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Heavy Rain – finisgeekis http://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Sun, 24 Nov 2019 16:49:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32 Heavy Rain – finisgeekis http://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Game over?” Como os games tornam o fracasso viciante http://www.finisgeekis.com/2017/04/04/game-over-como-os-games-tornam-o-fracasso-viciante/ http://www.finisgeekis.com/2017/04/04/game-over-como-os-games-tornam-o-fracasso-viciante/#respond Tue, 04 Apr 2017 15:55:14 +0000 http://finisgeekis.com/?p=16007

Tudo o que vive está fadado a terminar.

Com essas palavras começa Nier: Automata, o novo jogo de Yoko Taro que coleciona elogios.

Meio JRPG, meio bullet hell; meio ruminação filosófica, meio tributo metanarrativo, o jogo nos força, a todo momento, a repensar o que sabemos sobre nosso hobby.

Como sua frase de abertura já entrega, isso envolve o elemento mais importante da mídia.

fail state.

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Fail states são as condições de fracasso, aquele momento em que descobrimos que perdemos. Para o  designer e teórico Jesper Juul, eles são a característica que diferencia os jogos de qualquer outro tipo de ficção.

Nem toda essa importância, porém,  os salva de críticas. Para alguns, telas de game over são as maiores inimigas dos jogos. Um recurso defasado da era do fliperama que impede que games contem boas histórias.

É verdade que ninguém gosta de perder. É também verdade que um jogo impossível deixa de ser interessante.

Felizmente, ao longo dos anos designers criaram várias estratégias para tornar o fracasso não só tolerável, mas uma parte fundamental da diversão:

1 – Reduzir punição por fracasso

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Como tantas outras questões, a raiva com os fail states vem, em grande parte, de um problema de comunicação. Muitas vezes, quando falamos de “derrota”, “morte” ou “fracasso” o que realmente estamos pensando é em punição. 

“Fracasso”, com o perdão do pleonasmo, é o mero ato de fracassar. É o que acontece quando morremos em uma boss fight, perdemos a curva em um jogo de corrida ou erramos o salto em um jogo de plataforma.

“Punição” é o que acontece conosco quando fracassamos. Pode ser algo sério, como retornar ao menu inicial, ou algo simples, como um NPC rindo às nossas costas.

Gamers vivem reclamando que seus jogos estão ficando fáceis demais. Que as novas gerações, ao contrário da década “raiz”, não tem paciência para um desafio. Hoje em dia, dizem, “perder” um jogo se tornou quase impossível.

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Há um pingo de verdade aí, embora a explicação seja outra. Games de fato ficaram mais fáceis, mas não porque perdemos menos. Na verdade, fracassamos tanto em nossos jogos “casuais” quanto nos anos 1990, com pérolas como Battletoads.

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A diferença é que a punição, vinte anos atrás, era muito mais alta.

O motivo é histórico. Na era dos fliperamas, games precisavam ser difíceis e viciantes para obrigar as pessoas a gastar mais moedas.

Os fliperamas acabaram, mas a moda ficou – em parte, porque a tecnologia da época não permitia fazer diferente. Até o surgimento dos saves, com o primeiro Zelda, “perder” no jogo significava voltar do começo, quantas vezes fosse preciso.

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Para atrair um público mais amplo, jogos recentes viraram essa filosofia de ponta cabeça. De games em que vencer era uma proeza, chegamos a jogos que praticamente nos garantem que chegaremos ao fim.

Graças a checkpoints, não precisamos voltar mais ao início do nível a cada deslize. Com a possibilidade de salvar durante o combate, mesmo a luta mais ferrenha pode ser ganha na tentativa e erro.

Se antes o fracasso podia custar horas de jogo, hoje tudo o que perdemos é o tempo de clicar em um botão de load game.

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Punições menores parecem bem óbvias, mas levaram a uma consequência peculiar, que com certeza ferirá o ego dos puristas.

