Uma edição especial discutindo alguns clássicos obscuros da animação japonesa.
E coloque “obscuro” nisso. O Finisgeekis traz para você um longa tão antigo que talvez nem lhes pareça um anime: Horus, Filho do Sol.
O longa conta a história de Horus, um garoto que ajuda um gigante de pedra e é predestinado por ele a se tornar o Príncipe do Sol. Sabendo que sua vila foi destruída pelo demônio Grunwald, ele parte em busca de novos aliados – e de uma maneira de derrotar seu inimigo.
Suas andanças o levam para uma vila de pescadores assolada por um peixe gigante. Horus derrota o monstro e torna-se um herói para os aldeões. O peixe, contudo, era uma das crias de Grunwald, que logo trama outros ardis para destruir Horus e os pescadores.
Hilda, uma feiticeira sob seu jugo, chega na aldeia para causar confusão. Inicialmente se passando por uma aliada, ela faz de tudo colocar os aldeões contra Horus. Hilda, porém, também tem uma consciência. A duras custas (e após grande ajuda de Horus) ela consegue se libertar das garras do demônio. Juntos, eles levarão a luz a Grunwald, derrotando-o de uma vez por todas.
Apesar de ter sido feito no Japão, esse é um anime que se insere completamente na estética ocidental disseminada pela Disney. É óbvia, por exemplo, a influência de Malévola, vilã de A Bela Adormecida, na caracterização de Grunwald.
Devo dizer que esse anime me encanta por ainda outro motivo. Sou um grande fã das culturas finlandesa e sámi, povo nativo da Lapônia. Horus é ambientado em uma Fenoscania antiga que tem muito em comum as histórias desses povos. Alguns frames parecem tirados de uma tela de Akseli Gallen-Kallela, pintor finlandês que retratou varias dessas lendas.
Enfim, a bola está com vocês. Como lhes parece Horus, Príncipe do Sol, 50 anos depois de seu lançamento?
Mas como entretenimento hoje… Eu diria que Horus é um filme bem básico, um ótimo filme para passar para crianças (e bom, acho que essa era a ideia desde o começo), mas não realmente muito além disso. Pra ser sincero, eu meio que perdi o interesse na história do filme após o seu primeiro terço, e acabei demorando um pouquinho mais do que o necessário para terminá-lo.
Mas eu sei que eu não sou o público alvo do filme, então não realmente o culpo por isso. Só não sei se vou ter muito o que falar nessa nossa conversa
É como se estivéssemos vendo algum conto heroico do folclore finlandês, como o Vinicius levantou, ou talvez de algum povo do leste europeu. Mesmo o filme sendo antigo ele é muito interessante como marco do cinema, bem como esse tipo de história me agrada bastante, o típico herói mítico.
E concordo com o Fábio, a animação deixou a desejar em algumas cenas de ação, principalmente por culpa dos quadros es estáticos.
Mesmo que eu não consiga contextualizá-lo em um mito específico, ele é um compêndio de símbolos comuns a diversas culturas ao redor do mundo, é um compêndio desses elementos .
E curiosamente o título do filme em inglês é “O Pequeno Príncipe Nórdico”.
O antropólogo e mangaká Eiji Otsuka que diz que os topoi dos animes têm grande similaridade com o teatro bunraku. Horus insinua que uma boa parte da bagagem a que estamos acostumados pode ter vindo via Ocidente, junto com as técnicas de animação e os olhos grandes. Por mais conformes que eles sejam à ficção clássica nipônica.
Falando em tropes, devo dizer que esse foi um terceiro motivo que me levaram até Horus. O TV Tropes considera a Hilda uma das primeiras mahou shoujo “dark” da história dos animes.
Vocês sabem que eu amo esse tipo de personagem. Assistindo a Horus, não pude deixar de notar a semelhança.
De fato, a relação entre Hilda e Grunwald é quase idêntica à de Odile e Rothbart, o Cisne Negro e o Bruxo Corvo de O Lago dos Cisnes.
Na história, Rothbart condena uma rainha a virar um cisne branco. Sua maldição pode ser quebrada apenas pelo sacrifício de um príncipe. Quando ela finalmente encontra um trouxa amor da sua vida, o bruxo envia Odile para seduzi-lo em seu lugar.
