagir com os yakuza. No entanto, não havia falta de gaijins serelepes importunando mafiosos atrás de fotografias.

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Para além dos mikoshi e da companhia seleta, o Sanja Matsuri também é uma excelente oportunidade para se visitar o bairro de Asakusa (imperdível por uma série de razões, algumas das quais contarei em colunas vindouras).

A própria estrutura do festival estimula a exploração. Pequenos palcos estão dispostos ao longo das ruas, onde grupos se apresentam com dança e músicas tradicionais.

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Se você, como eu, é fã de Showa Genroku Rakugo Shinjuu, o bairro é uma atração em si. Isto porque Asakusa é o lar do famosíssimo Engei Hall, um dos quatro teatros de Tóquio a exibir rakugo com regularidade.

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Passeando pela rua, é possível conferir a escalação de apresentações, igualzinha à mostrada no prestigiado anime.

Ao ver aqueles rostos, pensei em todos os Sukerokus e Yakumos do Japão, insistindo para manter sua arte viva em pleno século XXI.

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O passeio, já aviso, é exaustivo. Mesmo sem sacudir o mikoshi, é quase certo que terminará o dia suado. Isto não significa que não seja possível parar para respirar. E que local melhor para a ocasião do que o ponto mais alto do Japão?

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A Tokyo Sky Tree, próxima de Asakusa, é a torre mais alta do Japão e segunda estrutura mais alta do mundo, atrás apenas do Burj Khalifa.  O monumento oferece uma vista sem paralelos da capital – e um bônus específico aos otakus.

No Japão, é comum que mirantes ofereçam exposições sobre a cultura pop, aproveitando seu excelente (e super impressionante) espaço. Nesse ano, a escolha foi óbvia. A Sky Tree celebrou a segunda temporada de Attack on Titan com uma exibição que incluiu figures em tamanho real e células de animação.

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Não fosse o bastante, ainda realizaram sessões interativas do anime. O curta, transmitido nas próprias janelas do mirante, retrata um ataque dos titãs à torre, e as manobras da Divisão de Exploração para proteger os visitantes.

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Novamente me expressei mal: embora o passeio seja uma quebra depois da euforia de Asakusa, está longe de ser um descanso. As filas da Sky Tree podem ser quilométricas, e seu mirante, em balbúrdia, rivaliza com a Torre Eiffel.

Contudo, se quiser pagar de “diferentão” e evitar o pior, vá de noite. Não só você desfrutará de uma vista fenomenal, como evitará as hordas de turistas que sobem na torre para ver o pôr do sol.

Tudo por uma boa causa. Afinal, não é sempre que vemos Mikasa e Levi em ação a 634 metros do chão.

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Uma aventura no Japão #8: finalmente Hiroshima http://www.finisgeekis.com/2017/07/07/uma-aventura-no-japao-8-finalmente-hiroshima/ http://www.finisgeekis.com/2017/07/07/uma-aventura-no-japao-8-finalmente-hiroshima/#comments Fri, 07 Jul 2017 20:41:23 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17360 Se você tivesse uma única oportunidade de ir ao Japão, que lugar que você não deixaria de visitar em hipótese alguma?

Para mim e para minha esposa, a resposta sempre foi óbvia: Hiroshima.

Existem lugares que todo historiador deve conhecer para fazer jus ao diploma. Existem lugares aos quais devemos o mundo moderno. Hiroshima está no topo de ambas as listas.

Como todos sabem, a cidade foi obliterada pela primeira bomba atômica já utilizada militarmente. O horror acelerou a rendição japonesa – e, no longo prazo, alimentou os pesadelos da Guerra Fria.

De minha parte, no entanto, confesso que tinha motivos ulteriores para visitar a cidade. Como já disse diversas vezes no blog, japoneses têm uma relação complicada com o seu passado.

Ninguém duvida que a bomba atômica é uma arma desumana, nem que o Japão pagou – com juros – pelo sofrimento que dispensou durante a Segunda Guerra. Ao mesmo tempo, poucos episódios históricos já foram tão contestados como a detonação que inaugurou o pós-guerra.

