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arte – finisgeekis http://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Fri, 13 Dec 2019 10:17:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32 arte – finisgeekis http://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 Uma aventura no Japão #10: quem tem medo do teatro noh? http://www.finisgeekis.com/2017/07/17/uma-aventura-no-japao-10-quem-tem-medo-do-teatro-noh/ http://www.finisgeekis.com/2017/07/17/uma-aventura-no-japao-10-quem-tem-medo-do-teatro-noh/#comments Mon, 17 Jul 2017 21:41:42 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17461 Você já deve­ ter ouvido falar do noh, o mais famoso e pomposo dos teatros japoneses.

Você já deve ter ouvido falar do noh, aquela ópera esquisita em que homenzarrões interpretam papéis femininos.

Você já deve ter ouvido falar do noh, cujas máscaras parecem saídas de um filme de terror.

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Como amante da cultura japonesa, eu já havia escutado as três coisas. O teatro noh, de fato, parece ter uma reputação ambivalente. Por um lado, é uma das artes mais luxuosas e tradicionais do Japão. Por outro, é vista como uma coisa meio démodé – quanto não completamente anacrônica.

Como cosplayer, tenho um enorme fascínio por máscaras. As de noh em particular, graças à escritora Fumiko Enchi, que escreveu um romance perturbador sobre o tema. Assim, não pude de deixar de conferir como é, realmente, o famigerado teatro.

Mas afinal, o que é o noh?

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Noh é um tipo de dramaturgia que envolve canto, dança e uso de máscaras. Ao contrário do kabuki, que preza pela extravagância, ou o rakugo, que dialoga com a experiência popular, o noh é extremamente codificado, tradicional e sisudo.

Isso não quer dizer que tenha se tornado apenas uma curiosidade de museu. Peças de noh geralmente falam de mortais assombrados por fantasmas, demônios ou deuses. Se você já se deparou com o famoso “terror japonês” (ou suas muitas paródias na cultura pop) saiba que ele já teve um pé no teatro noh.

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Paródia de assombração na série Midnight Diner do Netflix.

Embora grite “Nihon!” por todos os poros, o noh teve uma influência gigantesca na arte ocidental. Dramaturgos como Samuel Beckett, W.B. Yeats e Bertold Brecht basearam-se nele para escrever algumas de suas peças mais famosas.

Como o anime também é uma arte de performance, é óbvio que também paga homenagem ao gênero. Não só indiretamente, em muitos de seus roteiros, mas, às vezes, também diretamente.

Em Millenium Actress, por exemplo, a anciã que persegue a protagonista é ninguém menos que a Ryo no Onna: o fantasma de uma mulher destruída pelo sofrimento do amor.

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Na verdade, Ryo no Onna não é extaamente uma personagem, e sim uma máscara. Pode parecer estranho, mas no teatro noh as máscaras, de certa forma, têm vida própria.

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Embora haja muitas peças (e outras tanto têm sido escritas na modernidade), existe um número limitado de máscaras. Todos os papéis do noh se encaixam nestas categorias, que denotam não apenas aparência física, mas o próprio caráter da personagem.

Não são os papéis que vestem as máscaras; são as máscaras que vestem os papéis.

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Eu não precisei saber mais nada para decidir que o teatro noh era uma experiência que eu precisava viver. O que eu encontrei foi uma aventura tão sobrenatural quanto as histórias interpretadas no palco.

Ao longo desses artigos, eu narrei a vocês vários de meus passeios pelo Japão. Alguns mais turísticos, outros nem tanto. Nenhum deles, porém, foi mais exclusivo de japoneses do que esse.

O choque começou ao chegar no teatro. Nossa performance foi no Teatro Nacional de Noh em Tóquio, um prédio deslumbrante e moderno, verdadeira Sala São Paulo da dramaturgia nipônica.

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A pompa se refletia na indumentária. Foi o primeiro (e único) lugar no Japão em que encontrei japoneses (e não turistas) socialmente vestidos com kimonos.

Foi também o único lugar em que até mesmo o preço de algumas coisas na lojinha estava escrito em kanji (!). Por mais que a Vivian tenha tentado comprar o libretto, o staff simplesmente se recusou a nos vender: deu-nos apenas uma xérox em inglês do roteiro.

A diferença não é apenas estética. O libretto possui todos os diálogos da peça. Isso é importante porque o teatro noh, além de ser cantado em uma espécie de vibrato (como a ópera) é narrado em japonês antigo, que mesmo os nihonjin atuais não conseguem entender.

Felizmente, isso não significa que estrangeiros não podem curtir também. O Teatro Nacional de Noh possui telas na frente de cada assento, com legendas em japonês e inglês.

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O que rola no palco

O Noh é frequentemente chamado de “ópera japonesa”, mas essa comparação é enganosa. Ao contrário da arte de Wagner, peças de noh costumam ser curtas. Tão curtas, na verdade, que geralmente são acompanhadas de peças menores.

Para destilar o clima sisudo, as histórias são intercaladas com um teatro cômico, chamado de kyogen. O espírito é o mesmo do rakugo: uma espécie de “sitcom” da era Edo, descontraída e irreverente.

kyogen

A comparação não é gratuita: as duas artes se comunicam, ou passaram a se comunicar. Nos últimos anos, certas peças de rakugo foram adaptadas ao kyogen, encenadas por um grupo de atores.

Em Showa Genroku Rakugo Shinjuu, o escritor Eisuke Higuchi sugere salvar o rakugo mudando-o à imagem da modernidade. Quão surpreso ele ficaria ao saber que a comédia encontrou outro caminho para sobreviver: mudando os outros à sua própria imagem.

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Contudo, as peças noh são outro universo. Não existem cortinas: observamos os atores entrando e saindo do palco. Este é ligado aos bastidores por um longo corredor diagonal, que eles percorrem bem devagar para não estragar os figurinos. Uma mera montagem de cena pode levar vários minutos.

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Não existe, também, muita ação. Boa parte da história é narrada, seja por um protagonista, seja por um coro. As falas dizem respeito a questões existenciais, e os mesmos pontos são repetidos várias vezes.

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Jiutai, coro de uma peça Noh, ao fundo com kimonos pretos.

Pode parecer uma ladainha, mas eu adorei. Aos meus olhos enviesados de ocidental, o Noh me pareceu um teatro grego.

Tal como nas peças de Sófocles e Eurípides, existe um coro que ora situa a ação, ora nos narra os pensamentos das personagens. Tal como na Grécia, o noh costumava a ser interpretado só por homens, de onde as máscaras femininas. Até mesmo o kyogen lembra as peças de sátiros, interlúdios cômicos montados entre as tragédias.

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Performance de Orestéia, obra-prima de Ésquilo

Curiosamente, não acho que minha opinião seja popular mesmo no Japão. Na apresentação que assistimos, uma parte significativa do público dormiu durante a peça. Se pessoas que vestem kimono e se demovem ao melhor teatro de Tóquio não conseguem se manter acordadas no espetáculo, imagine o cidadão médio.

O noh, de fato, não é para todos. É, no entanto, uma arte inesquecível, que eu amaria experimentar de novo.

Seus fantasmas amargurados ficaram na minha cabeça – e não acho que sairão tão cedo.

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Assista a “Jugemu”, o conto de Yotaro em “Showa Genroku Rakugo Shinjuu” http://www.finisgeekis.com/2017/01/28/assista-a-jugemu-o-conto-de-yotaro-em-showa-genroku-rakugo-shinjuu/ http://www.finisgeekis.com/2017/01/28/assista-a-jugemu-o-conto-de-yotaro-em-showa-genroku-rakugo-shinjuu/#comments Sat, 28 Jan 2017 16:43:02 +0000 http://finisgeekis.com/?p=14726

Aqueles que o acompanham sabem que Showa Genroku Rakugo Shinjuu voltou com tudo na temporada de inverno. Com originalidade para dar e vender, o anime sobre rakugo – uma das artes mais tradicionais do Japão – continua a nos emocionar.

O último episódio nos trouxe uma apresentação de Jugemu, um conto infantil sobre as desventuras de uma criança com um nome longo demais.

Para quem curte a série e tem curiosidade em ver um rakugo interpretado na vida real, tenho uma excelente notícia. Jugemu foi interpretado em inglês por Katsura Sunshine, um rakugoka canadense que mantém a arte viva no século XXI.

A apresentação está disponível no Youtube. Confiram abaixo:

É interessante ver como Sunshine-san (nome artístico de Gregory Robic) é, em muitos aspectos, o Yotaro da vida real. Com uma pegada mais moderna, presença nas novas mídias (e um kimono de folhas de maple) ele consegue fazer a ponte entre o antigo rakugo e o moderno stand-up comedy.

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Aqueles que assistiram ao episódio vão também perceber que sua versão de Jugemu não é a mesma mostrada no anime. Os tempos mudam, e junto mudam as histórias. O velho conto sobre uma criança doente incorporou referências às escolas contemporâneas.

O sonho de Higuchi Eisuke (e o pesadelo de Yakumo Yurakutei) parece ter se realizado. Para sobreviver, o rakugo precisou evoluir.

Nós, que pegamos a história pelo fim, só temos a comemorar. Em razão do sucesso do anime o rakugo parece estar passando por uma renascença no Japão, e já é possível encontrar teatros com apresentações em inglês, voltadas a turistas.

Nada mal para uma arte que, já na distante era Showa, parecia próxima de acabar.

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É possível escrever críticas objetivas? (parte 2) http://www.finisgeekis.com/2016/08/05/e-possivel-escrever-criticas-objetivas-parte-2/ http://www.finisgeekis.com/2016/08/05/e-possivel-escrever-criticas-objetivas-parte-2/#respond Fri, 05 Aug 2016 19:51:36 +0000 http://finisgeekis.com/?p=8830

Todos nós já reclamamos daquele filme excelente que foi malhado pela crítica. Ou daquela obra completamente sem mérito que todos consideram a última bolacha do pacote.

Porém, até que ponto é possível dizer que essa ou aquela obra realmente é boa? Onde termina nosso gosto pessoal e começa a verdade? Quando se trata de arte, existe mesmo uma “verdade”?

Na quarta-feira, eu me reuni ao Diego Gonçalves do É Só Um Desenho, Cat Ulthar do Dissidência Pop, Fábio Godoy do Anime 21 e Vitor Seta do Otaku Pós-Moderno para colocar essas questões a limpo. Hoje, o Kouichi Sakakibara do Animes Tebane se juntou a nós para encarar essa briga.

Você pode conferir nossa discussão clicando aqui.

Você também pode checar a primeira parte da conversa nesse link aqui.

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É possível escrever críticas objetivas? http://www.finisgeekis.com/2016/08/03/e-possivel-escrever-criticas-objetivas/ http://www.finisgeekis.com/2016/08/03/e-possivel-escrever-criticas-objetivas/#respond Wed, 03 Aug 2016 18:06:39 +0000 http://finisgeekis.com/?p=8778 Quem nunca leu (ou se envolveu em) brigas envolvendo essa pergunta que atire a primeira pedra.

A nossa capacidade (ou incapacidade) de julgar uma obra é, sem dúvida, uma discussão quase tão antiga quanto a própria arte.

“Não dêem atenção aos críticos. Lembrem-se que nenhuma estátua já foi erguida em homenagem a um crítico”. As palavras são do compositor Jean Sibelius (1865-1957). No entanto, após a recepção polêmica de blockbusters como Batman V Superman e Esquadrão Suicida, cairiam como uma luva nos lábios de vários espectadores contemporâneos.

Até que ponto críticos não são influenciados pelos seus gostos pessoais e inclinações políticas? Se a beleza “está nos olhos de quem vê”, como determinar o que é bom ou o que é ruim em uma obra de arte? E se tudo for mesmo subjetivo, se o lixo de um for o tesouro de outro, para quê, afinal, precisamos de críticas e análises?