Com uma menor punição por fracasso, gamers passaram a errar cada vez mais. Para alguns especialistas, o fracasso é responsável por até 80% do tempo que passamos com um jogo.

Os gamers de hoje até podem reclamar, mas se tivessem de competir com seus “eus” de vinte anos atrás, provavelmente perderiam de lavada.

2 – Mudança persistente

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Checkpoints são maçantes.

Sim, temos a possibilidade de voltar atrás, mas quem tem paciência para fazer tudo de novo? E se tivéssemos uma forma de nos poupar do pior? De combinar clemência com a impressão de que nossos atos importam?

Boa notícia: ela existe. Chama-se mudança persistente.

Jogos com essa propriedade nos fazem voltar atrás ao perdermos, mas “guardam” parte de nosso progresso. Inimigos derrotados continuam mortos. Itens, experiência e habilidades compradas ficam no seu lugar. Quebra-cabeças resolvidos permanecem resolvidos.

Mundos com mudança persistente estão presente em alguns dos jogos de maior sucesso dos últimos tempos. Bioshock nos revive na Câmara Vita mais próxima sempre que morremos. Em Borderlands, um novo personagem é “gerado” em uma New-U caso percamos uma batalha.

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A estratégia não é nova; pelo contrário, é a essência da mecânica de respawn disseminada em RPGs, dos clássicos isométricos aos MMORPGs mais recentes. No entanto, não é por ser popular que se livrou de algumas críticas.

Games desse tipo são frequentemente acusados de prejudicar a suspensão de descrença, “barateando” a morte e minando a sensação de desafio. Embora certos jogos tenham remediado o problema “cobrando” alguma punição pelo respawn, para os críticos não é o suficiente.

Games, dizem eles, precisam de uma solução mais drástica.

3 – Fail states implícitos

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Para alguns criadores, nenhuma dessas táticas resolve o problema central. Pelo contrário, a própria existência de fail states é um defeito que precisa desaparecer.

Essa é a opinião de David Cage, autor de Heavy Rain e Beyond: Two Souls. Ele defende que a tela de game over é um fracasso narrativo. No mundo real, não voltamos a um save anterior quando alguma coisa dá errada.

A vida – para o bem ou para o mal – continua.

Se quiserem contar histórias sérias, videogames precisam fazer melhor do que proibir o jogador de encarar seus próprios erros.

Cage prefere desenlaces que reconheçam o fracasso, mas que forcem o gamer a lidar com suas consequências. Foi visto em uma missão de stealth? Dê um jeito de fugir dos guardas. Falhou em salvar um NPC? Meus pêsames, viva em um mundo em que ele não existe mais.

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Artifícios como esses são conhecidos como fail states implícitos e funcionam, na prática, bloqueando segmentos do jogo.

Em Morrowind, matar uma personagem necessária à quest central nos impede de completá-la. Em The Witcher 3, trair Yennefer com Triss (ou vice-versa) faz com que Geralt termine sua jornada chupando o dedo.

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Nenhum dos dois casos é um fracasso “clássico”, pois somos livres para continuar jogando. No entanto, algum elemento da nossa experiência possível é excluído.

Se é difícil enxergar esses fail states “moles” como fracasso, basta se lembrar do mais célebre entre eles.

Em Mass Effect, nosso protagonista, o comandante Shepard, é vítima de uma emboscada e precisa deixar um membro de sua equipe para morrer. A consequência não apenas remove um NPC importante do jogo, como o exclui de toda a trilogia.

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O exemplo de Virmire, como a missão é chamada, dá uma boa referência do impacto desse tipo de fail state. Jogos são fantasias de poder, que tentam nos convencer que qualquer coisa, com mais ou menos esforço, está ao alcance dos nossos braços.

Derrotas implícitas são poderosas porque nos lembram de que não podemos ter tudo.

Mais do que isso, elas são interessantes porque estão por toda parte. David Cage é um entusiasta de “filmes interativos”, mas seu comentário é também certeiro para jogos mais tradicionais.