Teria a bomba sido uma crueldade imensurável? Ou apenas o último dominó em uma longa fila de violências que começou em 1937, com a 2ª Guerra Sino-Japonesa? Ou ainda antes, em 1922, com o Tratado Naval de Washington? É possível falar de uma tragédia humana em termos tão analíticos?

Decidi ir eu mesmo à Hiroshima para descobrir.

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Memorial da Paz em Hiroshima

Talvez o mais surpreendente em andar pelas ruas de cidade é imaginar que esta é a mesma metrópole destruída pela bomba mais famosa do mundo. Seus bairros não foram apenas reconstruídos: eles possuem uma identidade própria, uma vibe particular, atrações distintas, que valeriam uma visita independente de seu passado assombroso.

Algumas cidades, tocadas por grandes traumas, param no tempo. Hiroshima ressuscitou, no sentido quase orgânico da palavra. Seu okonomiyaki, o melhor do Japão, está de prova.

Isso não significa que haja uma falta de marcos lembrando o dia mais fatídico da história japonesa.

O edifício que mais chama a atenção é sem dúvida o Memorial da Paz, colosso em ruínas do que antes foi um centro de convenções da cidade. Localizado exatamente abaixo do hipocentro (ponto de detonação) ele absorveu o impacto da onda de choque, preservando sua forma original.

O Memorial encara um parque pontilhado de monumentos, pequenos ou imponentes, que dividem o seu fardo. Paradoxalmente, ao caminhar entre eles somos lembrados da principal razão que levou Hiroshima ao seu destino.

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Uma ponte pode não dizer muito, a não ser que você more no Japão dos anos 1940.

Isso porque Hiroshima não possui uma ponte, mas várias. A cidade é situada na foz de um rio. Sua área urbana está quase inteiramente disposta entre as ilhas, entrecortada por cursos d’água.

Durante a Segunda Guerra, isso fez com que fosse poupada dos ataques aéreos americanos. Bombas incendiárias de napalm, usadas para grande efeito em outras metrópoles japonesas, teriam pouco efeito em uma cidade em que nenhuma casa estava longe de um balde d’água.

A sorte de Hiroshima se provou mortal. Para potencializar o efeito surpresa, os Estados Unidos escolheram cidades não-bombardeadas para testar sua nova arma. Seus canais, outrora uma feliz coincidência, a colocaram no topo da lista de alvos potenciais.

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Mapa de Hiroshima, em que fica visível a foz do rio

Os jardins, contudo, são apenas um aquecimento antes do coração de qualquer visita: o imponente Museu da Paz. Se você leu meu artigo sobre o santuário Yasukuni e ficou apavorado com a apologia que prega ao fascismo, o centro de exibições é um antídoto quase perfeito.

Ao contrário do museu militar Yushukan, ele não esconde que o Japão se colocou na guerra por culpa própria, iniciando uma guerra de agressão contra a China. Em vez de justificar as políticas de Hirohito, ele foca no sofrimento humano: nas pessoas normais que foram pegas no fogo cruzado.

É uma mensagem poderosa, fácil de simpatizar. Para eu, que cresci ouvindo minha avó falar sobre os bombardeios aliados no sul da Itália, os testemunhos tinham um quê de pessoal.

Militantes fanáticos adoram falar no “lado certo da História”, mas a verdade é que, se a história tem mesmo um “lado”, só descobrimos qual é o nosso quando as ogivas começam a cair.

Ideologias vêm e vão, mas o sofrimento, tal como a arte, é atemporal.

O Museu da Paz, contudo, talvez tenha passado essa mensagem bem demais. De tanto insistir na excepcionalidade da bomba, ela parece quase alheia da guerra – e da época histórica – na qual foi concebida.

Hiroshima era sede de uma importante base militar japonesa. Foi isso, juntamente à geografia favorável, que a levou a ser escolhida para o bombardeio.

Sua exposição, entretanto, foca quase que exclusivamente nas crianças em idade escolar. A Segunda Guerra é narrada em cartazes, mas as imagens e artefatos são cacos (em alguns casos, melodramáticos) de infâncias perdidas.

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Brinquedo destruído na exposição do museu. Fonte

É como se a bomba deixasse de ser uma arma de guerra para se tornar algo mais: uma metáfora das vidas tolhidas no conflito, da geração de adultos que nunca existiu, pois foram obliterados ainda no berço.