Nessa semana, eu me reúno ao Diego Gonçalves do É Só Um Desenho, Cat Ulthar do Dissidência Pop, Fábio Godoy do Anime 21 e Vitor Seta do Otaku Pós-Moderno para colocar essa questão a limpo.

Você pode conferir nossa discussão clicando aqui.

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Os animes são uma mídia para adultos? (Parte 2) http://www.finisgeekis.com/2016/07/13/os-animes-sao-uma-midia-para-adultos-parte-2/ http://www.finisgeekis.com/2016/07/13/os-animes-sao-uma-midia-para-adultos-parte-2/#comments Wed, 13 Jul 2016 18:12:48 +0000 http://finisgeekis.com/?p=8016

Na semana passada, eu me reuni ao Fábio Godoy do Anime 21, Diego Gonçalves do É Só Um Desenho e Vitor Seta do Otaku Pós-Moderno para responder a uma pergunta que todos já ouvimos diversas vezes.

Os animes que tanto curtimos são, de fato, um entretenimento para adultos?

Nessa semana, Cat Ulthar do Dissidência Pop e Kouichi Sakakibara do Animes Tebane se uniram a nós para refletir sobre a reputação dos desenhos japoneses, ora tidos como “coisa de criança”, ora como “diversão madura”.

E o que, em um caso ou no outro, estaria por trás dessa “maturidade”.

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Vinicius: Na semana passada, o Vitor mencionou os desenhos da Pixar como exemplo de um cinema infanto-juvenil com grande apelo para adultos.

Fico feliz que o estúdio tenha sido mencionado, pois ele é a primeira coisa que vem à minha mente quando penso em “animação” e “públicos-alvo” fora de um contexto japonês.

De fato, as animações da Pixar (e da Disney, antes dela) são verdadeiros primores, prova de que é possível fazer arte para todos os públicos. O próprio Justin Sevakis do Anime News Network as compara, com razão, às obras do Miyazaki e do Mamoru Hosoda.

Eu, mesmo, não tenho como discordar. Com o risco de perder alguns leitores, preciso confessar que, na minha opinião, A Bela Adormecida (1959) é a melhor animação já feita, superando qualquer coisa já produzida no Japão ou em qualquer outro lugar do mundo.

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Dito isso, parece-me sim que essa filosofia de animação, em seu esforço para não impor barreiras à compreensão, é frequentemente menosprezada.

Ou, para usar as palavras do Diego, ser “para adultos” tornou-se, de fato, um “atestado de qualidade” para uma parte do público (embora este “atestado” seja exigido de forma bem seletiva).

Isso com certeza tem menos a ver com a animação em si do que com a subcultura ocidental que veio a se identificar com os animes.

Talvez isto seja sinal de uma nova “contracultura” do século XXI. Talvez seja um mecanismo de defesa de pessoas que passaram a vida ridicularizadas por “gostar de desenhos”. Talvez, tão simplesmente, seja um produto da nostalgia pelos anos 1990, que leva jovens adultos a considerar o entretenimento padrão “da sua época” como o supra-sumo da arte.

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O que eu acho significativo é que essa não é uma opinião restrita a um círculo de fãs, mas disseminada entre os próprios críticos. Um dos maiores exemplos de memória recente foi a repercussão do Oscar de 2015, quando Kaguya Hime não faturou a estatueta de Melhor Animação.

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O grande vencedor

Um site citou a vitória de Big Hero 6 como “prova de que os votantes do Oscar não sabem nada sobre animação”. Outro, que o Oscar “não faz a menor ideia do que fazer com filmes excepcionais”. Um terceiro disse que, se A Viagem de Chihiro fosse apresentada hoje, provavelmente perderia para Lilo & Stitch.

Não quero pôr a mão no fogo para defender o Oscar. Suas políticas internas são, realmente, detestáveis. Porém, me parece claro que os votantes da academia adotam a “acessibilidade” como um critério essencial. Por mais que alguns tenham criticado o prêmio por levar em consideração a recepção infantil, parece haver um consenso de que uma animação que atinja a todos é preferível a um trabalho de nicho.

O que me leva a um outro ponto. Muitos dos animes considerados “adultos” não são apenas sofisticados. Eles requerem, também, uma bagagem cultural muito específica.

É o caso de Mawaru Penguindrum com o atentado ao metrô de tóquio em 1995 , de Joker Game com a Segunda Guerra Sino-Japonesa e de Showa Genroku Rakugo Shinjuu… bem, do começo ao fim.

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Isso me lembra de uma entrevista antiga de Mamoru Oshii. Nela, o diretor disse que animes são uma parte da cultura japonesa, e que seus temas jamais serão apreciados por ocidentais da forma como o são em seu país de origem. Não existe uma “cultura global”. Um japonês, diz ele, jamais entenderia a Guerra do Vietnã, e seria ingenuidade acreditar que a recíproca seja verdadeira.

Como vocês vêem a indústria atual nesse sentido? O próprio Justin Sevakis do ANN disse, ano passado, que a popularidade de animes no Ocidente (com a vinda ao Netflix e ao Hulu) estava fazendo diretores priorizarem gêneros “fáceis de se exportar”.

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Um exemplo entre tantos

Vocês acham que esse pode o futuro do anime (ao menos no curto prazo)? Ou existem sinais de que a indústria esteja adotando um caminho contrário?

Kouichi: A própria existência dos termos demográficos “Seinen” e “Josei” já deixa clara a existência de uma parcela da indústria da animação que quer atingir o público adulto. Infelizmente para o desenvolvimento dessa discussão, acho que ninguém vai ter a coragem de se opor.

Obras com um público bem restrito existem há muito tempo, mas de fato acredito que só recentemente elas começaram a ganhar um espaço maior durante as ditas “temporadas”.

Recentemente, escrevi um artigo sobre Ergo Proxy, que em meio a toda a “dissecação” do tema, eu me vi pesquisando latim e referências filosóficas do século XVIII e XIX para simplesmente começar a entender uma pontinha do enredo proposto. Dizendo isso já podemos imaginar o quão complexa é a obra, e como é restrito seu público alvo e consecutivo a isso, o quão afetado são seus lucros.

O que me chama atenção em todo caso, não é a existência ou não de obras focadas no público adulto nas últimas temporadas, ou existência real de um grande público adulto interessando em animação, mas sim, até onde animações adultas conseguem atrair adultos?

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Não é por nada não, mas no meio “otaku” em que convivo, eu costumo ver muitos adultos mais interessados em Moe e Ecchi, que em obras mais complexas como o já citado Joker Game ou até mesmo Young Black Jack, do fim de 2015.

Dito isso, me surge outra questão: se adultos vão se interessar por obras infantis/adolescentes, até onde é lucrativo produzir obras restritas para o público adulto, que não se mostra muito seletivo?

Diego: Eu tenho um ou dois comentários a fazer nessas últimas considerações do Vinicius, mas antes eu queria comentar algo que o Fábio falou no seu primeiro comentário: o que surgiu primeiro, animes para adultos ou  adultos vendo animes?

Recentemente, eu terminei de ler o livro Quadrinhos – História Moderna de uma Arte Global, que faz uma espécie de panorama dos principais movimentos e artistas relacionados aos quadrinhos da década de 60 até a atualidade.

Uma coisa interessante nele é que se você olhar bem a partir das décadas de 60 e 70 você tem quase que um movimento mundial de surgimento de quadrinhos “adultos” (é quando temos, por exemplo, o underground americano, com quadrinhos que retratam sexo, consumo de drogas e por ai vai)

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E meio que só pra “jogar” mais uma referência, isso me lembra também algo que Paul Gravett comenta no seu livro Mangá: Como o Japão Reinventou os Quadrinhos Ele fala do movimento Gekigá e de como ele veio após algumas gerações que já tinham crescido lendo mangá desde pequenos. Havia, então, uma demanda por esse produto por adultos que não queriam abandonar o hábito de leitura, mas também não queriam os quadrinhos infantis de antes.

Então eu acredito que a resposta a essa pergunta, Fábio, é uma espécie de meio termo. Você tem toda uma geração (ou mais) que de certa forma foi “acostumada” com a mídia, e que conforme foi crescendo não quis “desapegar”, e a isso você junta uma série de artistas que querem expandir os limites da mídia, e bom, aqui estamos agora.

Agora, Vinicius, sobre essa questão de o anime exigir uma certa bagagem, eu diria que isso depende muito de anime a anime, mesmo dentre as obras adultas.

Por exemplo, Master Keaton, anime de 39 episódios de 1998, é um anime episódico que segue o dia a dia de um investigador de seguros e ex-arqueólogo.

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É uma obra criada como direcionada a adultos na faixa dos 30, e sua estrutura lembra muito série americanas como CSI ou alguma outra de investigação, no sentido de ser algo mais formulístico.

Enfim, é um anime que facilmente qualquer leitor ocidental consegue entender sem problemas. Outro anime do tipo seria Galery Fake, sobre uma espécie de anti-herói que trabalha no submundo das venda de arte de forma ilegal. O anime é de 2003 (acredito) e é super acessível.

E eu argumentaria ainda que o próprio Joker Game é sim bastante acessível, porque embora o leitor ocidental não tenha normalmente essa bagagem cultural do lado oriental da segunda guerra, o próprio anime não trabalha realmente muito isso: é apenas “cenário” ali, e fora isso ele é uma história de espiões bastante “comum”, ou ao menos assim me parece.

Isso dito, de fato tem sim animes que exigem algum conhecimento, e que concordaria que as experiências de um espectador oriental e um ocidental seriam completamente diferentes. Exemplos seriam animes que usam pesadamente do folclore e do simbolismo próprio ao Japão, como Uchouten Kazoku, Hotarubi no Mori e, Kyousougiga e outros nessa linha.

houtarubi no mori

Cat: Essa é uma pergunta que, para um melhor entendimento, deve sair apenas do nicho dos animes japoneses, e abordar todo o trabalho de animação que exista, seja de qual país for, para depois adentrar em algo mais específico, como o Anime japonês.

Penso que a razão das animações serem prontamente associadas a um público infantil seja a influência, por vezes perversa, da televisão.

Geralmente animações, sejam ocidentais ou animes, são exibidos em canais ou programas infantis. Todo mundo deve lembrar dos velhos tempos da TV brasileira onde não era difícil poder assistir um anime ou outro, desde Cavaleiros do Zodíaco a Hunter x Hunter. Isso seria culpa do senso comum.

Em uma análise um pouco mais aprofundada do senso comum, verifica-se que quando um desenho possui uma temática mais madura ele seria a exceção, uma deturpação do sentido clássico da animação, que é entreter as crianças, como no caso de South Park e afins. Portanto, o desenho “adulto” seria o estranho no ninho.

Entretanto, sabe-se que as coisas não são bem assim. A animação surgiu como mais uma forma de expressão da arte cinematográfica. Como existem filmes que são infantis, outros não, assim ocorre com as animações, sejam ocidentais ou animes. Tudo é a questão da vontade criativa do seu criador. Isso ocorre em qualquer tipo de expressão artística, como a literatura, a música, as artes plásticas, há material voltado para todas as idades.

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Há animações para todas as idades, para crianças, para jovens, para adultos. No Japão há canais para cada demografia especializada. Como poderia ser classificado como infantil obras como Akira, Ghost in The Shell, Serial Experiments Lain, entre outros? Isso falando de animações japonesas, pois no ocidente não é diferente, como a clássica animação francesa surrealista Planeta Fantástico

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Claro que há obras que transitam entre várias demografias, ou melhor dizendo, muitos diretores, roteiristas e produtores inserem subtextos ou metalinguagem em suas obras no sentido de mascarar certas temáticas que não seriam apropriadas abordar para o público alvo de maneira direta.