Se pararmos para pensar, toda decisão, de certo ponto de vista, implica num “fracasso”. Ao ajudar um dos lados em uma guerra, “fracassamos” em apoiar o outro. Ao vivermos um romance com a personagem A, “fracassamos” na relação com a personagem B.

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Fazer escolhas é fechar portas. Quem já tomou algum grande passo na vida, do vestibular ao casamento, sabe disso melhor do que ninguém.

Fail states implícitos são necessários para a liberdade de escolha – e, consequentemente, para a sensação de que estamos no controle da nossa experiência.

4 – Em vez de excluir, aumentar a experiência

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David Cage pensa que as telas de game over devem acabar. Já outros designers acham que fail states devem ser mais explícitos, não menos.

Se fracassos implícitos reduzem a experiência do jogador, alguns dos exemplos mais bem-sucedidos de fail states nos trazem derrotas que a aumentam.

É o caso de Dark Souls, rei indiscutível do tough love, que transformou o game over em um prazer em si.

Personagens que morram (e acredite, eles morrerão com frequência), respawnam no último ponto de save, mas suas souls (moeda do jogo) permanecem no lugar. Se o jogador morrer uma segunda vez antes de recuperá-las, estarão perdidas para sempre.

A mesmíssima estratégia foi empregada em Nier: Automata, integrada de maneira superinteressante com sua lore. 2B, nossa protagonista, é uma androide. Quando é abatida em combate, sua organização envia um novo corpo equipado com o “back-up” das suas memórias na nuvem.

O pulo do gato, como no caso de Dark Souls, é que apenas memórias fazem upload. Todas as melhorias que o jogador comprou para seu corpo permanecem no corpo. Se a nova androide morrer antes de recuperá-lo, estas melhorias desaparecerão.

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Torment: Tides of Numenera leva o princípio a um nível ainda mais extremo: somos, literalmente, recompensados por morrer.

O RPG nos coloca na pele de um herói imortal, e nos lança todo tipo de artimanha para que tentemos nos “matar”.  De poças de ácido a brinquedos assombrados, espelhos assassinos a seitas canibais, o game mostra uma coleção de armadilhas digna de um filme de terror B.

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Ao falharmos, ganhamos mais desafios, cenários, experiências. O que poderia ser um simples game over vira uma porta para novas possibilidades.

Fracassos como os desses jogos oferecem algo que nenhum dos tipos acima é capaz de fazer: eles tornam seus jogos mais difíceis, sem com isto torná-los mais chatos.

Esse é um ponto importante, pois vai na contramão do que a maioria dos games, nos dias de hoje, têm coragem de fazer.

Dos filmes interativos do David Cage a Call of Duty, a busca por fail states alternativos geralmente visa a tornar os games mais populares – acessíveis a um público que, cada vez menos, está disposto a jogar até o fim.

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Ledo engano. Como mostrou Jesper Juul, as pessoas se divertem justamente quando erram.  Games triviais cansam rápidos e são esquecidos. Games desafiadores na medida certa nos seduzem por semanas a fio.

Nos videogames, como na vida, a tragédia é o tempero que nos move à frente.

5- Cumplicidade

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Vamos imaginar que você é um jogador hardcore, do tipo que faz Hidetaka Miyazaki arder de raiva. Derrotou todos os bosses, libertou todas as cidades, salvou (e dormiu com) a princesa. Um último inimigo se coloca diante de você, mas ele não é páreo para sua espada. Ninguém é.

Então você descobre que o inimigo é seu antigo amigo de infância, que as pessoas nas cidades eram civis, não militares, que os bosses eram guerreiros do bem e que a princesa é uma deusa das trevas, que o seduziu para ajudá-la a conquistar o mundo.

Parabéns, “herói”.

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O que você acaba de fazer pode ser considerado uma “vitória”? Ou não seria isto, também, uma forma de derrota?