A natureza da Odile varia de montagem a montagem. Em algumas versões, ela é a própria filha do Rothbart, disfarçada por um feitiço para parecer a rainha. Em outras, é um homunculo ou simulacro. Seja como for, a própria menção a uma Hilda maligna disputando espaço com uma benigna traz à toda o dualismo Odile/Odette (como se chama o Cisne Branco).
Enfim, o que vocês acham dessa personagem?
Vilões, por outro lado, tem o direito de aloprar. Eles exercitam todos os vícios humanos, mas todos nós carregamos esses vícios, em menor ou maior medida. Orgulho, inveja, raiva, ciúme. São essas as coisas que, em boa parte, nos fazem humanos. De onde nossa facilidade em nos reconhecer neles.
Mesmo o Grunwald reflete isso em certa medida. Ele tem limites. Ele se sente encurralado. Amedrontado. Vejam só esse rosto:
Esse não é um Senhor do Mal que morre lutando com uma risada maligna. Ele é “humano” – limitado e emocional – mesmo em sua maldade.
Essa é uma mudança peculiar, por motivos diferentes. Por um lado, há uma similaridade entre povos do Norte da Eurásia, sobretudo nessa pseudo-Idade do Ferro em que Horus se passa. Eu consigo ver traços de Hokkaido nessa Escandinávia fictícia e até pensei nisso enquanto assistia ao filme.
Por outro lado, foi uma decisão que relegou Horus a ser um simulacro oriental de uma história ocidental. Será que apostar num tema distintamente japonês não teria colocado o filme em outro patamar no cânone da animação? (E nem digo necessariamente um lugar melhor).
A vila do anime, assim, seria uma representação do idela comunal, egalitario e “socialista” defendido por Takahata e Cia.
Confesso que foi uma surpresa ler sobre esse sub-texto. Não acho que seja algo que acrescente muito ao filme (nem que seja facilmente identificável, considerando quão arquetípica a aldeia de Horus é). Claro, por se tratar de um anime lançado em 1968 eu não duvido de nada. Esse foi um ano de efervescência política no mundo todo.
Também acho irônico que Takahata tenha iniciado sua carreira militando por melhoras nas condições de trabalho e falecido em meio a denúncias de tratamento insalubre de seus funcionários. Já dizia o ditado: morra um herói ou viva o suficiente para se tornar um vilão.
Pode ser também que todas essas páginas anglófonas estejam bebendo da mesma fonte. Que pode ou não ser fidedigna.
Um abraço a todos então, e que venha a temporada de inverno!
Aos abalados, um consolo. Suzuki garante que o estúdio voltará, mas deve passar por uma reformulação. Será que as coisas voltarão a ser como antes? Ou teria a era dos filmes clássicos de Miyazaki e Takahata chegado, finalmente, ao seu fim?
Se há algo que podemos dizer sobre o estúdio é que ele nunca fez anime como os outros – daí, afinal, a razão de sua justa fama. Mas há algo peculiar – para não dizer esquisito – em seus três últimos filmes. Vidas ao Vento de Miyazaki, Kaguya Hime de Takahata e Quando Estava com Marnie de Hiromasa Yonebayashi são filmes sérios, de temas pesados e andamento lento. Muito lento.
Está certo que dizer que o Studio Ghibli fazia filmes “para criança” nunca agradou seus fãs, mas algo nesses últimos lançamentos diverge bem da fórmula do “filme família” – mesmo para os padrões Ghibli. Kaguya Hime arranca suspiros com uma estética inédita e uma discussão filosófica que não é para poucos. Vidas ao Vento é a versão anime do clássico A Montanha Mágica, do Prêmio Nobel Thomas Mann. E Marnie, com sua cara mundana e adolescentes em crise, ora se aproxima da melancolia de Makoto Shinkai, ora da severidade de Colorful.
Comparado com o anime mainstream, a diferença é gritante. O Studio Ghibli seguiu a sua própria estrada, e parece ter soltado os freios na ladeira. Pode ser que isso seja o que levou seus criadores a repensar as coisas. Ou pode ser que essa receita que só eles sabem preparar seja o que os salvará daqui para a frente.
Muito tempo atrás, uma amiga americana me levou para conhecer um casal próximo à família. Eles moravam em uma enorme casa de lago no estado mais-do-que-remoto de New Hampshire. Para o paulistano que sou, acostumado desde sempre a prédios, casas pré-fabricadas e móveis comprados nas melhores do ramo, o choque foi total.