Por exemplo, Digimom Tamers, dirigido por Chiaki Konaka, que produz muito material de horror lovecraftiano, que não é nada infantil, mas conseguiu inserir essa temática em uma obra voltada para o público infantil, de uma maneira a não levantar qualquer tipo de controvérsia. Mas um adulto, cito como exemplo eu, ao ver a obra depois de tantos anos verifica que ela mostra nas entrelinhas muito mais que uma criança consegue perceber conscientemente.

Outro exemplo clássico é Sakura Card Captors, somente quando adulto, ou pelo menos mais maduro que fui perceber a tensão homossexual que existe entre os personagens da série (Sakura X Tomoyo e Yukito X Toya). Quando eu era criança, esse tipo de material passava despercebido, assim como ocorre na maioria dos casos. Assistir uma obra na infância e depois assistir na idade adulta, são experiências totalmente diferentes.

Nesse tema eu também poderia citar uma série de postagens que fiz sobre a influência do misticismo gnóstico nos animes. O gnosticismo é uma corrente filosófico/religiosa antiquíssima e nada infantil, entretanto alguns de seus elementos e ensinamentos podem ser observados nas mais diversas obras, como Neon Genesis Evangelion, voltada para o público infanto-juvenil, mesmo possuindo uma complexidade ímpar.

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Assim, digo com certeza, que animes não são uma mídia para adultos, nem para crianças, tampouco para velhos, mas sim uma forma de entretenimento voltada para qualquer público dependendo da vontade do seu criador.

Muitas vezes uma obra voltada para crianças pode ser permeada de elementos adultos, colocados de forma não intencional ou, como ocorre muitas vezes, de forma intencional. Os animes são como qualquer outra forma de entretenimento, podem se encaixar em qualquer nicho ou faixa etária, basta procurar o que te interessa.

Fábio:  Eu me sinto plenamente representado pela resposta do Gato agora, era isso o que eu tentava dizer – o que não quer dizer que essa seja “a verdade”.

A verdade é que, na verdade, nem tentamos responder muita coisa, muito menos encontrar alguma verdade, não é? Com mais ou menos fundamentos cada um aqui deu sua opinião. E tudo bem. Mas no fundo falamos cada um de coisas diferentes e por isso as aparentes discordâncias, suponho.

Anime é pra adulto. Anime é pra criança. Anime é pra todo mundo e não é para ninguém em particular. Cada anime tem seu público-alvo. Sem repetir demais o Gato, alguns são mais infantis, outros são mais adultos, outros possuem temas adultos contados de forma que crianças consigam absorver – não necessariamente entender.

Ao mesmo tempo, a maioria dos animes é produzido para o público jovem adulto, mas são razoavelmente infantis ou infantilizados. Animes infantis e infanto-juvenis são produzidos em menor número absoluto mas com outra lógica de negócio, e costumam ter mais episódios e temporadas – e muito adulto assiste esses animes também. E existe uma minoria de animes realmente adultos.

Historicamente, a animação surgiu como uma técnica cinematográfica, e como toda arte, não era produzida para alguém em particular mas por ser produzida por adultos tendia a ser ela própria adulta ou puramente experimental.

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A Culpa é do Samba, curta da Disney de 1948, originalmente concebido para a participação de Carmen Miranda.

Com Disney nos EUA e com Tezuka no Japão (esse muito influenciado por aquele) a arte da animação se voltou fortemente para as crianças, e o sucesso desses dois artistas e empreendedores provavelmente é responsável pela imagem da animação como arte para crianças até hoje – mesmo que o próprio Tezuka tenha chegado a produzir também para adultos.

Sobre a Disney eu não sei, e por saber tão pouco prefiro apostar que ele também nalgum momento tentou encantar adultos, não apenas crianças – mas sua empresa, hoje, certamente investe em obras para toda família, algumas com as tais mensagens adultas mastigadas para crianças consumirem.

E não é como se em qualquer momento histórico tenha deixado de existir artistas que produzissem para adultos.

São quatro pontos de vista diferentes: o vocacional, o comercial, o artístico e o histórico. Cada um falou um pouco sobre alguns deles. Todos são válidos, nenhum é conclusivo. Se a pergunta for “Anime é para adultos?” no sentido de potencial, a resposta é sempre sim, pode ser. Se for no sentido determinístico, então a resposta é sempre não – anime não é só para adultos, afinal.

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Por dentro do “Fausto” de “Madoka” http://www.finisgeekis.com/2016/06/27/por-dentro-do-fausto-de-madoka/ http://www.finisgeekis.com/2016/06/27/por-dentro-do-fausto-de-madoka/#comments Mon, 27 Jun 2016 22:08:21 +0000 http://finisgeekis.com/?p=7310 É fato conhecido entre fãs de Madoka que o mahou shoujo de Gen Urobochi foi inspirado em Fausto. A homenagem é frequentemente comentada em resenhas do anime, como nessa ou nessa.

Não que a produção da SHAFT tenha feito muitos esforços para esconder o tributo. Frases em alemão tiradas diretamente da peça estão literalmente espalhadas pelas cenas do anime:

Screenshot (7)

madoka fausto quote 2

O que talvez seja menos evidente é quão inspirada a série realmente é. Não se trata apenas de trechos tirados de um dicionário de citações ou da página da wikipedia. Há Goethe suficiente dentro de Madoka para chamá-la de releitura – quando não mesmo de adaptação.

Para apreciá-la, não é preciso ir longe. Basta começar pelo começo:

Um pacto diabólico

kyubey.png

Sou parte da Energia

Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.

– Mefistófeles

 

Madoka quebrou os paradigmas de seu gênero ao apresentar garotas mágicas não como heroínas, mas como vítimas de pacto maldito.

Em vez de um familiar fofinho para acompanhá-las, suas guerreiras do bem encontram Kyubey, uma inteligência alienígena que deseja usá-las como fonte de energia para evitar a morte térmica do universo.

Não é preciso ter lido Goethe para perceber que Kyubey é uma figura diabólica. Porém, sua maior semelhança com Mefistófeles não está em seu objetivo, mas na personalidade.

No anime de Urobochi, o Incubator, como é conhecido, não é exatamente um vilão. Ele não age por maldade e não tem pretensões de dominar o mundo. Nem teria como: sua espécie é incapaz de sentir emoção.

Para ele (e seus superiores), nada do que fazem é pessoal. Garotas serão condenadas a servir de baterias-vivas, mas o universo será preservado. É uma boa barganha. Por que os humanos não conseguem ver as vantagens?

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Por quê?

Não é exatamente a postura que esperamos do Senhor de Todo o Mal. Mas é, curiosamente, a forma como Goethe nos introduz a Mefistófeles.

Ao contrário dos demônios em outras histórias, Mefisto não é exatamente cruel. Tal como Kyubey, ele é um diabo corporativo, que faz “apenas o seu trabalho” Tão “correto” ele é, na verdade, que pede autorização a Deus antes de tentar Fausto com sua proposta.

A produção da SHAFT não se esqueceu da cena. Pelo contrário, até a homenageou em um pequeno easter egg.

Madoka abre seu primeiro episódio com uma citação em código (já decifrado pelos fãs). Ela diz Prolog im Himmel, ou “Prólogo do Céu”, título da cena de abertura de Fausto, em que nosso burocrático demônio pede o consenso do Criador.

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A homenagem, claro, vai muito além do easter egg.

A maldição da felicidade

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Se vier um dia em que ao momento

Disser: Oh, para! És tão formoso!

Então algema-me a contento,

Então pereço venturoso!

 – Fausto

Na antiga lenda alemã, Fausto é um acadêmico amargurado com uma vida insossa. Ao fazer o pacto com o demônio, ele vê a oportunidade de experimentar aquilo que nunca teve: poder, prazer, conhecimento infinito.

Uma dos principais twists do Fausto de Goethe – e um dos motivos pelo qual sua versão é tão celebrada – é que ele vira essas motivações de ponta-cabeça. Na sua história, Fausto não está apenas amargurado.  Ele acredita que não há nada no mundo que possa agradá-lo.

Nem ouro, nem poder, nem luxúria, nem conhecimento. Para Fausto, a vida perdeu o brilho. Nas suas palavras:

Maldita seja a presunção,

Em que o critério se emaranha!

Maldita o encanto da visão

Que no íntimo sensual se entranha!

Maldito o que em vão sonho enleia,

Da fama e glória o falso brilho!

(…)

Do amor, maldita a suma aliança!

Maldita da uva a rubra essência!

Maldita fé, crença e esperança!

E mais maldita ainda, a paciência.”

Se a linguagem pomposa parece distante de Madoka, pense de novo. A quote (ou uma parte dela) aparece ao lado de Mami,  no labirinto de uma das primeiras bruxas derrotadas pelas garotas.

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Fausto está tão certo de que jamais encontrará um desejo que lhe agrade que resolve fazer uma aposta com Mefistófeles. Se um dia ele realmente ficar satisfeito, completamente satisfeito, ele abrirá mão da sua vida.

A “maldição da felicidade”, como ficou conhecida, é umas artimanhas mais sombrias da tragédia. Sem saber (ou, talvez, sem entender o peso da sua escolha), Fausto condena a si mesmo a um sofrimento insuportável e angústia infinita.

Era apenas óbvio, tratando-se de Urobochi, que esse terror psicológico fosse encontrar algum lugar em Madoka. Nem precisamos esperar muito. Ele aparece já nos primeiros episódios.

Embora pareça uma garota bonita, alegre e capaz, Mami Tomoe conta às suas novas amigas que o trabalho de mahou shoujo cobra um preço alto. Esqueçam namorados, amigas ou uma rotina comum. Para quem arrisca a pele lutando contra bruxas, a vida será sempre solitária.

Tudo isso muda quando Madoka entra em cena. Mami, que já tinha se resignado a morrer sozinha, descobre que terá uma companheira para dividir o fardo. No labirinto da bruxa, ela conta à amiga que nunca se sentiu tão feliz.

O resto, como dizem, é história.

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Mami sofre a maldição às últimas consequências, mas fica claro, na série, que nenhuma mahou shoujo está destinada a ser feliz. Tal como Mefistófeles, Kyubey só está interessado em suas almas… e no que acontecerá com elas depois que morrerem.

Kyoko leva o pai à loucura e ao assassinato. Sayaka troca a alma pelo coração de um garoto, que perde para a amiga popular. Homura tenta salvar Madoka, mas se envolve em uma espiral de fracasso e decepção que a transformaria, cedo ou tarde, em uma bruxa.

Não havia como ser diferente. Pois, se alguma coisa merece o adjetivo “fáustico”, ser ludibriado a um destino terrível com certeza é ela.

Afinal…

A esperança e desespero andam juntos

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Não devo; para mim a esperança está morta.

Por que fugir? se estão mesmo a espreitar-me.

 – Gretchen

Usagi é a protagonista de Sailor Moon. Cardcaptor Sakura é a história de Sakura Kinomoto. Seria óbvio, em um anime chamado Puella Magi Madoka Magica, que acompanhássemos a jornada pelos olhos de Madoka Kaname.

Seria, se Urobochi e companhia não nos tivessem presenteado com um dos twists mais celebrados de memória recente. O que de início parecia a jornada de Madoka para se tornar uma garota mágica se prova, na verdade, a saga de Homura.

Aterrorizada ao descobrir o verdadeiro plano de Kyubey, ela troca sua alma pelo poder de voltar no tempo. Para salvar a vida de Madoka no futuro, ela retorna ao passado para evitar que faça o pacto que custará sua vida.