Aqui, precisamos sair do game design e entrar no universo da literatura. Trair a expectativa do público, invertendo o bem e o mal, é uma das estratégias mais conhecidas da ficção. De Sailor Moon a Old Man Logan, está presente em todo lugar.

A diferença, nos videogames, é que os enganados somos sempre nós. Ao nos fazer ludibriar para fazer o mal achando que estamos fazendo o bem, os jogos nos tornam cúmplices do que aconteceu.

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Em Shadow of the Colossus, enfrentamos gigantes para salvar nossa amada apenas para descobrir, tarde demais, que estes colossos estão longe de serem malignos.

Em Nier: Automata, encarnamos uma androide com a missão de salvar a terra de uma invasão de máquinas. O que começa como um hack n’ slash descerebrado logo se mostra uma jornada filosófica num mundo pós-apocalíptico, e percebemos que a “humanidade” que defendemos é bem diferente do que imaginávamos.

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Em outros casos, a cumplicidade não está em nos enganar, mas em nos premiar por fazer coisas que nos repugne. Em Heavy Rain, para salvar seu filho de um serial killer, uma personagem é chantageada a decepar o próprio dedo.

Suceder na amputação caseira é uma “vitória”, pois nos aproxima do nosso objetivo. No entanto, ela não nos traz alegria, só um calafrio que revira nossos estômago.

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Derrotas por cumplicidade não são exatamente “fracassos” no sentido gamístico. Pelo contrário, elas só funcionam se nós “ganharmos”. Elas são o que Jesper Juul chama de fracassos fictícios.  A mesma sensação que temos ao assistir a um filme trágico, sabendo que não podemos mudar o que acontece.

A diferença, nos games, é que nos sentimos responsáveis.

Quando lemos ou assistimos a uma tragédia, nós nos emocionamos, mas não desejamos averter o desastre. Entendemos que é da tristeza que depende a beleza da obra. Sentimo-nos “bem” vendo os outros (na tela ou na página), sofrendo.

Não nos games. Quando o controle está nas nossas mãos, tudo o que passa com nosso avatar – e seus entes queridos – vai direto ao nosso coração.

Não importa quanto sentido aquilo faça no contexto do jogo. Não importa quão bem construída ou necessária a tragédia for dentro da experiência. Nós sentimos culpa por aquilo, pois fomos nós que apertamos os botões que engatilharam o desastre.

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Se parece difícil enxergar esse tipo de twist como um fracasso, basta se lembrar dos exemplos em que foi implementado.

Atire a primeira pedra quem não sofreu ao sacrificar Kaidan ou Ashley em Mass Effect. Quem não se sentiu pesado quando (SPOILER) John Marston morre ao fim de Red Dead Redemption. Ou quando, em Heavy Rain, (SPOILER) descobrimos que Scott Shelby é o assassino do origami.

Esses desenlaces não são apenas tristes. Por se tratar de uma mídia participativa, temos a impressão de que poderíamos ter feito diferente. Mesmo quando tudo não passa de uma impressão.

O código, tal como as estrelas, é indiferente ao sofrimento dos homens.

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Muito já foi escrito sobre o que separa o jogo das outras mídias como uma forma de arte. Para Jesper Juul, estamos olhando para o lugar errado. Concentramo-nos nas conquistas quando, na verdade, games são a arte do fracasso.

Ao pessoalizar o sofrimento, videogames se tornam a linguagem trágica por excelência, mais potentes que qualquer mídia que Sófocles ou Shakespeare poderiam ter imaginado. O suicídio de Ofélia não nos arrepia como a morte de Ciri no “final ruim” de The Witcher 3.

Como diz 9S de Nier: Automata, as máquinas (tal como os gamers!) parecem buscar o fracasso.