Se digo que me incomodo com isso, não é porque acredito que os responsáveis devam ser “perdoados”. Pelo contrário, é para que possamos entender a verdadeira dimensão desse horror.

Hiroshima não se tornou notável pela contagem de corpos nem pelo sofrimento imediato – nisso, os bombardeios incendiários de Tóquio, dramatizados em O Túmulo dos Vagalumes, levam a coroa.

Era um sofrimento, acima de tudo, com que o Estado estava disposto a arcar. Sob seu regime totalitário, imperava o juízo de que todas as “vidas” pertenciam ao imperador – e poderiam ser “gastas”, sem parcimônia, para o esforço de guerra.

“Cem milhões de pessoas morrerão juntas”, foi o slogan fascista em voga em 1945. Se o Japão não pudesse vencer a guerra, ele resistiria até o último suspiro de seu último cidadão. O museu Yushukan celebra esse espírito até hoje.

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Hideki Tojo, primeiro ministro fascista do Japão, no mangá Showa de Shigeru Mizuki

O Museu da Paz enfatiza a perda de vida humana, mas não explica que os anos 1940 foram um período em que o valor de uma “vida” se tornou perigosamente pequeno.

Sem essa explicação, não é possível entender como o que mundo virou de pernas para o ar em 1937-39. Nem como uma tragédia como essa pôde ser cogitada – e levada a cabo.

Contudo, é mesmo possível esperar diferente? Muito provavelmente não.

Nós historiadores somos pagos para racionalizar fenômenos, dissecá-los em padrões sistêmicos. Para aqueles como eu que usam métodos das ciências sociais, literalmente reduzir a realidade a uma equação.

Nisso, muitas vezes esquecemos que certos episódios têm uma voz própria. O Museu da Paz pode não fazer jus à complexidade causal daquele dia fatídico. Não explica como o mundo eclodiu em guerra, nem o paradoxo da “paz” que se seguiu (garantida, até os dias de hoje, pelas próprias bombas atômicas que condena).

Ele mostra, não obstante, o preço que foi pago para assegurar a calmaria que hoje damos por natural. Isto, por si só, é uma mensagem que merece ser contada.

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Uma aventura no Japão #6: os ninjas de verdade não eram como você imagina http://www.finisgeekis.com/2017/06/26/uma-aventura-no-japao-6-os-ninjas-de-verdade-nao-eram-como-voce-imagina/ http://www.finisgeekis.com/2017/06/26/uma-aventura-no-japao-6-os-ninjas-de-verdade-nao-eram-como-voce-imagina/#comments Mon, 26 Jun 2017 22:34:48 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17223 Em toda viagem, há muito a se ganhar saindo das rotas mais óbvias. Em qualquer momento da vida, há ainda mais a se lucrar abandonando pré-concepções simplórias.

É isso o que me levou, nos meus dias de Japão, a explorar a obscura cidade de Iga.

Seu nome pode não ser tão conhecido como Nara, Ise ou Himeji, grandes sítios históricos no país. Mesmo assim, ela desempenhou um papel importantíssimo – e misterioso – no passado do Japão.

Iga é o berço do iga-ryu ninjutsu e sede da mais famosa escola de ninjas da Sengoku Jidai. É o lar de ninguém menos que Hattori Hanzo, guarda-costas do shogun Tokugawa Ieyasu, uma das figuras mais celebradas da história japonesa.

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Hanzo no Mon, mangá de Koike e Kojima sobre Hattori Hanzo

Como historiador, confesso que o passeio me deixava apreensivo. A “história” das artes marciais, tal como contada por seus praticantes, geralmente não passa de invencionices. Com um grupo tão romantizado como os ninjas, estava quase certo de que ouviria baboseiras.

A surpresa que eu tive, porém, não poderia ter sido melhor.

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Castelo de Ueno em Iga

Já aviso de início: Iga não é um passeio de estrangeiros. Em nossa viagem, Vivian e eu fomos os únicos ocidentais entre os turistas que encontramos.