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Seja o que for preciso

Não que esse fosse um plano que ela pudesse realizar. Num paradoxo conhecido de ficções sobre viagem no tempo, Homura não consegue evitar que o inevitável aconteça. Pior ainda, ela só agrava as coisas.

Como o próprio Kyubey reconhece, cada vez que volta ao passado o potencial de Madoka aumenta. Quanto mais forte ela for como garota mágica, mais terrível ela será quando finalmente se transformar em uma bruxa. E maior a destruição que espalhará pelo globo.

É um twist genial, mas que não deve passar batido para quem está de olho nas referências a Fausto. Afinal, também o personagem de Goethe termina sua tragédia em uma corrida desesperada para salvar a mulher que ama.

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Quem duvidava?

Em Fausto, o protagonista usa o poder de Mefistófeles para conquistar uma jovem chamada Gretchen. O feitiço é um sucesso, e a garota se rende aos seus encantos. No entanto, o que era para ser um sonho logo se transforma em um pesadelo.

Para conseguir se encontrar com Fausto, Gretchen dá à mãe um sonífero. Sem ela saber, o que havia no frasco era veneno, e sua mãe morre ao bebê-lo.

Ela engravida e se torna o escândalo da cidade. Seu irmão, Valentim, desafia Fausto para um duelo, mas acaba sendo morto em combate. Gretchen dá à luz e, num momento de desespero, mata o próprio filho afogado. As autoridades a prendem e a condenam à morte.

Antes uma garota feliz de 15 anos, Gretchen testemunha a vida acabar em um dominó de catástrofes.

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Fausto, infelizmente, não estava lá para ajudá-la. Foragido após o assassinato de Valentim, ele cede à proteção de Mefisto. O diabo o leva à Walpurgisnacht, ou Noite de Valpúrgis, uma festa orgiástica em que bruxas se entregam para demônios.

Quando finalmente ele se dá por si, já é tarde demais. Ao retornar à cidade, ele descobre que seu mundo estava fadado à destruição.

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Que Madoka seja a Gretchen de Homura é, novamente, algo que a SHAFT não fez nenhum esforço para esconder. Seu nome como bruxa, revelado no episódio 10, é nada menos que Kriemhild Gretchen.

À primeira vista, se há uma diferença gritante entre Fausto Madoka, ela está justamente na resolução. Madoka possui um final feliz, se bem que agridoce.

Fausto, por outro lado, é tradicionalmente uma tragédia de danação. Na maioria de suas versões, o estudioso que vende a alma ao demônio tem o final que merece: é arrastado ao inferno.

Apenas à primeira vista.

O perdão é para todos

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Inclina, inclina,

Ó Mãe Divina,

À luz que me ilumina,

O dom do teu perdão infindo!

 – Una Poenitentium

Ao contrário do que muitos imaginam, a lenda alemã de Fausto é só metade da tragédiaGoethe não se contentou apenas em contar sua versão do conto. Ele escreveu uma segunda parte, centrada naquilo que lhe acontece depois – em seu caminho para a redenção.

Se você nunca ouviu falar de Fausto II (como a peça é conhecida) não se desanime. A obra é incrivelmente longa (três vezes maior do que sua parte I), raramente encenada e considerada uma das obras mais difíceis da história da literatura.

Nela, após a morte de Gretchen, Fausto acorda em um mundo fantástico, onde embarca em uma jornada pela mitologia. Tudo vai bem a princípio, até que, num momento de fraqueza, ele admite ter tudo o que deseja.

A “maldição da felicidade” o arrebata de imediato, e Mefistófeles, feliz por ter ganho a aposta, surge para tomar sua alma. Para sua surpresa, os próprios céus descem para proteger Fausto.

Acontece que, tal como Madoka, Gretchen também tem um desejo a realizar. Ela renasce como uma figura celestial chamada Una Poenitentium, perdoa os pecados de Fausto e o leva consigo para o paraíso.

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Se parece inacreditável que Madoka tenha ido tão longe atrás de um plot, basta lembrar que não é a primeira vez que isso acontece. Fausto não é novidade na cultura pop japonesa. Pelo contrário, ninguém menos que Osamu Tezuka, o pai do mangá, já havia feito sua própria adaptação nos anos 1950.

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E não qualquer adaptação. Ao contrário de Miyazaki, que se baseou em um dicionário de mitologia para criar Nausicaa, Tezuka era um leitor ávido de Goethe, que devorou várias vezes as duas partes de Fausto. 

E não só de Goethe. Crime e Castigo, de Dostoievski, recebeu o mesmo tratamento.

É estranho, para quem vê de fora, pensar que uma mídia famosa como entretenimento para adolescentes possa ter essa profundidade. No entanto, esta é a mesma mídia em que mesmo desenhos abertamente juvenis colocam sinfonias do Mahler em cenas de beijo.

O que dizer? Anime também é cultura.

NOTA: A versão em português citada nesse texto é a tradução de Jenny Klabin Segall, publicada pela Editora 34

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“O Silêncio”: a crueldade japonesa entre a história e a ficção http://www.finisgeekis.com/2016/05/31/o-silencio-a-crueldade-japonesa-entre-a-historia-e-a-ficcao/ http://www.finisgeekis.com/2016/05/31/o-silencio-a-crueldade-japonesa-entre-a-historia-e-a-ficcao/#comments Tue, 31 May 2016 11:11:21 +0000 http://finisgeekis.com/?p=5622

Fãs de Martin Scorsese sabem que 2016 é um ano para não esquecer. Silence, seu projeto pessoal em desenvolvimento desde 1991, cujo storyboard inspirou o cartaz da 39a Mostra de Cinema de São Paulo,  finalmente dará as caras ao grande público.

Entusiastas de cultura japonesa têm motivo redobrado para acompanhar o lançamento. Trata-se da adaptação de um dos maiores clássicos da literatura nipônica contemporânea.

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Silêncio, como é conhecido no Brasil, é uma obra intrigante. Por um lado, é um livro japonês sobre o Japão. Ao mesmo tempo, é a última história que esperaríamos ler de um nativo.

Escrita por Shusaku Endo, japonês católico, ela narra a perseguição a cristãos no Japão e a crise de fé de alguém que se sacrificou para ajudá-los.

A trama nos leva a um cenário bem familiar para amantes de filmes históricos. Nos século XVI, o Japão era um campo de batalha, e os missionários europeus encontraram braços abertos entre daimyos interessados nas benesses de uma aliança com poderes ocidentais. Alguns, como Date Masamune, chegaram a se corresponder com o Papa.

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Túmulo de Will Adams em Hirado, Nagasaki

Com a unificação sob o shogunato Togukawa, a situação mudou. Portugueses e espanhois passaram a ser vistos com crescente desconfiança. A abertura com o Ocidente não tardou a trazer desafetos dos jesuítas, como Will Adams, náufrago protestante que se tornou samurai de Ieyasu. O catolicismo foi banido. Cristãos japoneses foram forçados a se reconverter. No pior dos casos, acabaram crucificados.

Tais reveses não dissuadiram os jesuítas. Missionários continuaram a desbravar os mares e ensinar sua fé na clandestinidade.  Em 1633, no entanto, a missão portuguesa em Macao recebeu notícias tenebrosas.

Cristovão Ferreira, o mais importante evangelizador em solo japonês, renunciara ao cristianismo e passara a cooperar com seus perseguidores.

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Que devotos japoneses fraquejassem diante da repressão era esperado. Que o líder da missão abdicasse da fé à qual se dedicara a vida toda era inconcebível.

Silêncio acompanha a jornada de um jovem missionário, Sebastião Rodrigues, decidido a desvendar o mistério. Contra os conselhos de todo – até de Alessandro Valignano, o maior evangelizador do Oriente – ele parte ao Japão em um junco chinês para levar a palavra de Deus aos cristãos perseguidos. E, se possível, descobrir o que acontecera a Ferreira.

Endo nos mostra o “coração das trevas”, o terror escondido que foi posto em prática quando as cortinas finalmente se fecharam. Quando camponeses cristãos pegaram em armas contra o governo na Rebelião de Shimabara, a retaliação foi total e inclemente.

Ao perceber que o martírio não dissuadia os cristãos, o shogunato começou a empregar métodos cada vez mais cruéis de execução. Missionários eram grelhados vivos. Mães eram queimadas na estaca junto com seus bebês.

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Quando mesmo esses espetáculos mostraram não surtir efeito, os oficiais apelaram à tortura. Cristãos eram crucificados e largados na praia, lutando para não se afogar com a maré alta, até eventualmente sucumbirem de exaustão. Ou, então, submetidos ao tsurushi: pendurados de ponta cabeça em poços com escremento até renunciarem a sua fé .

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Tsurushi no storyboard de “Silence” (2016)

Quando mesmo essas agruras não funcionaram, o shogunato mudou de estratégia. Em vez de atacar missionários dispostos a morrer em nome da Igreja, passaram a torturar seus rebanhos. Aldeias suspeitas de hospedar evangelizadores tinham camponeses sequestrados, torturados ou executados preventivamente.

O horripilante em Silêncio não é a violência, mas a insidiosidade do plano do shogun. Como certa personagem de Alan Moore, também Inoue, o magistrado que encabeça a caça aos cristãos, sabe que ideias são à prova de bala.

Não adianta caçar hereges pelas montanhas ou queimá-los vivos. É preciso separá-los da fonte, colocá-los contra os missionários. Sem ninguém para ouvi-las e disseminá-las, ideias fenecem.

Rodrigues, o herói trágico de Endo (baseado no histórico Giuseppe Chiara), se vê em um dilema. Passar os dias inutilmente escondido, em condições de miséria piores do que a do próprio Cristo, ou cumprir sua missão como padre e arriscar pôr a vida daqueles que ajuda em risco.

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Por trás de toda a sua roupagem de época, Silêncio é uma fábula universal sobre a dificuldade de manter a fé quando nos vemos condenados a um mundo cruel. Sobre os momentos angustiantes em que, cercados de dor, desespero e sofrimento arbitrário, nos voltamos aos céus e recebemos, como resposta, apenas o silêncio.

Não é à toa que Shusaku Endo é frequentemente comparado a Graham Greene, o famoso escritor católico britânico. Nem que alguns críticos tenham feito a comparação entre os sofrimentos de seu Padre Rodrigues e a discriminação que ele mesmo sofreu como cristão japonês.

Silêncio não é um livro fácil de se digerir – nem como o será, imagino eu, a adaptação que Scorcese está para nos oferecer. Justamente por isso, ele é a formulação perfeita de uma das perguntas mais rotineiras dos que se aventuram pela ficção histórica.

Como admirar o passado em meio a tanto sangue, crueldade e estranheza?

O passado é um país estrangeiro
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Se romances históricos são tão interessantes, é porque frequentemente dizem mais sobre o presente do que sobre o passado que dizem retratar. Autores sempre olham para trás por uma razão. Às vezes, desejam ressuscitar uma relíquia de eras passadas. Em outras, querem se certificar de que continue bem enterrada.

Para alguns, esse tipo de ficção é uma oportunidade para se criticar o que há de errado em nossos próprios tempos. Ao atacar os horrores de uma época menos evoluída, eles escancaram o quão “retrógrado” e “pouco esclarecidos” os cidadãos do presente ainda são.

Nas entrelinhas, todavia, está o julgamento de que o presente – ou, ao menos, nossos valores – são perfeitos, e que a história é o progresso em relação a um futuro utópico. Um futuro que nós, os seres mais corretos e esclarecidos que já pisaram sobre a terra, faremos acontecer – nem que por meio do porrete.

As coisas erradas do mundo são “bárbaras”, “medievais”, “obsoletas”. Se a vida não é perfeita, a culpa é do passado que custa a morrer.