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‘Liberdade de escolha’, ou como os video games nos enganam http://www.finisgeekis.com/2015/09/21/liberdade-de-escolha-ou-como-os-video-games-nos-enganam/ http://www.finisgeekis.com/2015/09/21/liberdade-de-escolha-ou-como-os-video-games-nos-enganam/#comments Mon, 21 Sep 2015 21:04:59 +0000 http://finisgeekis.com/?p=699 O mundo dos games é repleto de chavões. Dentre eles, pouco são mais usuais (e controversos) do que “liberdade de escolha”. Fãs de RPG, em particular, terão dificuldade em encontrar qualquer análise aprofundada de seu jogos favoritos que não esbarre na expressão ou em suas parceiras: “escolhas significativas”, “histórias customizáveis”, “narrativas ramificantes”, “agência”.

À primeira vista, parece que há uma demanda para que games se tornem playgrounds virtuais, ferramentas para que os jogadores brinquem de faz-de-conta e inventem as próprias histórias. Eu mesmo já me deparei com isso. Ano passado, após dar uma palestra sobre video games, ouvi um membro da plateia dizer que jogava para “ser ele mesmo”, com todas as opções e nuances do mundo real. Jogos que chegavam perto disto eram jogos bons.

Isso, é claro, à primeira vista. Basta estourar uma pipoca e observar as trocas de farpas entre profissionais da indústria para ver que nem entre desenvolvedores há um consenso sobre o que significa ser “livre” e “entrar na pele” das personagens. Pior: nem se essas duas coisas, ou qualquer outro dos chavões do primeiro parágrafo, têm necessariamente a ver um com o outro.

Em 2010, Daniel Erickson, diretor de roteiro da Bioware, soltou os cachorros sobre Final Fantasy XIII. Segundo ele, o game não era um RPG, e colocar um “J” na frente não enganaria ninguém:

Você não faz escolhas, você não cria uma personagem, você não vive a sua personagem… Eu não sei o que eles são – adventure games, talvez? Mas eles não são RPGs.

Não bastou nem dois anos para que o feitiço voltasse contra o feiticeiro. Em 2011, Dragon Age II, sequel da IP de sucesso da Bioware, foi malhada por incluir um protagonista não customizável e ter um enredo pouco reativo.

No ano seguinte, Mass Effect 3 acendeu a internet em chamas com uma das sequências finais mais controversas da história. A polêmica foi tão grande que uma versão “consertada”, ajustada aos interesses do público, foi lançada no mesmo ano. O episódio foi impactante a ponto de alguns terem sugerido que Half Life 3 custa a sair porque os desenvolvedores estariam com medo de uma reação similar por parte dos fãs.

Talvez haja algum fundo de verdade nos comentários de Erickson. Mesmo assim, ele deveria, nos dizeres de Bill Gates, ter arrumado o próprio quarto antes de tentar mudar o mundo. É verdade que JRPGs não oferecem o mesmo tipo de “liberdade” de que a Bioware se gaba. Mas até que ponto o modelo “ocidental”, “sem o J” de Erickson vive às suas próprias expectativas?

Para responder a essa pergunta, é necessário voltar  no tempo.

‘Interatividade’…. até quando interessa

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Nos anos 1980, quando computadores eram uma novidade e a maioria das pessoas sequer sabia o que eram videogames, Brenda Laurel propôs uma ideia pioneira. Segundo ela, softwares tinham muito em comum com o teatro. Tal como as peças, eles eram compostos por uma série de elementos que deveriam funcionar em conjunto, do código à interface. Para que tudo opere como esperado, é necessário que esses elementos estejam orientados por um projeto geral do autor, e que esse projeto seja traduzido para a dimensão material da obra. Se o criador pesar a barra em seu plano, a ideia parecerá inacabada ou forçada. Se, por outro lado, ele estiver escondido demais, o público encarará o que se passa sem fazer ideia do que significa.

Deve haver uma obra de arte escondida aí...

Deve haver uma obra de arte escondida aí…

Brenda Laurel influenciou teóricos e designers, que se basearam nesses princípios para criar experiências em que as ações dos jogadores tivessem maior impacto. O que eles perceberam foi que games com escolhas relevantes são justamente aqueles em que essa balança está em equilíbrio.