O motivo se torna claro assim que se começa a viagem. Embora seja (relativamente) perto de Kyoto, Iga é uma cidadela perdida entre montanhas e terraços com arrozais. Para alcançá-la, é preciso tomar pelo menos dois trens locais.

A dificuldade faz sentido, se pensarmos nos antigos habitantes da cidade. Uma escola de ninja não seria lá tão boa – nem duraria tanto – se fosse de fácil acesso a qualquer um.

Mesmo assim, não é difícil encontrá-la. Assim que você chegar em uma das estações interioranas que levam à ela, é provável que se depare com trens como esse:

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Se o traço parece familiar, não é por acaso. Os trens foram pintados por ninguém menos que Leiji Matsumoto, homenageado por uma estátua de Tetsuro e Maetel, personagens de Galaxy Express 999, na estação da cidade.

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Os trens são apenas um aperitivo, uma das muitas graças que a cidade arranjou para celebrar seu passado. Até mesmo o guard rail na sua praça principal está decorado com shurikens.

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O apelo dos famosos assassinos é tão grande que influenciou até suas atrações mais “sérias”.

Entre os japoneses, Iga é conhecida por ser o berço de Matsuo Basho, o mais famoso autor de haicais do país. Hoje, mesmo ele anda ombro a ombro (literalmente) com os lendários espiões do passado.

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A pena e a shuriken

Contrário às minhas expectativas, o Museu Ninja traz uma imagem bastante realista (e surpreendente) dos míticos assassinos vestidos de preto.

Para começar, porque não eram, de fato, “assassinos”. Embora ninjas tenham sido contratados para assassinar pessoas, sua principal função era como batedores e sabotadores. Muitas de suas “armas” serviam, na verdade, outros propósitos.

As garras de ferro nas mãos? Usadas para escalar muralhas. As famosas kunais, que Naruto e afins tornaram famosas? Eram brocas para furar paredes, permitindo que o ninja espionasse na calada da noite.

Nem, tampouco, usavam preto. A imagem do guerreiro vestindo um pijama escuro é coisa da ficção. Os verdadeiros ninjas andavam disfarçados, geralmente de camponeses, o que permitia que carregassem certas armas improvisadas sem atrair suspeita.

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Kama, pequena foice usada como arma pelos ninjas

Talvez o maior “mito” que o museu desbanca, no entanto, é a ideia de que o “ninjutsu” foi uma grande arte marcial organizada, como o karatê ou o judô. Como a exibição deixa bem claro, ninjas eram uma gama de profissionais com as mais diversas especialidades.

Suas perícias iam desde técnicas budistas de meditação – para baixar a frequência cardíaca – ao manejo de pólvora. Não apenas bombas de fumaça ou flechas explosivas: ninjas foram um dos principais disseminadores das armas de fogo no Japão, tanto mosquetes quanto artilharia.

Sim, artilharia. Ninjas tinham menos a ver com o Jiraya do que com engenheiros de cerco. No acervo de Iga, há exemplos de bombardas – canhões de madeira que podiam ser facilmente construídos, levados nas costas e abandonados no caso de uma retirada.

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Museu Ninja de Iga. Note a bombarda no expositor esquerdo. Fonte

Se você cresceu assistindo a ninjas nos animes, talvez sinta que eu esteja destruindo sua infância. Iga, contudo, não passa essa impressão. Mesmo “mundanos”, os ninjas do mundo real são fascinantes a ponto de nos deixar boquiabertos.

Ao lado do museu, existe a “casa dos ninjas”, uma residência em que espiões se encontravam para suas missões.

Por fora, parece uma típica fazenda japonesa. Por dentro, possui portas falsas, rotas de fuga escondidas, compartimentos secretos para armas, acionados com toques especiais. Todo tipo de artifício para lidar com possíveis invasores.

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O tour é infelizmente apenas em japonês, mas os apetrechos dispensam explicação. É também o caso do show ninja,  a mais popular atração da cidade.

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Realizado por artistas marciais, é uma demonstração de vários tipos de armas ninjas, de flautas que atiram dardos a flechas sibilantes usadas para distrair exércitos.