Já para outros  a ficção histórica é um remédio para a incerteza. Quando o “progresso” que veneramos começa a se mostrar perigoso e o futuro nos deixa dúvidas, o passado vira um porto seguro. É um país estrangeiro, um local onde podemos nos refugiar para encontrar respostas – e quiçá, recuperar algo do que nos foi perdido.

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É a mentalidade por trás das “eras douradas”, da veneração aos derrotados em guerras perdidas, da ideia de que nosso passado, por mais abjeto que pareça à luz do presente, é parte do que somos e não pode ser deixado para trás.

Nos melhores casos, essa visão nos traz releituras quixotescas de um ontem glorioso (e valioso). Nos piores, contudo, ela é responsável pelo revisionismo, anti-intelectualismo e obscurantismo.

Verdades conflitantes e desafios do mundo real trazem seus desassosegos. Se a resposta para cada angústia for a fuga a um mundo de fantasia, regrediremos a uma sociedade anterior à razão.

Eu já disse em outra ocasião como ambas as visões podem ser vistas na cultura pop quando o assunto é o Japão. Porém, o que há de ainda mais interessante na terra dos samurais é que ela inspirou também uma visão “média”.

O Japão dos palácios de Nagasaki, mas também das cabanas infestadas de insetos. O Japão sofisticado, mas desumano; artístico, mas insensível; apaixonante, mas amedrontador. O Japão, como Sebastião Rodrigues lamenta, promissor, mas terrivelmente cruel.

Estranho em uma terra estranha

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Endo não foi o único a ilustrar esse passado ambíguo, nem o que teve o maior alcance.

Shogun é um bestseller mais conhecido por inaugurar, ao lado de Raízes, a febre de mini-séries históricas para a TV. Um dos maiores sucessos editoriais do século passado, há quem credite o romance como responsável por abrir as portas do Ocidente ao Japão. E, por consequência, pela proliferação de animes, kanjis e restaurantes japoneses que hoje damos por normal.

O livro acompanha a história de ninguém menos que Will Adams (no livro, John Blackthorne), náufrago inglês que se tornou amigo de Tokugawa Ieyasu, primeiro samurai ocidental e o responsável pela centelha que fez eclodir as perseguições a católicos no shogunato.

Resgatado do mar após se chocar contra os rochedos japoneses, Blackthorne se vê cercado por inimigos. Protestante, piloto de um navio holandês na época em que os Países Baixos estavam em guerra contra a Espanha, sua mera presença é uma ameaça à imagem de uma Europa unida e pacífica que jesuítas tentavam pregar aos daimyos.

Os mercadores portugueses (na época, sob autoridade da Espanha) o temem porque é um concorrente e possível pirata. Os missionários o temem porque previam (corretamente) que ele comprometeria os esforços de conversão. E os nobres japoneses o detestam, pois seus hábitos lhes parecem bárbaros e ofensivos.

Graças à sua lábia, ele encontra um ombro amigo em ninguém menos que Tokugawa Ieyasu (no filme, Toranaga). Para o poderoso daimyo que desejava, ele próprio, virar o Japão de ponta cabeça, Blackthorne parece o aliado perfeito.

Sob a proteção de Toranaga, o piloto inglês se depara com uma cultura diferente de tudo o que conhecia. Por um lado, é uma terra de luxo, beleza e fartura. As roupas e etiquetas de seu povo rivalizam em sofisticação com qualquer corte europeia. Pessoas não têm vergonha de seus corpos e não há tabus sobre a sexualidade.

Por outro, é uma país cruel, desumano e opressor. Plebeus não têm nomes próprios e são designados pela sua profissão. Nobres “herdam” esposas de homens mortos e podem executá-las ou forçá-las ao suicídio. A hierarquia é absoluta, e a desobediência é punida com inclemência – e requintes de maldade.

Acima de tudo, é um país em que a vida humana não parece ter valor, e a morte é onipresente. Traidores e derrotados abraçam a morte por seppuku. Criminosos são sempre executados, independente da gravidade do delito. E samurais podem matar quem quiseram, da maneira que quiseram, pelo motivo que quiserem.

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Em um dos segmentos mais chocantes, Blackthorne é enviado a uma vila para aprender japonês. Se ele não estivesse fluente em 6 meses, diz seu superior, todos os habitantes seriam passados pela espada.

Não por acaso, é a mesmíssima imagem que Shusaku Endo invoca em sua fábula sobre a crueldade:

Ao chegar na entrada da aldeia, o miado baixo do gato se tornou cada vez mais audível. Em minhas narinas o vento soprou um terrível fedor que quase me fez vomitar. Era como o de peixe podre. Porém, quando eu adentrei a aldeia, eu me vi cercado por um silêncio estranho e amedrontador. Não havia uma única pessoa  lá.

Eu não vou dizer que era uma cena de desolação vazia. Pelo contrário, era como se uma batalha tivesse recentemente devastado todo o distrito. Espalhados por toda a estrada estavam pratos e copos quebrados, enquanto que as portas haviam sido arrombadas, de maneira que as casas jaziam abertas. O miado baixo do gato da cabana vazia parecia de alguma forma impudente, como se o animal estivesse espreitando descaradamente pela aldeia.

Por muito tempo eu permaneci aturdido e em silêncio no meio da aldeia. É estranho de dizer, pois eu não sentia nenhuma ansiedade, nenhum medo. A única coisa que continuava silencionamente a se repetir em minha cabeça era: por que isso? Por quê?

Em Shogun, esse choque cultural não está só no conteúdo, mas também na produção. Em uma decisão quase estapafúrdia de tão ousada, sua minissérie foi filmada em japonês sem qualquer legenda ou dublagem. Salvo os diálogos com seus inimigos ibéricos e com uma charmosa intérprete pela qual se apaixona, somos apresentado ao Japão como o foi Blackthorne: completamente no escuro.

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Um presente ao inimigo

De certa forma, Shogun Silêncio não poderiam ser mais diferentes. Ainda que contado sob a perspectiva de um estrangeiro, o livro de Endo expressa a dor de um japonês fascinado por uma religião que se diz universal, mas que parece incompatível a sua cultura – em suas próprias palavras, “uma muda plantada em solo estéril”.

Clavell vem de um mundo oposto, mas compartilha com Endo algo muito pessoal. Tal como o autor de Silêncio e sua discriminação religiosa, ele teve de pôr a limpo seus próprios traumas pessoais.

Na sua juventude, Clavell serviu no exército britânico e lutou na Segunda Guerra. Ele foi ferido em combate e capturado pelos japoneses, cujos destratos com prisioneiros incluiam trabalho forçado, mortes por exaustão e uso como cobaias humanas para o desenvolvimento de armas bacteriológicas.

Clavell teve sorte, pois foi remanejado para uma das prisões menos dantescas do Império Japonês. Entretanto, boa parte de seus colegas foi recrutada como mão de obra escrava e morreu por maus tratos. Em outra prisão na mesma cidade, prisioneiros chegaram a ser deixados sem água e sanitação por 5 dias em retaliação pela fuga de soldados.

Não seria surpreendente se Clavell desenvolvesse um ódio pelo Japão. Muitos veteranos da Guerra do Pacífico contaram ter sentido uma aversão parecida, a ponto de nunca terem conseguido perdoá-los. O escritor, que registrou diretamente suas experiências em outro livro, Changi, teria tudo para ser apenas mais um exemplo.

A verdade, no entanto, não poderia ser mais diferente. Nas suas palavras,

Shogun foi escrito com a expectativa de ser a ponte entre o Oriente e o Ocidente e para enriquecer e tentar explicar a Terra dos Deuses para o mundo ocidental. É uma história apaixonadamente pró-japonesa, concebida com carinho. De certo modo, é o meu presente ao Japão.

Que um ex-prisioneiro de guerra resolvesse dar “um presente” à nação dos seus velhos inimigos parece, à primeira vista, uma grande loucura. Contudo, nós talvez não devêssemos ficar tão surpresos.

A mente é o seu próprio lugar

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Eu já disse em outro artigo como Saburo Sakai, famoso ás japonês da Segunda Guerra, desenvolvou uma imensa admiração pelos Estados Unidos, a ponto de elogiar Paul Tibbets, o piloto que lançou a bomba em Hiroshima.

Caso ainda mais próximo é o do também escritor J.G. Ballard, grande nome da ficção científica. Nascido no distrito britânico de Shanghai, Ballard foi capturado pelos japoneses e confinado ao campo de concentração de Lunghua.

Em uma fase da vida em que a maioria dos jovens só pensa em se divertir e ser popular com as garotas, o futuro escritor testemunhou coisas que ninguém deveria ser obrigado a ver: espancamentos, falta de comida, civis forçados a caminhar em marchas intermináveis, morrendo de exaustão pelo caminho.

Apesar de tudo isso, suas memórias do cárcere não são ruins. Se ele frequentemente se deparou com o pior da crueldade humana, também pôde brincar, estudar, fazer amigos e ser um adolescente feliz. Sua relação com os capatazes do campo de concentração era similar a de um estudante rebelde para com a diretora de escola.

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Tratando-se de Ballard, é apenas lógico que sua história fosse terminar em literatura. Tal como Clavell, ele imortalizou sua experiência no romance Império do Sol, adaptado ao cinema por Steven Spielberg e Tom Stoppard.

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Quebrando o “Silêncio”

Em dado momento no romance de Endo, o “silêncio” que tanto angustia seu herói finalmente é rompido, e Cristo fala a Sebastião Rodrigues. Sobre o que ele diz, não darei spoilers. Se o contato com a divindade é um alívio ou o último dos tormentos – o abismo que nos olha de volta depois de ser encarado por muito tempo – caberá ao leitor julgar.

Mais importante é notar que esse foi um desafio que também Clavell e Ballard, cada qual à sua maneira, enfrentaram. Em suas guerras pessoais, cada um desses autores teve, assim como Rodrigues, de achar forças onde não sabiam se a iriam encontrar.

Como escreveu o crítico Roger Ebert sobre a adaptação de Império do Sol,

O filme cai na armadilha de tantas histórias de guerra e transforma terror em nostalgia. O processo é familiar. Experiências de guerra são brutais, dolorosas e trágicas, mas às vezes elas convocam o melhor nos seres humanos. E quando a guerra acaba, os sobreviventes eventualmente começam a sentir saudades daquele tempo em que eles haviam se superado, quando, nos melhores e piores momentos, eles viveram no seu auge.

O jovem Padre Rodrigues, zarpando ao Japão em uma missão suicida, disposto a virar mártir para ajudar cristãos perseguidos, não poderia concordar mais.

O ser humano tem uma enorme facilidade para aceitar a violência. Por incrível que pareça, isto vale também para a violência que sofremos. É apenas quando a dor se torna arbitrária, quando sentimos que o martírio não levará a nada, quando duvidamos da causa pela qual estávamos disposto a perder tudo, que o calafrio corre por nossas espinhas.

Quando percebemos que palavras grandes como “Deus”, “justiça”, “ordem”, “pátria” e tantas outras são bengalas para caminharmos por um mundo indiferente, precisamos buscar meios para “romper” o silêncio. Ou, então, aprender a aceitá-lo.

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“The Gods Lie.”: Os adultos ausentes dos mangás (e por que funcionam tão bem) http://www.finisgeekis.com/2016/05/09/the-gods-lie-os-adultos-ausentes-dos-mangas-e-por-que-funcionam-tao-bem/ http://www.finisgeekis.com/2016/05/09/the-gods-lie-os-adultos-ausentes-dos-mangas-e-por-que-funcionam-tao-bem/#comments Mon, 09 May 2016 22:58:50 +0000 http://finisgeekis.com/?p=5050

Dia das mães. Não há ocasião melhor para relembrar os percalços e emoções de nossa vida familiar – ou das de nossas personagens favoritas.