O edifício parecia ter sido contruído pelos colegas em um fim de semana, acompanhados por alguns engradados de cerveja. As vigas, tábuas e pilares eram todas irregulares, como se eles houvessem simplesmente cortado as árvores e removido as folhas. Não era uma casa desagradável, pelo contrário: combinava como nenhuma outra coisa com a paisagem de florestas e estradas de terra. Mas eu nunca havia visto nada do tipo.
Em Quando Estava com Marnie, a adolescente Anna, melancólica e perdida com a vida, passa o verão em uma cidade interiorana. Quando o filme nos mostra a casa onde a garota passa a viver, o clique na memória foi quase imediato:
Yonebayashi não reproduziu uma casa no campo qualquer, tirada do manual de desenho. Ele nos recriou uma casa nos seus mínimos detalhes, coisa que passaria batido para qualquer um que não tivesse visto algo parecido.
Miyazaki já disse que para retratar o mundo é preciso conhecê-lo. Ficar trancado em um estúdio na frente de uma mesa de desenho não faz de ninguém um artista. Daí sua tristeza com muitos de seus colegas, que vivem e respiram no mundo do anime e não têm ideia do que se passa além dele. Em Marnie, seu companheiro de estúdio Yonebayashi segue isso à risca. Talvez pela exigência do enredo, talvez pelo andamento devagar, o filme nos traz um detalhismo que deixa até mesmo os outros títulos do Studio Ghibli com inveja. Um tomate sendo cortado sem fazer sujeira. A mistura de pessoas à paisana e de yukata no festival de verão. O sacolejar de um carro pequeno lotado de tranqueiras de viagem. O jeito certo de se comer ovo frito com hashi.
Há quem diga que vivemos em tempos tão cibernéticos que ninguém mais se interessa por coisas reais. A popularidade dos filmes do Studio Ghibli me faz questionar o palpite. Não se trata apenas de “realismo”, mas de honestidade com o mundo de verdade. Poucas coisas nos tocam como aquelas que, como a casa de vigas irregulares, nos fazem lembrar de que dividimos o mesmo mundo. Como entregar esse tipo de obra é tudo menos fácil, e os animadores do Ghibli são tudo menos comuns, esse pode ser o caminho para o futuro do estúdio.
Em sua queixa contra o excesso de hype na E3, a colunista de games Liana Kerzner disse (com muita razão, diga-se de passagem) que trailers cinemáticos não servem para nada. Nos dias de hoje, “ser bonito” não é suficiente. Todos os jogos são bonitos.
A colocação também vale para o anime. Foi-se o tempo em que a diferença entre uma série “comum” e uma superprodução à la Nausicaa nos fazia pensar que se tratavam de mídias diferentes. A animação japonesa mainstream melhorou e muito. Computação gráfica se tornou um recurso comum. O outsourcing para a China e Coreia reduziu os custos de produção. Tirando os efeitos de luz e água dos filmes do Shinkai, é bem difícil encontrar algo que faça nosso queixo cair.
Adicione a isso o fato de que o Studio Ghibli dificilmente continuará o rei de bilheterias. Princesa Mononoke foi o filme mais visto da história do Japão, perdendo apenas para Titanic. Mesmo o pouco ortodoxo Vidas ao Vento faturou US$ 120 milhões de dólares. Já Marnie, sem a assinatura de Miyazaki, não lucrou sequer um quarto disso. O criador de Totoro não é só um grande artista; ele é uma marca pela qual as pessoas pagam mais. O estúdio se recusa a fazer outsourcing, então é pouco provável que os custos diminuam se continuarem do jeito que estão. E Miyazaki em pessoa disse achar que a “era do lápis, papel e filme está chegando ao fim“.
As coisas precisam mudar, mas é importante que os dirigentes do estúdio mantenham aquilo que os distingue dos outros. Em tempos de filmes grandes, épicos e impressionantes, são os pequenos detalhes que farão a diferença. Nunca antes a animação de uma garota comendo um ovo, caindo na água ou cortando um tomate foi tão importante.