Se ela pende para o lado do autor, chegamos no famoso railroading: a sensação de sermos “carregados” para finais que não necessariamente desejamos. Se ela pende para o lado material, temos conteúdo filler, que parece estar no jogo apenas para gerar volume.

Em Dragon Age II, templários e magos entram em guerra e destroem Kirkwall, independente dos esforços do protagonista para impedi-los. A vontade dos autores de contar sua história e preparar terreno para o jogo seguinte falou mais alto que seu desejo de deixar as rédeas nas mãos dos jogadores.  Em Mass Effect 3, o plano de Casey Hudson e Mark Walters de autorar uma ficção científica “cabeça” pesou além da conta sobre uma série que se propunha a ser a versão digital de um livro de “escolha sua aventura”.

choose your own

Por outro lado, as caças aos shards, mosaicos, garrafas e quebra-cabeças de Dragon Age: Inquisition parecem filler porque não conseguimos ver um sentido geral por trás delas. O problema não está na natureza das quests. Os audio diaries de Bioshock são essenciais à narrativa, e nos trazem enorme satisfação ao serem encontrados. Ambas são “caças ao tesouro”: uma pecou pelo excesso; a outra achou a medida certa.

Isso mostra que, contrário à sabedoria popular, mais nem sempre é melhor. Se não está claro como as decisões se relacionam com a ideia central,  há alguma coisa de errado com estas decisões, e a impressão que elas passarão com certeza não será de liberdade.

Eu insisto em “impressão’. Folheiem um guia de estratégia de um jogo que gostam e verão que, na maioria das vezes, o potencial de escolha é muito pequeno. Se os desenvolvedores são generosos, vocês terão alguns finais diferentes. Na maioria das vezes, uma dezena de variações dos mesmos finais, ou um punhado de escolhas significativas ao longo de 50h de aventuras. Levante a mão quem nunca jogou um grande RPG, voltou do começo para fazer uma aventura completamente nova e descobriu que certas coisas não mudariam.

A questão, portanto, não é de prometer liberdade infinita, mas de fazer a pouca liberdade de que os jogadores dispõem parecer aceitável. Há uma série de truques para isso, alguns dos quais são mais antigos que os próprios games. Abaixo vão três dos meus favoritos.

Esconder o plano geral dos jogadores

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Esse é um ponto que mestres de RPG já conhecem de cor e salteado. Os jogadores não precisam saber que a Cidade A que eles visitaram é exatamente igual à Cidade B que eles decidiram não conhecer. Tampouco precisam, após perderem os cabelos derrotando um boss, saber que você os deixaria ganhar de qualquer jeito.

Isso é possível porque há dados que são escondidos dos jogadores. Sem ter mapas ou descrições das cidades, eles não têm como saber se o mestre os está conduzindo com uma guia. Sem informações sobre pontos de vida, habilidade ou classe de armadura dos montros, eles não fazem a menor ideia do tamanho dos desafios que encontram.

Um mestre astuto consegue engambelar seu grupo por sessões a fio sem que ninguém perceba. O resultado é uma história em que as regras estão lá apenas como referência e em que o mestre decide, como o “líder” de um faz-de-conta entre crianças, quem viveu e quem morreu.

Antes que vocês abram aquele sorrisinho maldoso e enviem esse texto para aquele seu colega que faz isso, saibam que essa tática é tão eficiente, popular e desejada que virou dica oficial no Livro do Mestre da 4a edição de D&D:

Se você ver que as personagens estão obviamente dominadas em um encontro, você pode:

  • Dar às personagens uma rota de fuga
  • Fazer escolhas ruins de propósito para os monstros
  • “Esquecer” de rolar o dado para ver se monstros recarregam seus poderes
  • Inventar um motivo dentro da história para os monstros abandonarem a luta
  • Deixar os monstros ganharem, mas deixar as personagens vivas por algum motivo.