Claro, os dramas que gostamos de ler ou assistir costumam ser bem diferentes dos que desejamos para nós mesmos. Como disse Tolstói, todas as famílias felizes são iguais, mas cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira. E nada faz uma história mais interessante do que a variedade.

O autor de Anna Karenina não estava pensando em mangás e animes, mas seu comentário cairia como uma luva. No site TV Tropes, os exemplos de conflitos familiares em desenhos e quadrinhos japoneses são tão numerosos que merecem artigos à parte.

Talvez justamente por tocaram em dramas tão íntimos, que nos despertam tanta compaixão, famílias ausentes (ou problemáticas) são um truque tão usado para ganhar os corações do público.

sakura nadeshiko

Fãs do estilo podem aproveitar o momento para conhecer (ou revisitar) uma de suas obras menos conhecidas. O curto mangá Kami-sama ga Uso o Tsuku. – em inglês, The Gods Lie., uma pequena joia dos últimos anos,  acaba de ganhar uma nova edição anglófona.

Os deuses também mentem

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Com sua capa em cores pastel, O one-shot de Kaori Ozaki (autora de Immortal Rain) não é à primeira vista um título que chama a atenção. Basta virar as páginas, no entanto, para percebermos que estamos diante de algo excepcional – e incrivelmente sério.

A trama acompanha Natsuru, uma criança de 11 que sonha em ser jogador de futebol. Órfão, vive sozinho com a mãe. Seu treinador, que estima como um pai adotivo, é subitamente afastado e substituído por um outro, mais jovem e agressivo.

Ele ridiculariza Natsuru na frente de seus colegas e lhe diz que não tem talento para o esporte. Seus colegas de time, antes tão entusiasmados como ele, começam a fazer outros planos para o futuro. Seu sonho de se tornar um jogador profissional começa a se esfarelar.

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O destino o leva de encontro a Rio, uma colega de classe que vive sozinha com seu irmão. Tal como ele, Rio também é orfã (em seu caso, de mãe). Tal como ele, Rio se sente desamparada. Seu pai, pescador de caranguejos, passa meses a fio no litoral do Alaska.

Juntos, eles aprendem a se dar conforto em um mundo que não parece ter sido feito para eles, do qual os “deuses” – os adultos – parecem ter desistido.

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The Gods Lie. é impressionante – e às vezes chocante – porque nos mostra aquele lado da juventude que sabemos existir, mas que temos medo de encarar.

Em alguns aspectos, ele é uma versão PG-13 de Umibe no Onnanoko, do qual já falei aqui e aqui. Se no mangá de Inio Asano a negligência leva dois jovens a uma rotina auto-destrutiva de sexo, os protagonistas de The Gods Lie., mais jovens (e bem mais inocentes) encontram paz tornando-se uma “família” de mentira.

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Qualquer semelhança não é mera coincidência

Pais ausentes, filhos pródigos

O mangá de Kaori Ozaki desafia até o que entendemos por “sair do ninho” – e, consequentemente, o que define o gênero coming of age como um todo.

Existe uma ideia bastante arraigada de que a adolescência é a época da rebelião e da independência. Crescemos para sair da manada e nos tornarmos indivíduos, donos do nosso próprio nariz, responsáveis por nossa própria felicidade.

É a visão por trás de quase todas as histórias de formação, de O Despertar da Primavera e Um Retrato do Artista Quando Jovem até os mais recentes animes slice of life. A família, a escola, a sociedade e até nosso próprio corpo são “teias” nos impedindo de voar, obstáculos a serem superados na jornada pessoal por liberdade.

É, também, a visão por trás do escapismo, da ideia de que nossos anos de ouro podem ser uma porta para um mundo paralelo, longe dos perrengues da vida adulta. A adolescência vira a última barreira antes do terrível mundo real, a “calmaria antes da tempestade” em que podemos encarnar qualquer personagem, experimentar qualquer coisa e viajar para qualquer universo.

Há, porém, uma outra visão (bem menos glamurosa) do coming of age. É a ideia do crescer como “tomar a tocha” da velha geração, integrar-se ao sistema, fazer as pazes com o establishment.

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É saber que nenhuma pessoa é uma ilha, que por mais sedutor que pareça o sonho de fugir com o circo, ele será apenas um sonho. E que, por mais chato seja aceitar a autoridade daqueles que “querem nosso melhor”, eles muitas vezes têm a completa razão.

The Gods Lie. nos mostra exatamente esse ponto de vista. Os “deuses” – pais, mentores, professores –  “mentem” porque se esquivam da sua obrigação de ajudar os jovens a achar seu lugar no mundo. E Natsuru e Rio sofrem porque são adolescentes e não sabem navegar sozinhos as ondas do universo adulto.

Quem prefere o cinema aos quadrinhos nem precisa ir tão longe. The Wolf Children, longa de Mamoru Hosoda e um dos animes mais explícitos sobre a importância da maternidade, nos traz o mesmíssimo conflito.

Na trama, uma mulher se envolve com um homem-lobo, com quem tem duas crianças. Quando seu marido morre, ela se vê obrigada a criar sozinha um casal de filhos divididos entre a natureza animal e a vida em sociedade.

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Para Ame e Yuki, as crianças-lobo do título, “crescer” é uma espécie de sacrifício. É mudar para se inserir em uma comunidade, seja ela a floresta, de seu pai, ou a civilização humana, de sua mãe.

Não é à toa que algumas pessoas interpretaram o filme como uma alegoria sobre os filhos de imigrantes, forçados a escolher entre abraçar a cultura de seus pais ou abandoná-la para se acomodar à  “nova pátria”.

É interessante imaginar o que esses dois adolescentes falariam um para o outro. O que o sonhador, “rebelde sem causa”, desafeto do sistema teria a dizer para o jovem regrado, que só deseja um lugar para chamar de seu.

Felizmente, não precisamos imaginar.  Este diálogo já foi escrito. E rendeu um dos mangás mais tocantes e pés-no-chão a abordar o tema.

Entre a bala e o kompeitou

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Satougashi no Dangan wa Uninukenai, também conhecido como Sugar Candy Bullets Can’t Pierce Anything  ou  A Lollipop and a Bullet, é justamente esse encontro.

Nagisa, nossa protagonista, é uma órfã em uma cidade minúscula do interior. Seu pai, pescador, morreu em uma tempestade. Seu irmão, antes um aluno brilhante, sofreu um trauma e se tornou um recluso. Sua mãe, única trabalhadora da família, tem de labutar dia e noite para sustentar os filhos.

O sonho de Nagisa não é virar uma idol, ser notada pelo senpai ou montar uma banda. É sair da escola e arrumar um emprego o mais rápido possível para contribuir àqueles que ama.

E não qualquer “emprego”, mas o mais caxias (com o perdão do trocadilho) de todos: as forças armadas. Vestir um uniforme, marchar em fileiras e abaixar a cabeça aos superiores em troca de um bom salário é, para ela, o futuro ideal. Escapismo e rebeldia são coisas de jovens ricos com problemas de menos e tempo demais.

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Eis que Nagisa conhece Mokuzu, a filha de um popular astro de pop. Ela vive seu período de chuunibyou, dizendo aos outros ser uma sereia e esbanjando os privilégios de uma vida milionária. Em suma, a combinação de tudo o que Nagisa mais odeia.

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Não se deixem enganar pelas aparências. A Lollipop and a Bullet não é um slice of life açucarado, nem (pasmem!) um shoujo ai. Ainda mais do que The Gods Lie., o mangá é um retrato penetrante de uma tragédia juvenil.

Nagisa descobre que Mokuzu usa a fantasia para se esconder de um cotidiano aterrorizante que sofre às escondidas. Na medida em que entra no mundo deturpado da amiga, ela percebe que têm mais em comum do que imaginava.

De uma forma ou de outra, ambas desejam fugir. De uma forma ou de outra, as duas compartilham um mesmo sonho. Nagisa quer uma “bala” (munição) para furar a prisão da adolescência e abrir um caminho para o mundo adulto. Mokuzu também quer uma “bala” (doce) para suportar os horrores de sua vida pessoal.

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Como bem lembra o Dissidência Pop, poucas imagens expressam melhor a dor da inocência perdida. “Doce” é o esperado que garotas dessa idade sejam. É a palavra que usamos para descrever personagens coloridas, que transbordam de imaginação. É, também, a propriedade do açúcar. E o açúcar, não podemos esquecer, mascara sabores.

O problema, como tudo no escapismo, é que “balas” de açúcar não perfuram nada.

Lendo The Gods Lie. e A Lollipop and a Bullet lado a lado, é impossível não notar o quão parecidos são ambos os mangás. Não apenas em temática ou em seu comentário agridoce sobre a adolescência, mas nos detalhes de seus enredos, nos mesmos twists improváveis e até na composição de cenas.

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Se pensarmos bem a respeito, a semelhança não é lá tão estranha. O escritor Alexandr Solzhenitsyn certa vez disse que a função da arte é dizer a verdade. A ciência é transitória; a política, mentirosa. Cabe à arte nos mostrar as verdades interiores, abstratas, que fazem tudo ter sentido.

Cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira. Contudo, algumas dores são compartilhadas. E se as histórias de Natsuru e Nagisa são tão parecidas – e tão emocionantes – é porque tocam na mesma verdade.

Há algo mais forte do que isso? Eu acho que não. Afinal, como diz um velho ditado russo, uma palavra de verdade pesa mais do que todo o mundo. 

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Inio Asano e a “voz” da nossa geração http://www.finisgeekis.com/2016/04/04/inio-asano-e-a-voz-da-nossa-geracao/ http://www.finisgeekis.com/2016/04/04/inio-asano-e-a-voz-da-nossa-geracao/#comments Mon, 04 Apr 2016 22:38:33 +0000 http://finisgeekis.com/?p=3731 Estaria a juventude sem rumo?

Essa é uma daquelas perguntas que custam a ficar velhas (com o perdão do trocadilho). Já faz mais de 25 anos que Mundo Fantasma sugeriu a mesma coisa. De lá para cá, não parecemos estar mais certos. Ou menos perdidos.

No universo do mangá, é difícil falar sobre essas questões sem pensar em Inio Asano, autor de alguns dos mangás mais impressionantes (e bizarros) de memória recente, que tem voltado aos holofotes nos últimos anos.

Nomeado para o prêmio Eisner em 2009, convidado para o Salão do Mangá de Barcelona em 2015 e incluído na seleção oficial do Festival de Quadrinhos de Angoûleme esse ano, Asano é uma das maiores estrelas da nova geração de mangakás.

Misturando ultra-realismo com a caricatura, o absurdo e o realismo fantástico, Asano encontrou um estilo inconfundivelmente seu. No espaço de alguns tankobons, ele consegue passar de um detalhismo digno de Makoto Shinkai

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às personagens propositalmente distorcidas do Satoshi Kon de Paranoia Agent e Tokyo Godfathers.

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A comparação com o mundo do anime não é à toa. Asano é conhecido pela vibe cinemática de seu trabalho, a ponto de incluir “trilhas sonoras” em suas páginas. Não por acaso, seu maior sucesso, Solanin, foi adaptado em um filme de banda em 2010.

Mais do que pela técnica, Asano é celebrado como uma “voz” da juventude atual. Seus quadrinhos foram elogiados por fugir dos estereótipos do mangá e mostrar a vida “nua e crua” dos jovens adultos, com tudo o que ela tem de absurdo, deprimente e patético.