]]>Na animação japonesa, trabalhos assim aparecem de quando em quando. O recente Giovanni no Shima é um exemplo. Porém, a maior referência continua sem sombra de dúvidas O Túmulo dos Vagalumes, de Isao Takahata. O filme se tornou um marco do Studio Ghibli, do mundo do anime e da animação de uma forma geral, a ponto de ter eclipsado um pouco o diretor, cuja obra inclui o Kaguya Hime de que falei há tempos (e é aqui que o leitor começa a ver um padrão nas coisas de que escrevo).
A trama abre com o narrador, o garoto Seita, anunciando a data de sua morte. Em um flashback, somos levados ao Japão de alguns anos antes, em que Seita, junto à sua irmã, Setsuko, se tornam órfãos depois de sua cidade ser destruída por um bombardeio incendiário. A história então nos mostra a luta dos irmãos para sobreviver sozinhos num país devastado pela guerra, com um pequeno (e terrível) detalhe: sabemos que nenhum dos dois sobreviveu, e que em algum momento do filme nós presenciaremos seu último suspiro.
O filme é de uma tristeza visceral, e seu poder está não apenas no sentimento de impotência que atiça em nós, mas na escolha de temas. Este não é o lugar para a discussão de estratégias, cenas de batalha ou personagens famosas. A guerra é mostrada vista “de baixo”, sem julgamento quanto a seus motivos ou causas. É a força das imagens, pura e simplesmente, que faz o truque: Seita tentando distrair a irmã após sua cidade, bombardeada, ter virado pó. Corpos desfigurados pelo fogo jogados em valas comuns. Setsuko sucumbindo à inanição.
Um crítico insensível talvez apontasse que, no final, O Túmulo dos Vagalumes não é lá tão diferente de Attack on Titan. Afinal, ele foca na parte “conveniente” da guerra (o sofrimento aos japoneses) ignorando as decisões nefastas que levaram o Japão à guerra em primeiro lugar. Contudo, a mera força dramática do filme derruba tais argumentos. Trata-se de um lamento sobre o sofrimento humano, que de tão forte e sincero é capaz de comover qualquer um, em qualquer época e contexto.
Videogames têm mais dificuldade em falar de guerra, e não por acaso. Não é à toa que o primeiro grande livro sobre jogos tenha sido publicado às vésperas da Segunda Guerra Mundial, com a conclusão de que o lúdico é incompatível com a guerra total. Não importa quão perspicaz, forte ou capaz com uma arma um soldado seja: nada o salvará de uma bala perdida, de uma bomba atômica, da gripe espanhola ou de um campo de concentração. A sobrevivência depende do acaso e de força maior, e “vitória” é algo que poucos encontram (ou mesmo buscam em primeiro lugar). Para uma mídia naturalmente competitiva e dependente de recompensas, traduzir esses dramas não é fácil. Tirar o poder do jogador frequentemente leva a jogos chatos, mas é justamente a falta de poder (sobre as balas inimigas, a liberdade de ir e vir, a própria declaração da guerra) que marca a angústia de um soldado. O resultado são batalhas horrendas mas nem tanto, em que é possível “vencer” fazendo as coisas certas na hora certa.
Há claro, quem tenha tentado mesmo assim. This War of Mine retrata a guerra do ponto de vista de civis, usando elementos de randomização (parecidos com os de Sunless Sea) e mecânicas de sobrevivência já vistas em games de zumbi. No entanto, ele é abstrato, retratando um conflito fictício em um país genérico (e vagamente eslavo). Mais próximo de O Túmulo dos Vagalumes é o francês Soldats Inconnus, ou Valiant Hearts. O título da Ubisoft Montpellier não esconde suas intenções. Lançado em julho do ano passado, no mesmo mês e exatos cem anos depois do começo da Primeira Guerra Mundial, é um esforço para que novas gerações não se esqueçam do grande confronto. O apelo é compreensível.
Se é impossível chegar à idade escolar sem ouvir da Segunda Guerra, a Primeira é condenada às notas de rodapé (já ouvi de um professor que ela teria sido “insignificante”). Sua representação no entretenimento é também mínima, e apesar de ter sido tema de uma geração de escritores e artistas variados, é difícil ver qualquer referência a essa produção fora de um jogo do Ken Levine (o mesmo professor me confessou nunca ter ouvido falar de seus escritores). Não há dúvidas, portanto, de que Valiant Hearts começou bem se queria impressionar.