Se estiver inspirado, há também a competição de arremesso de shuriken, em que você também pode experimentar a mais icônica arma japonesa depois da katana.

ninja shuriken

De minha parte, dispensei o campeonato. De alguma forma, os ninjas “pés-no-chão” do museu, disfarçados de fazendeiros, usando kunais para abrir buracos me despertaram um fascínio maior que os guerreiros míticos da cultura pop.

Esses ninjas não eram mestres das sombras, e sim espiões, sabotadores, engenheiros de cerco.

Profissões que existiram em quase todas as culturas, mas que o Japão – para variar  -transformou em um ícone global.

Uma aventura no Japão volta na próxima segunda. Fique de olho!

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Uma aventura no Japão #5: o tofu e o sake que você nunca conheceu http://www.finisgeekis.com/2017/06/23/uma-aventura-no-japao-5-o-tofu-e-o-sake-que-voce-nunca-conheceu/ http://www.finisgeekis.com/2017/06/23/uma-aventura-no-japao-5-o-tofu-e-o-sake-que-voce-nunca-conheceu/#respond Fri, 23 Jun 2017 21:49:30 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17167 Na minha última coluna, eu trouxe a vocês algumas das atrações mais badaladas (e zicadas) da antiga capital japonesa.

Espero que com isso eu não tenha passado a impressão errada. Kyoto é uma cidade como poucas outras no mundo. Com um pouquinho de esforço – e uma mente aberta – é possível sair do óbvio (e da sobriedade) com muito gosto.

Fushimi é conhecido pelo seu santuário, a atração mais batida – e absurdamente lotada – de todo o Japão. Porém, se você estiver disposto a olhar fora da caixa, verá que o distrito oferece uma senhora imersão em cultura japonesa.

O melhor jeito de começar a aventura é com um passeio de barco. Os jikkokubune são antigos transportes de sake que hoje transportam passageiros, navegando por vielas que parecem a Little Venice em Londres, ou os canais de Amsterdã.

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Digo aventura sem aspas: o passeio é completamente em japonês. Não espere encontrar muitos gaijin, mas também não se assuste. Um onegai shimasu ali e um arigatou gozaimasu acolá dão conta de muita coisa. E você não precisará de um guia para curtir o melhor que a viagem tem a oferecer.

Fushimi é famoso por ser o lugar onde Ryoma Sakamoto, um dos heróis da modernização japonesa, foi assassinado por capangas do shogun. Margeando seus canais, é possível ver uma estátua do ativista, assim como o ryokan Teradata, onde ele foi assassinado.

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Como os jikkokubune já sugerem, no entanto, a estrela do distrito é o sake. Fushimi é o lar de vários produtores do icônico vinho de arroz, incluindo a Gekkeikan, que hospeda um belo museu.

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Barris de sake no museu da Gekkeikan

Eu e a Vivian somos formados como sommeliers, então sempre fazemos questão de visitar fábricas de bebida mundo afora. Como é de praxe em outros museus, o da Gekkeikan oferece uma degustação de alguns sakes da marca ao fim da visita.

Sake não é uma bebida muito badalada no Brasil. Em parte, porque as marcas mais populares no comércio são bastante ruins. Em parte, também, porque entendê-la é uma tarefa incrivelmente complexa.

Mesmo para mim, acostumado a decorar terroirs da França, o líquido é um grande mistério. Não ajuda o fato dos rótulos serem escritos apenas em kanji – em muitos casos, a mão.

Como leigo, no entanto, posso dizer que gostei do que bebi. O Ginjoshu é um sake mais adocicado, enquanto que o Tama no Izumi Daiginjo é bem seco. O museu também serve “vinho” de ameixa, um fermentado japonês estupidamente doce que parece uma ume (ameixa de onigiri) reimaginada como bebida de festa junina.

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Bebidas oferecidas na degustação. Fonte

Se você não bebe, outra boa maneira de sair do óbvio é procurar restaurantes especiais, fora do eixo turístico. E não falo do mercado de peixes, nem de franquias gigantes como o Sushi Zanmai.

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É o caso do Tousuiro, especializado no ingrediente mais subestimado da culinária japonesa: o tofu.

Não, não faça careta. Se você pensa no tofu como apenas aquele “queijo” gelatinoso feito de soja, é porque nunca o experimentou em seu país de origem.