(…)

[Se um encontro estiver fácil demais], você pode aumentar a dificuldade na medida em que as coisas andam. Traga reforços. Dê ao vilão uma habilidade nova da qual os jogadores não sabiam. 

Em videogames isso é ainda mais crucial do que em jogos de tabuleiro. Nenhum software, por mais complexo que seja, conseguirá ser tão rico quanto a imaginação.

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Não, nem Daggerfall

A diferença entre um jogo bom e ruim muitas vezes jaz em uma coisa tão simples como saber o que esconder e por quanto tempo. Em Heavy Rain, escolhas erradas em alguns momentos-chave levam à morte das personagens. Porém, ao anunciar que “ninguém está à salvo” e que suas decisões podem condenar quase todo mundo, os desenvolvedores criam um véu de tensão que faz até os quicktime events mais banais parecerem significativos.

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Caro David Cage: só não exagere na dose. ALGUMAS decisões reais são necessárias, caso contrário perde a graça

Na maioria das vezes, isso é feito de forma sutil. Vários jogos, a exemplo do mestre de RPG que citei, escondem informações cruciais dos inimigos, de fraquezas a pontos de vida. Quando bem feito, isso torna o jogo muito mais difícil e imprevisível, exigindo que pensemos duas vezes antes de chutar o menor dos goblins.

É o famoso “tigre de papel”. Após alguns playthroughs, pode até ser que deduzamos a lógica da coisa e encontremos um “caminho ótimo” para chegar ao final. Com o tempo, nós logo veremos que a maior parte das ameaças é pífia se encarada do jeito certo ou no nível ideal. Na primeira vez, no entanto, cada mísera escolha será tomada com o suor a escorrer da testa.

Trilhas de migalhas

Fonte

Entregar a história de mão beijada, seja via cutscenes ou diálogos expositivos, não é a coisa mais excitante do mundo. Para contornar este problema, designers muitas vezes “quebram” as informações relevantes da história e as espalham pelo mundo do jogo.

Esses resquícios podem ser qualquer coisa: ruínas, campos de batalha, livros ou mensagens escritas, cadáveres, rumores sussurados por NPCs, gravações ou mesmo visões fantasmagóricas. Nenhum conta uma história completa, apenas uma “peça” que, juntada as outras, ganha um sentido.

Se a diferença parece minúscula, na prática ela é gritante. Aqui, por mais linear que o enredo seja, é sempre do jogador o papel de colocar as coisas em ordem. Rondar cada centímetro de Columbia em busca de voxophones nos dá um sentimento muito maior de agência do que escutar uma narração em off por vinte minutos.

Para aqueles de vocês que curtem um palavreado técnico, o nome disso é paradigma indiciário. O termo foi cunhado pelo historiador Carlo Guinzburg para denotar a capacidade de reconstruir um todo a partir de traços. É o princípio do romance policial. A diferença é que é o jogador, implicita ou explicitamente, que veste a boina do Sherlock Holmes.

Para Guinzburg, trata-se de uma habilidade cultivada desde os caçadores da idade da pedra. Na perseguição por pegadas, sangue e outros rastros de animais, aprendemos a narrar o que havia acontecido com eles e para onde eles iriam. De uma atividade de sobrevivência surgiu nosso dom de contar histórias.

Geralt, o romancista

Geralt, o prosador

Justamente por ser tão básica e fácil de usar essa técnica pode ser encontrada em praticamente todo game narrativo. Ela está presente no prólogo de The Last of Us, em que exploramos a casa de Joel e descobrimos quem ele é, que tipo de relação tem com a filha e o que está acontecendo com o mundo. Ela é o elemento crucial em Bioshock e em adventure games como Gone Home, cujas histórias dependem da interação com objetos. Ela aparece de maneira literal nos contratos de monstros de Witcher 3 e em todos os jogos de investigação. Não que precisemos ir tão longe: nós a vemos em virtualmente todos os dungeons de Skyrim, por meio de notas, cadáveres estrategicamente posicionados e NPCs tagarelas.