Não por acaso, o jornal japonês Yomiuri Shimbum chamou seu universo de um “mundo descontente”. Suas personagens são indecisas, entediadas, sem coragem de abrir mão dos privilégios da juventude e com medo de mergulhar de cabeça nas obrigações adultas.

Qualquer um que faça faculdade ou a tenha terminado recentemente pode simpatizar com esses dramas. Um cliché que aprendemos na infância (e que alguns carregam por muito tempo) é o de que tudo se resolve se tivermos liberdade para fazer o que quisermos. Porém, quando esse dia finalmente chega, logo entendemos que liberdade total é sinônimo de tédio, e viver sem uma rotina é pior do que não viver.

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É um detalhe pequeno, mas que faz todo o sentido do mundo para quem depende dos pais, trabalha meio-período ou faz uma pós-graduação em dedicação exclusiva e tem metade do dia livre para olhar para o teto e se lembrar de que não tem mais 18 anos.

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Aí, talvez, esteja a razão de seu trabalho fazer tanto sucesso. E não parece uma coincidência que Asano tenha despontado justamente no Japão. Afinal de contas, em poucos lugares do mundo essa discussão aparece com mais frequência e de forma mais acalorada do que na Terra do Sol Nascente.

Jovens (in)felizes…

De fato, a ideia de que o Japão é uma terra de jovens infelizes é um lugar comum quase tão popular quanto o White Day e os natais no KFC.

Não é preciso ir muito longe para ler que a Terra do Sol Nascente é o país do suicídio, o lugar onde as pessoas são obrigadas a morar em gavetas e trabalhar até morrer. Mesmo os animes, supostamente um entretenimento escapista, estão cheios de jovens que fogem da escola, que se trancam dentro de casa ou que inventam calamidades para fugir da vida real.

O argumento é que os tempos andam tão difíceis, a esperança tão em baixa e as ofertas de trabalho tão insuportáveis que os adolescentes fazem de tudo para evitar a vida adulta – e os adultos, por sua vez, vendem a própria alma para poder voltar à adolescência. “Ter alma de 12 anos”, se antes um insulto, hoje é uma virtude que muitos ostentam com orgulho.

Não é à toa que Inio Asano foi chamado de uma “voz da nossa geração”. Solanin acompanha um grupo de jovens divididos em arranjar empregos meniais ou se dedicar ao sonho adolescente de montar uma banda. Subarashii Sekai nos mostra pessoas infelizes cuja vida é virada de ponta cabeça por algum feito absurdo. E sua obra-prima, Oyasumi Punpun, é a odisséia de um “garoto” que parece ter passado pelo child broiler de Mawaru Penguindrum:

punpun

O rabisco, não a garota

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Levando tudo isso em consideração, parece evidente que Asano assina embaixo do que já sabemos. O mundo é insuportável. A vida contemporânea é vazia de perspectivas. Os sonhos de infância são ilusões. Quando crescemos, nós invariavelmente nos unimos ao “sistema”, em uma rotina cinza e entediante até o dia em que morrermos. Correto?

Não exatamente.

… de um País Desesperado

Quem dá a pista é o próprio Asano. Em seu mangá atual, Dead Dead Demon’s Dededededestruction (que título!), ele nos entrega o ouro de lambuja:

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Noritoshi Furuichi não é famoso no ocidente, mas se tornou uma sensação no seu país natal. Com apenas 25 anos (e sem nem mesmo terminar um doutorado em sociologia), ele publicou um livro que chacoalhou completamente o que todos pensavam sobre as novas gerações.

Ele diz que os jovens nunca estiveram tão felizes.

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Noritoshi Furuichi

Contrariando a sabedoria popular, ele cita pesquisas que apontam que 80% da juventude japonesa diz estar satisfeita com a vida. Entre estudantes de ensino médio, não menos de 90% se consideram felizes.

Furuichi não quer dizer que os problemas não existem, mas que as pessoas conseguem ser felizes a despeito disso. Há muitas opções baratas para quem deseja consumir. A internet (no Japão, uma das mais rápidas do mundo) permite que mesmo quem segue uma rotina cruel se divirta e interaja com o mundo. Se tudo falhar, resta o fato de que muitos jovens vivem com ou dependem dos pais, e podem sempre recorrer a eles caso tudo vá para as cucuias.

Essa geração sabe que seu conforto não vai durar para sempre, e que cedo ou tarde serão jogadas no mundo “real”. Para Furuichi, a solução que encontraram foi a de uma espécie de carpe diem. Em vez de se preocupar com os problemas do futuro, as pessoas preferem curtir o aqui e o agora.

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E pudera. Se nós precisássemos resumir a época em que vivemos em uma única palavra, poucas cairiam melhor que “incerteza”. Nossa profissão pode ser substituída antes de terminarmos a faculdade. Uma crise econômica pode nos levar do luxo ao lixo em menos de um ano. Os desandos da política deixam todos com medo. Não é raro, nas redes sociais, se deparar com desabafos de que “no futuro, os historiadores não saberão explicar o que aconteceu”.

O Japão não precisa importar problemas; já tem os seus próprios. A população fica cada vez mais velha, e os custos da previdência logo vão pesar de vez sobre os impostos. Com a competição com a China e os Tigres Asiáticos, a economia arrisca despencar. A rotina profissional é sofrida, e as condições de trabalho, desumanas. Desastres naturais são frequentes, e há sempre a Coreia do Norte para armar um sequestro se tudo falhar.

As novas gerações poderiam se preocupar com o futuro e passar as noites em claro em angústia. Ou podem simplesmente curtir a vida enquanto ainda podem, ler mangás e jogar Monster Hunter beliscando um pacote de Pocky.

É esse “mundo fantasma” que Inio Asano se tornou um expert em retratar.

Em Solanin, uma garota que vive com o namorado (mas que ainda recebe comida da mãe) prefere largar tudo e ajudar os amigos a montar uma banda. Curtir o verão desempregada e se arriscar trazendo o sonho à realidade é, para ela, melhor do que envelhecer em um escritório entediante.

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Dead Dead Demon, cuja protagonista aparece lendo o próprio livro de Furuichi, mostra esse carpe diem de forma ainda mais direta. Aqui, Tóquio se tornou literalmente o campo de batalha de uma guerra com alienígenas, e um grupo de colegiais prefere curtir a adolescência a se preocupar com picuinhas como bombardeios, balas perdidas ou o colapso da civilização.

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Umibe no Onnanoko, publicado em inglês como A Girl on the Shore, é um exemplo ainda mais visceral. Sua história acompanha um casal de adolescentes excluídos que decidem fazer sexo sem compromisso.

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O que para outros autores seria a deixa para uma comédia romântica ou um sonho molhado, nos pincéis de Asano vira o que de fato é: uma desgraça. Não há nenhuma felicidade em ver o outro apenas como um corpo para saciar nossos desejos. Sem amor, amizade ou pelo menos respeito, nos transformamos em meros pedaços de carne para nossos parceiros usufruírem.

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A “paixão” evervescente de Sato e Isobe (os protagonistas da HQ) não tem um pingo de prazer, realização pessoal ou desejo de se vangloriar. É apenas uma desculpa para não encararem o mundo real. Tal qual uma anestesia, é uma tentativa de se esconderem em sensações fortes para esquecer os problemas que vivem dia após dia.

Que o leitor fique avisado: é também um dos raros mangás não-hentai que não tem medo de incluir cenas de sexo explícito. Não é à toa que Asano teve seu trabalho reconhecido na França. Seus mangás podem ser estranhos, excessivos e chocantes, mas eles estão fartos da sinceridade  que há muito se tornou marca do que há de melhor no BD francês.

Perdidos ou encontrados?

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Se há algo que podemos dizer de Asano, é que nunca se contentou em seguir modas. O seu retrato da juventude não é nem um pouco diferente.

Se a imagem “tradicional” do jovem japonês é a de um sujeito torturado, preso nas bitolas da sociedade, o jovem de Asano é sarcástico, bem-humorado, patético. Mesmo nos seus momentos mais depressivos, seus mangás não abrem mão da ironia ou de alguma forma de leveza redentora.

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Se o “mal da nossa geração” é visto por outros como uma tragédia, para Asano é uma farsa. Talvez o fato de ter ele próprio vivido uma juventude conturbada, saltando de emprego a emprego, desprovido da certeza de que sua vocação vingaria, tenha feito a diferença.

Sobre a dor, a perda e a falta de propósito, o seu ponto de vista é irreverentemente jovem.

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De onde vieram os anti-heróis dos quadrinhos? http://www.finisgeekis.com/2016/03/21/de-onde-vieram-os-anti-herois-dos-quadrinhos/ http://www.finisgeekis.com/2016/03/21/de-onde-vieram-os-anti-herois-dos-quadrinhos/#comments Mon, 21 Mar 2016 23:15:41 +0000 http://finisgeekis.com/?p=3083

Entre a nova (e violenta) adaptação de Demolidor, os ecos de Frank Miller em Batman vs. Superman, o status de “lenda cult” de Christopher Nolan e a vinda da Guerra Civil para os cinemas, tudo aponta para a mesma coisa: o anti-herói está na moda. E pretende ficar.

Por si só, isso não é uma surpresa. Seja na literatura, nos games ou nas séries de TV, o velho confronto do “bem” versus o “mal” parece ter sido substituído por algo mais sofisticado – e muito mais sanguinolento.

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Roteiristas, quadrinistas e desenvolvedores descobriram (como John Milton já havia feito muito tempo atrás) que personagens com defeitos e personalidades complexas são muito mais cativantes. Afinal de contas, ninguém é perfeito. E nada enriquece mais uma obra de arte do que heróis verossímeis.

Mesmo assim, seria um erro pensar que esses protagonistas tortos, interessantes e (pasmem) carismáticos simplesmente caíram do céu. Nos quadrinhos  americanos, em especial, eles foram trazidos por uma geração específica, tumultuada e muitíssimo criativa.

Seguem, abaixo, três das principais “mães” dos anti-heróis das HQs.

1- A decepção com a política

A coisa que não podemos esquecer sobre quadrinhos de super-heróis é que sua popularidade veio nos anos 1940, a década da Segunda Guerra Mundial, do ufanismo e da maior radicalização política já vista na história.

Para além de uma luta do “bem” contra o “mal”, a mensagem desses quadrinhos era a de que as coisas se resolviam dentro do sistema. Não era apenas o bom-mocismo que estava em jogo, mas todo um projeto de governo, sociedade e bons costumes.

Super-heróis até podiam ser cruéis e implacáveis, desde que obedecendo às ordens “de cima” ou, no mínimo, atendendo ao espírito de seu tempo.

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Ninguém tinha pena do Tojo

Se hoje esses quadrinhos nos parecem estranhos (quando não grotescos), a mensagem que passavam era extremamente popular. Diante da ameaça da guerra total, heróis que colocavam ditadores no seu lugar, colaboravam com a polícia e protegiam crianças era o que todos queriam ver.

A partir dos anos 1970, isso deixou de ser verdade.

Com o conflito no Vietnã, os americanos entenderam que a guerra nem sempre é para o “bem”, e que o combate é bem menos glorioso quando se está do lado perdedor. Com a Crise de Reféns no Irã e o Caso Watergate, o governo americano mostrou que podia errar e ser corrupto. A Crise do Petróleo jogou a economia para baixo, e a Guerra Fria trouxe o medo de um holocausto nuclear. Como confessou Frank Miller, “o mundo estava ficando louco”.

Desconfiadas da autoridade, as pessoas buscaram seus herois em outros lugares. Em Watchmen, Rorschach se recusa a abrir mão de seu código de conduta, mesmo que isso traga a promessa de paz mundial. Em O Retorno do Cavaleiro das Trevas, Batman prefere se tornar um criminoso a virar um novo Superman, um herói “do partido” que só luta as batalhas autorizadas pelo presidente.