O Tousuiro oferece vários menus degustação com séries de pratos cuja estrela é o dito cujo. São tofus preparados de todas as formas imagináveis: cru, cozido no vapor, em blocos rígidos, em pastas, fritos como polenta, grelhados e com todo o tipo de acompanhamento.

Se te parecer exótico demais, uma alternativa bem romântica (fica a dica, namorados) é a famosa culinária kaiseki.

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Kaiseki, originalmente, era uma pequena refeição preparada por monges budistas. Hoje em dia, virou o nome de menus-degustação que servem vários pequeninos pratos (em alguns casos, mais de quinze).

Esses restaurantes podem ser encontrados por todo o Japão, mas em Kyoto parecem brotar em toda parte. Reserve uma noite em um desses lugares e você terá uma noite na cidade para nunca mais esquecer: longe das hordas de turistas, servido por garçonetes de kimono e comendo uma das melhores comidas do Japão.

karyo kaiseki 2

karyo kaiseki

Só não se esqueça de reservar – o que, já aviso, não é tão fácil quanto parece. Restaurantes japoneses não costumam fazer reservas pela internet. Os mais tradicionais nem possuem site.

Para garantir um lugar, é preciso ligar – de um endereço japonês, ainda por cima! Isso significa que, muito embora alguns dos endereços sejam bastante procurados, não é sempre possível reservar com antecedência.

Mas não se preocupe: basta pedir para a recepcionista de seu hotel para que faça a reserva para vocês. Não tenha vergonha, elas estão acostumadas.

Os restaurantes kaiseki podem ser bastante salgados (com o perdão do trocadilho). Entretanto, lembre-se que o Japão possui uma excelente comida de rua. Pagando de 500¥ a 1000¥ por uma refeição ao longo da semana, é fácil economizar para um jantar super especial.

Acredite em mim, vale a pena. Aquele sashimi de baigai não reaparecerá na sua frente tão cedo.

Uma Aventura no Japão continua segunda feira. Fique de olho!

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Uma aventura no Japão #4: a Kyoto que os guias não mostram http://www.finisgeekis.com/2017/06/19/uma-aventura-no-japao-4-a-kyoto-que-os-guias-nao-mostram/ http://www.finisgeekis.com/2017/06/19/uma-aventura-no-japao-4-a-kyoto-que-os-guias-nao-mostram/#respond Mon, 19 Jun 2017 20:53:00 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17088 Ah, Kyoto! Patrimônio da humanidade. Paris do Oriente!

Se você, como eu, é apaixonado pelo Japão, já teve ter ouvido que sua antiga capital é o lugar para se visitar. Se Tóquio é o templo da modernidade, Kyoto é a metrópole da tradição.

Isso tudo é verdade, mas não necessariamente da forma como você imagina. Ao visitar a cidade, percebi que ela é realmente a “Paris do Oriente” – para o bem e também para o mal.

A primeira impressão é a que fica. Para Kyoto, no entanto, isso pode ser problemático. Ao chegar na cidade, é muito provável que você se depare com uma cena como essa:

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Todo mundo sabe que o kimono é a roupa típica do Japão. Mesmo assim, é um traje cerimonial, usado apenas em ocasiões solenes, como casamentos ou festivais.

Não parece ser o caso em Kyoto. Na antiga capital nipônica, não é preciso sair da estação para ser soterrado por multidões inteiras desfilando seus obis.

Para um gaijin recém-saído de Tóquio, a impressão é que o Shinkansen é, na verdade, uma máquina do tempo. De uma metrópole histérica povoada por maids e homens de terno, chegamos a uma cidade que parece saída do Período Muromachi.

O problema é que tudo mentira.

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Kyoto possui centenas de lojas de aluguel de kimono. As hordas de homens e mulheres vestidos a caráter são na verdade turistas (na sua maioria chineses) que pagaram para viver um “dia de japonês”.

Essas lojas existem por todo o Japão, mas em nenhum lugar são tão numerosas quanto em Kyoto. Não é difícil entender por quê: os destinos turísticos mais famosos do Japão se encontram na antiga capital imperial.