Shavari's_Note

Aquela hora em que nos damos conta de que Skyrim tem um índice de analfabetismo menor do que o do Brasil

Mundos dinâmicos

 

Em 2011, Witcher 2 fez os queixos da crítica caírem ao incluir uma decisão tão, mas tão relevante que mudava completamente o segundo ato do jogo. Para ver tudo o que o game tinha a oferecer, não havia saída a não ser jogá-lo (quase) inteiramente uma segunda vez.

A verdadeira narrativa ramificante é um sonho de muitos gamers, mas quem já tentou colocar a ideia no papel– ou apenas já brincou no Aurora Toolset de Neverwinter Nights – sabe o pesadelo que é pô-la em prática.

aurora toolset

Meus olhos doem…

Se cada escolha “mudasse para sempre o universo”, como prometem as contracapas de vários games, jogos seriam infinitos e impagáveis. E isso sem contar as pressões editoriais. Como o escritor da Bioware Patrick Weekes disse num depoimento três anos atrás, o railroading às vezes é uma exigência do escritório de cima. Em um mundo de gamers que só jogam um título uma única vez ou nem chegam até o final e de empresas como a EA que vivem de nivelar por baixo, impedir o jogador de acessar conteúdo (como vez Witcher 2) nem sempre é aceitável.

Quem acompanha a série Elder Scrolls há mais de uma década sabe a pena que isso é. Em Morrowind, as diferentes facções do jogo têm suas rivais, e para prosseguir em suas quests é necessário destrui-las. Deseja se tornar grão-mestre da Guilda dos Magos? Prepara-se para caçar agentes Telvanni. Quer liderar a Guilda dos Guerreiros? Para tanto, é necessário ou eliminar a Guilda dos Ladrões ou organizar um motim e tornar-se mestre à força. Seja como for, o resultado é dramático: personagens-chave morrerão e, com elas, quests, diálogos e oportunidades específicas. Compare isso com Skyrim, em que um único personagem pode se unir a todas as facções, quest-givers são imortais e os impactos de suas ações na postura de NPCs são quase imperceptíveis.

A solução é contar com pequenas escolhas espalhadas ao longo do jogo. Elas não precisam ser relevantes ou mesmo associadas à trama principal. Pelo mero fato de estarem lá – e em grande número – passam a sensação de que o protagonista causou uma diferença no mundo à sua volta. Jogos não são apenas histórias, mas lugares virtuais que habitamos por algum tempo. Deixar nossas marcas nesses lugares muitas vezes é mais importante do que ver um slideshow diferente no epílogo da jornada.

Isso é o que Mass Effect, para a infelicidade de seus criadores, fez bem demais. O terceiro jogo da série contou com mais de 1000 pontos de variação com base em decisões feitas nos dois anteriores. A maioria dizia respeito a side quests formulaicas, easter eggs ou fanservice, mas não importa. O jogo passou a sensação de que as ações de Shepard, por menores que fossem, mudariam a vida das pessoas a sua volta. Quando o mesmo não aconteceu com as “grandes” decisões – e, nestas dimensões, não tinha mesmo como acontecer – a internet pegou fogo.

Para alguns, o que separa um grande criador de um medíocre é a capacidade de se virar com pouco. Dê a um chef tomate, azeite, farinha, água e sal e ele fará um banquete a ser lembrado. Coloque um leigo em uma cozinha industrial e ele queimará sua torta do mesmo jeito. Não se trata de inspiração divina ou talento nato, mas da ideia de que bons criadores conhecem seus limites e sabem fazer o melhor sem pisar fora deles.

Se isso é verdade, sem dúvida se aplica aos games também. Os recursos e possibilidades para criar um jogo dos sonhos sempre serão limitados. A marca da experiência inesquecível é a lábia de seus criadores em  “mascararem” as costuras de seus universos de faz-de-conta.

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