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Porém, a mudança mais impressionante foi a do maior ícone do bom-mocismo patriótico: o Capitão América. “Ressuscitado” em 1964, Steve Rogers se sente mais e mais decepcionado com os rumos da política. Em 1974, ele  passa a combater o crime como o Nômade, um herói, como o nome já diz, sem pátria.

Seu momento definidor veio também das mãos de Frank Miller. Em Daredevil: Born Again, ele deixa claro que os Estados Unidos que defende são uma ideia, não um governo.

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De campeões do sistema, os super-heróis viraram outsiders. O herói não é mais um role model para servir de exemplo aos jovens. Agora, ele segue o seu próprio caminho, apontando a hipocrisia nos outros e mostrando como a prática do “bem” passa longe de seu ideal.

É por isso que, em sua primeira história pós-11/9, o Capitão América não esmurra Bin Laden como antes fizera com Hitler. Em vez disso, ele visita Dresden, cidade alemã que foi obliterada por bombardeios aliados na Segunda Guerra. Longe de ser um fanático patriota, ele se lembra de todo o sangue que já foi derramado em nome da “justiça”.

É por isso que na Guerra Civil – uma alegoria do Patriot Act, lei americana que reduziu a proteção constitucional de civis em nome da luta contra o terrorismo – Steve Rogers se posiciona contra a ideologia de que a segurança é preferível à liberdade.

E é por isso que, no filme Soldado Invernalele se rebela contra a tentativa da SHIELD de se tornar uma “polícia global”. No longa, tudo é obra da Hydra. Na vida real, é preciso bem menos. Basta olhar para o escândalo de espionagem da NSA, cujos alvos incluíram até a Presidência brasileira.

Novas ideias, no entanto, demandam novos públicos. E para conquistar novos públicos é preciso novas formas de se vender quadrinhos. O que nos leva à segunda “mãe” dos anti-heróis

 2- O surgimento das gibiterias

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Como quem já se aventurou pela arte sabe muito bem, a distribuição é a alma de qualquer obra de sucesso.

Quando os quadrinhos de superheróis surgiram nos anos 1930, ninguém pensava em ganhar o prêmio Pullitzer ou em escrever o mesmo personagem por 70 anos. Os gibis eram vendidos em qualquer lugar por onde meninos perambulassem: bancas de jornal, lojas de brinquedo, farmácias e até docerias.

Como não havia garantia de que a criança voltaria a comprar o mesmo título, a ideia era prezar a quantidade sobre a qualidade. Cada HQ tinha um começo, meio e fim e eram feitas para o maior público possível, sem continuidade nem, muitas vezes, coerência. Para chamar a atenção, não era raro uma editora publicar histórias estapafúrdias. Ou o que era pior: histórias estapafúrdias repetidas.

superman dragon

superman jimmy olsen

Com o passar do tempo, esse modelo perdeu popularidade. Com o envelhecimento do público alvo, o fim dos vilões óbvios da Segunda Guerra e a pressão de moralistas (vide o próximo tópico), o número de vendas mensais caiu de 59,8 milhões em 1952 para 18,5 milhões em 1979.

Para o hobby não morrer, alguma coisa precisava mudar. A volta por cima veio com Phil Seuling, um fã de quadrinhos e criador da Comic Art Convention de Nova York. Seuling desenvolveu um sistema de distribuição baseado em lojas especializadas, dirigidas ao fã. Assim, nasciam as primeiras gibiterias.

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Austin Books & Comics, no ramo desde 1977

Para os envolvidos, esse novo modelo (chamado de mercado direto) era muito mais interessante. Antes, gibis não vendidos eram devolvidos para os fornecedores, o que forçava as lojas a calcular bem a quantidade de HQs que achavam que venderiam (e, obviamente, não adquirir obras mais controversas). Na gibiteria, pelo contrário, números antigos simplesmente entravam para o catálogo.

Com menos risco, as editoras passaram a apostar em títulos mais trangressores. Não só isso, como produtores independentes finalmente conseguiram uma chance de entrar no mercado. O resultado foi um boom de histórias inovadoras e selos independentes capazes de rivalizar com a Marvel e DC.

Ao mesmo tempo, as gibiterias criaram uma “contracultura” dos quadrinhos, oferecendo espaço para fãs confraternizarem, montarem coleções e acompanharem artistas e personagens específicos. Pela primeira vez, a base do que se tornaria a “cena nerd” começou a ganhar força.

A capacidade de se enturmar com outros fãs e ficar “próximo” dos autores se mostraria fundamental para a sobrevivência do hobby. Isto porque, nessa mesma época, os quadrinhos se tornaram o campo de batalha de uma verdadeira guerra cultural.

 

1- A necessidade de chocar

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Quem vê a truculência do Rorschach em Watchmen ou a lista de baixas do Justiceiro já percebe que os anti-heróis não estão de brincadeira. Muito menos os seus autores.

Se essas HQs parecem às vezes desnecessariamente cruéis, é porque a intenção foi de fato chocar. E, se uma geração inteira de artistas sentiu a necessidade de chacoalhar o público, é porque eles tinham um inimigo em comum.

Quando os quadrinhos de super-herói surgiram nos EUA, eles foram imediatamente alvo da perseguição de moralistas. A Igreja, os políticos, intelectuais e até médicos criaram a narrativa de que histórias em quadrinhos estimulavam a violência, atentavam contra a moral e desvirtuavam as crianças.

Nos casos mais extremos, entidades justiceiras organizaram mutirões para remover gibis do comércio e queimá-los em fogueiras.

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Para os quadrinistas, a grande batalha foi “perdida” em 1954, com a publicação de A Sedução dos Inocentes, do psiquiatra Fredric Wertham. O livro dava um roupagem científica para a tese de que HQs eram uma influência ruim no desenvolvimento de crianças e se tornou a bíblia dos que buscavam proibi-las.

As evidências de Wertham eram completamente furadas, mas isso era irrelevante. Nos anos 1950, a delinquência juvenil se tornou um pânico moral. A Sedução dos Inocentes dizia aquilo que as pessoas queriam ouvir. Assim, se tornou uma sensação.

A consequência direta da repercussão foi a promulgação do Comics Code Authority, um código de conduta destinado a regular o conteúdo dos quadrinhos. A iniciativa foi obra da Comics Magazines Association of America (CMAA), um grupo de figurões da indústria que acreditou que uma auto-regulação mostraria a boa vontade do profissionais em aceitar as “críticas”. A alternativa seria uma censura oficial, o que enterraria as HQs de vez.

Num argumento ainda muito comum entre moralistas, o CCA dizia que os artistas tinham uma “responsabilidade” para a “cena cultural americana” e deviam “fazer uma contribuição positiva para a vida contemporânea”.

Approved_by_the_Comics_Code_AuthorityNa prática, isso significava “purificar” quadrinhos de tudo o que fosse considerado ofensivo, perigoso ou de mau gosto. Estava banido o uso das palavras “terror” ou “horror” (Parte B, 1), violência excessiva (Parte B, 3), apologia ao crime (Parte A, 4 e 5), excesso de gírias (Parte C, 3), nudez e sensualidade (Costume, 1 a 4) e mesmo incentivo ao divórcio (Marriage and sex, 1).

Ninguém era obrigado a usar o selo, mas distribuidores se recusavam a vender HQs que não o tinham. Depois de meses de perseguição (e inclusive uma audiência pública no senado), ninguém queria ser visto como um defensor da delinquência juvenil.

Para os artistas, isso não foi apenas um “mundo ficando chato” : foi um desastre que por pouco não afundou toda a indústria de quadrinhos. Frank Miller, um dos “pais” indisputáveis dos anti-heróis, nos diz isso com todas as letras no prefácio de Batman: O Cavaleiro das Trevas:

Não vale a pena citar o nome daquele psiquiatra lunático ou de seu livro absolutamente desprezível. Há muito o mundo se esqueceu dos dois.

No pequeno universo dos quadrinhos, entretanto, aquele lixo de livro causou tanto estrago quanto um ciclope. Ou Galactus. As vendas caíram mais e mais. Por algum tempo, os artistas de HQs sequer revelavam sua profissão. Não em companhia de pessoas cultas.

Deus sabe que não abordávamos temas políticos.

Mas nós apenas parecíamos irrelevantes. Apenas parecíamos mortos.

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Foi justamente o desejo de não ser irrelevante que motivou Miller e outros criadores (como Robert Crumb, Richard Corben e Neal Adams) a pisar nos calos. A partir dos anos 1970, com a popularização das convenções e o mercado direto, a cena de quadrinhos underground finalmente mostrou as suas garras.

Autores polêmicos agora sabiam que havia uma maneira de seus trabalhos chegarem aos fãs, com ou sem o selo de aprovação. Não demorou para as grandes editoras peitarem a CMAA, chegando, em casos extremos, a publicar gibis mesmo sem o aval do CCA.

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Amazing Spider Man #96, que teve o selo negado por mostrar Harry Osborne em crise de abstinência.

 

A consequência foi uma geração de heróis (e vilões) complexos, inclementes e repletos de defeitos. O Justiceiro e o Motoqueiro Fantasma deram as caras pela primeira vez. O Homem de Ferro virou um alcóolatra. E o Batman se tornou o líder de uma gangue sanguinária, fazendo com as próprias mãos a justiça que faltava ao governo.

Os anti-heróis dos anos 1970 e 1980 não desafiavam só as normas de seus mundos fictícios. Eles eram, também, símbolo do desafio de seus próprios criadores, lutando para que as HQs tivessem o mesmo tratamento de filmes ou livros.

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Esses artistas nunca deixaram de militar pela sua liberdade criativa. Em 1987, Alan Moore deixou a DC após a editora tentar implementar um sistema de classificação etária. Em 1997, Frank Miller, que nunca foi exemplo de sutileza, escreveu Tales to Offend.

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O criador de Elektra não tem nenhum remorso pela postura “in your face”. Como ele disse em um depoimento, “tudo o que se colocar entre meu pincel e minha mesa de desenho é meu inimigo”.

Os anti-heróis nos dias de hoje

É curioso, mas nem um pouco surpreendente, que os anti-heróis façam tanto sucesso nos dias atuais. Em muitas aspectos, nossa geração tem várias coisas em comum com o universo dos anos 1970 e 1980 de onde eles surgiram.

Tal como há 30 anos, nossa época é marcada por um enorme niilismo político. De protestos nas ruas ao sucesso de candidatos implausíveis (veja apenas Trump nos EUA) há uma sensação generalizada de que o jogo está viciado, e que a resposta se encontra em outro lugar.

Tal como nos tempos de Phil Seuling, temos a nosso dispor uma imensidade de formas alternativas de produção e distribuição de quadrinhos: de serviços como o Comixology ao cenário do crowdfunding, da cena efervescente das fanzines aos webcomics. Os quadrinhos nunca foram tão diversos e acessíveis a tantas pessoas (leitores e criadores).

Tal como na época do CCA, pânicos morais continuam estourando na cena nerd, e a ideologia de que artistas têm uma “responsabilidade social” de produzir obras de bom gosto parece ter renascido das cinzas. O site da CBLDF, uma ONG dedicada à proteção da liberdade de expressão de quadrinistas, contém uma lista de obras que têm sido atacadas por moralistas nos últimos anos. Os títulos são surpreendentemente variados, e incluem desde Dragonball até Persépolis.

Qual será o futuro do nosso novo “culto ao anti-herói”, só o tempo nos dirá. Uma coisa, no entanto, podemos afirmar com certeza: se as nossas turbulências trouxerem novos gigantes do calibre de Miller, Moore, Crumb e Gaiman, estamos em boas mãos.

 

 

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