Seu maior acerto, porém, é ter optado por um traço inocente de desenho animado. Como mostraram os quadrinhos de heróis dos anos 1990 (e, à sua maneira, o último Batman de Christopher Nolan), a estética “séria e sombria” está sempre a um passo do ridículo – ou, o que é pior, da lição de moral. Por outro lado, como prova o sucesso do pacifismo até caricato de Miyazaki, uma paleta de cor mais rica e um pouco de fofura fazem milagres na hora de passar uma mensagem.
Valiant Hearts segue a história de quatro pessoas dos dois lados do conflito. Não há “inimigos” propriamente ditos: todos, PCs e NPCs, são de algum modo inocentes, forçados a se matar por razões que nem eles nem (eu suspeito) os desenvolvedores do jogo entendem muito bem. O enredo consegue escapar do bocó, e não é difícil entender por quê. Por um lado, o game passa longe dos clichés pacifistas de crítica à “maldade humana”. Não há ninguém puxando as cordinhas: é o próprio maquinário da guerra que move, quase que sozinho, as coisas rumo a sua destruição.
Ao mesmo tempo, ele não nos poupa de nenhum detalhe. Ao longo das 4 horas de jogos vemos soldados metralhados e envenenados por bombas de gás, pilhas de corpos usadas como escudo humano, cidades arrasadas e mais. A estética “cute” não oferece nenhum consolo – pelo contrário, só torna o horror mais horripilante. Nas missões finais, os quicktime events e quebra-cabeças que compõem o gameplay passam uma sensação de urgência raramente vista no gênero. Modelar um campo de batalha é fácil. Fazer o jogador se sentir em um (com uma jogabilidade que se limita a andar para os lados e clicar em coisas) merece um aplauso de pé.
É uma pena, pois, que a narrativa insista pelo batido. Para um jogo com tanta ênfase no acaso e na complexidade da guerra, Valiant Hearts nos faz perseguir um vilão de desenho animado, com direito a um chapéu de caveira, risadas maléficas e um cientista de estimação responsável por todas as invenções da época, do gás cloro ao tanque de guerra. Heróis que socam vilões na boca e gênios malucos que descobrem a fusão nuclear enquanto cantam no chuveiro funcionam em um gibi do Capitão América, mas aqui são destoantes. É como ver Totoro voando com sua folha ao lado dos aviões Zero de Vidas ao Vento.
Apesar dos pesares, as dúzias de vídeos de YouTube de marmanjões chorando com o final da trama provam que o jogo funciona. Não é qualquer coisa que sensibiliza um gamer. Mas se há algo que O Túmulo dos Vagalumes e Valiant Hearts nos ensinam é que a guerra não é qualquer coisa.
De minha parte, confesso que não caí em prantos com o final. Mas não pude deixar de pensar nos meus dois bisavôs que lutaram na Grande Guerra, conquanto do lado da Itália e contra os austríacos. Eles sobreviveram, mas, infelizmente para eles, no game da vida real houve uma sequel. Seus filhos serviram em uma outra guerra: uns foram poupados, outros viraram soldats inconnus.
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O enredo conta a lenda de uma garota mágica encontrada por um camponês dentro de um talo de bambu. Adotada pela família, ela passa a viver uma vida simples junto à natureza e aos outros aldeões. Todavia, com o passar dos anos, seu pai encontra outros presentes dentro de bambus: pepitas de ouro e roupas elaboradas, dignas de uma princesa. Para o camponês, não há dúvidas. Quem trouxe a menina à terra não o fizera para que fosse uma camponesa. Seu destino era se tornar uma nobre.
Com o ouro do bambu, o camponês compra uma mansão na capital, um nome aristocrático e os serviços de uma tutora em etiqueta. A garota, rebatizada de Princesa Kaguya, é forçada a abandonar seus amigos e aprender a se comportar como uma dama da corte. O problema é que a nova vida não lhe desperta o menor interesse. O silêncio do palácio é entediante. As roupas e penteados ultracomplicados não permitem que brinque. Os rituais são arbitrários e medonhos: deve arrancar as sobrancelhas e pintar os dentes de preto; não pode rir em voz alta nem ser vista por estranhos. Comparada com sua vida no campo, o mundo da cidade é uma antivida: insossa, amedrontadora e sem sentido.