Pense em uma imagem tradicional do “Japão”, e é muito provável que ela seja de Kyoto. É o caso do santuário de Fushimi, onde milhões de turistas (na sua maioria chineses) se amontoam para tirar fotos com a sanha de quem pega o metrô de São Paulo no horário de pico.

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Queria tirar foto só do torii? Boa sorte

Ou o célebre Kinkakuji, o Templo do Pavilhão Dourado, que estampa 9 de cada 10 guias turísticos sobre o país.

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Maravilhoso, né? Seria melhor ainda se fosse o original.

Sim, você leu corretamente. O prédio dourado que serve de para-raios a estrangeiros de kimono é uma cópia. O original foi completamente destruído em 1950 por um noviço piromaníaco.

O episódio foi tão chocante – e bizarro – que serviu de inspiração ao romance O Templo do Pavilhão Dourado do grande escritor Yukio Mishima.

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Kinkakuji após o incêndio de 1950

O novo Kinkakuji ainda assim é muito bonito, e serve de fundo para aquela sua foto linda com o kimono.

Ou, caso a grana esteja curta, você pode em vez disso visitar o Kinkakuji do Brasil, uma réplica idêntica do monumento construído em Itapecerica da Serra.

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Meu sarcasmo pode ter passado a impressão errada, então é melhor que eu diga de pronto: Kyoto é uma cidade espetacular, um dos lugares mais emocionantes que já conheci.

A impressão não é só minha, mas também de Henry L. Stimson, que assim como eu passou sua lua de mel na cidade.

Quem é esse sujeito, você me pergunta? Apenas o secretário de guerra dos EUA durante a Segunda Guerra, que fez o possível e o impossível para que Kyoto não virasse alvo da bomba atômica.

Sim, Kyoto é uma cidade tão maravilhosa que escapou de um apocalipse nuclear. Da próxima vez que seu amigo de exatas disser que museus não servem para nada, esse é o exemplo que você precisa dar.

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O homem que salvou Kyoto

Infelizmente, como toda cidade histórica, Kyoto é hoje vítima de seu próprio sucesso. A invasão de estrangeiros torna o centro histórico um caos, e dá incentivo a toda sorte de “armadilhas de turista” feita para te fazer gastar dinheiro.

Em Gion, o antigo bairro das gueixas, restaurantes cobram pequenas fortunas por comidas que não necessariamente são lá aquelas coisas. Isso sem falar nas gueixas em si, que sofrem assédio frequente nas ruas.

Tive o desprazer de testemunhar um episódio do tipo durante a minha viagem, e o mal-estar ainda não me abandonou. Uma maiko (aprendiz de gueixa) tentou atravessar a rua e foi prontamente emboscada por uma turba de turistas, enfiando flashes e câmeras de iPads em seu rosto como se ela fosse um animal exótico.

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Não foi na minha viagem, mas não é difícil achar fotos do tipo.  Sério, não seja esse turista

Felizmente, nem todas as “armadilhas de turista” são ruins. Se estiver pensando em pernoitar em Kyoto, fique de olho nos ryokans. São pousadas típicas japonesas com quartos de tatame, com futons nos aposentos e buffets típicos de café da manhã.

Já fiz um post sobre comidas bizarras semana passada, então não entrarei nesse mérito agora. Mas vou dizer apenas uma coisa: se você nunca comeu arroz com flocos de bonito na primeira refeição do dia, você ainda não sabe o que é acordar.

Ryokans são muito cobiçados – e, por causa disso, podem ser bem caros. A boa notícia é que a demanda levou a vários empreendedores a abrir “réplicas” de ryokans, com todas as características dos originais, mas localizados em prédios novos.

Leitores do blog sabem que não é minha proposta fazer propaganda, mas seria omissão da minha parte não recomendar o lugar onde fiquei. O Lucky You, perto da estação Gojo do metrô, é simplesmente um mimo.

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Lucky You em Kyoto, registrado por outro brasileiro.

Nada melhor para descansar depois de passar o dia sanduichado entre turistas chineses.

Nem todo turismo em Kyoto é farofa. Uma Aventura no Japão volta na sexta-feira, quando vou lhes contar o que fazer para sair da mesmice na cidade imperial.

 

 

 

 

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