Até aí, nada de novo. Fantasias sobre a beleza da vida simples e críticas aos excessos do luxo são quase tão antigas quanto a própria arte. Porém, há aqui uma pequena diferença. Os nobres de Kaguya Hime não são apenas decadentes; eles são ruins. Ao serem informados da beleza da princesa, cinco pretendentes viajam até o palácio para conhecê-la. Para tal, eles cavalgam pelo meio da cidade, atropelando sem remorso os cidadãos que encontram pela frente. O pai da princesa, confortável com a nova posição, recusa-se a deixá-la encontrar o velho povo da aldeia, pois nobres não devem se misturar ao populacho. Em uma cena particularmente tocante, a princesa, de dentro de sua carruagem, reconhece um antigo amigo de seus dias no campo, reduzido a um ladrão de galinhas por não ter o que comer.
O que separa a criação de Takahata de seu material de origem é sua hostilidade à aristocracia. Não, é certo, uma aristocracia “real”, que tenha existido em algum momento do passado. Ele é contra sua ideia, contra os princípios que nela identifica. A inibição dos prazeres da infância. O abuso aos mais fracos. A falta de livre arbítrio. A falsidade. A obediência cega. O casamento arranjado. Hiroki Azuma diz que o anime não é uma arte autenticamente japonesa, mas uma recriação ocidental feita com elementos nipônicos. Em certa medida, Kaguya Hime parece confirmar isso. A adaptação de Takahata tem mais em comum com críticas à aristocracia europeia, como os romances de Charles Dickens e Thomas Hardy, do que com a tradição do Japão antigo que produziu a lenda. No cinema, ressoa com alegorias encenadas no Antigo Regime, como A Duquesa e Maria Antonieta. Nós nos reconhecemos na rebeldia da protagonista porque o mundo que ela despreza não é só errado, mas anticontemporâneo.
Essa busca pelo presente – ou pelo que o presente deveria ser – não é incomum. Nossos valores são importantes para nós. Eles definem nossas ações, caminhos de vida, nossa forma de ver o mundo; são, enfim, aquilo que somos. Mas a história, infelizmente, nos ensina que as coisas mudam. E se é assustador acordar num futuro cheio de tecnologias, pessoas e idiomas desconhecidos, muito mais assustador é se deparar com um amanhã no qual os próprios valores são irreconhecíveis. De ‘atual’, passarmos a ‘relíquia’; de ‘certos’, tornarmo-nos ‘errados’; de ‘corretores’ dos outros, sermos rebaixados a ‘corrigíveis’. O passado de Kaguya Hime tem função de alívio. Ao criticarmos uma era que já foi, temos a ilusão que nossos problemas são relíquias do passado. A culpa não é nossa, mas dos valores antigos, que custam a desaparecer. Ao nos depararmos com essa sociedade tão errada, nos convencemos de quão certos nós (ainda) somos.
Isso funciona para os que têm confiança nos próprios valores. Já para os incertos, a coisa é diferente. Compare o anime de Takahata com o filme O Último Samurai, de Edward Zwick. O Capitão Algren, protagonizado por Tom Cruise, é um homem ‘contemporâneo’ – para os padrões de seu século XIX – que, no entanto, viu a pior face da sua modernidade: o extermínio dos ‘pele-vermelhas’ no massacre de Wounded Knee. De volta à civilização, vende armas para que outros se matem em causas ainda mais fúteis e desperdiça o salário em bebida. Ele não se preocupa em “olhar para a frente”, pois não há nada para se ver: se o presente já é assim, para quê um futuro? Daí a revelação de seu cativeiro no Japão. No final do filme, o imperador Meiji nos diz em um discurso que é importante ser moderno, mas não muito moderno. Algren, no mesmo espírito, abandona o ocidente para obter ‘um pouco de paz’ na vila dos samurais. A etiqueta arbitrária e a rigidez da tradição, que a Princesa Kaguya repudiava, têm para ele um sentido que a contemporaneidade e o seu ‘progresso’ nunca lhe mostraram. Em Kaguya Hime, o passado é um oposto que deve ser lembrado e evitado. Aqui, é uma parte de nossa humanidade, sem a qual não valemos nada.
A lição não está no passado ser ou não importante, mas no fato de que, queiramos ou não, nós sempre o buscamos. A diferença é o motivo. Para alguns, é uma maneira de se convencer das próprias certezas—que, se certezas de fato fossem, dispensariam o exercício. Para outros, tal como para Dom Quixote, é um sonho impossível para reencontrar a si mesmos.
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