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Anime x Livro – finisgeekis http://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 12 Jun 2019 17:40:57 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32 Anime x Livro – finisgeekis http://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 Anime x Livro: “Penguin Highway” http://www.finisgeekis.com/2019/06/12/anime-x-livro-penguin-highway/ http://www.finisgeekis.com/2019/06/12/anime-x-livro-penguin-highway/#comments Wed, 12 Jun 2019 17:40:57 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=21784 Anime x Livro tem como objetivo comparar romances da literatura com suas adaptações na telinha japonesa. A proposta é sair do fla-flu e esmiuçar essas séries (e livros) em detalhe. 

O Studio Colorido pode não ser um grande nome de referência na animações japonesa. Desde 2018, porém, as coisas podem ter começado a mudar.

Misturando fantasia, ficção científica e um retrato cândido do final da infância, Penguin Highway se tornou um hit da crítica e um cartão de visita a seu diretor, Hiroyasu Ishida. Com seu romance de origem finalmente lançado em águas ocidentais, temos uma oportunidade de ouro para mergulhar a fundo nos porquês desta adaptação.

Em especial porque o romance em questão veio da pena de Tomohiko Morimi, autor de algumas das histórias mais criativas a ganharem as telas nipônicas nos últimos tempos.

Seria o romance de Morimi tudo isso mesmo? E esteve Ishida à altura para reinterpretá-lo?

Vamos juntos descobrir.

Clique nos títulos para ir direto às seções. Ou então só continue abaixo, se estiver com tempo. AVISO (DESNECESSÁRIO): Contém SPOILERS para Penguin Highway)

 

Penguin Highway é um romance notável nem tanto pelo seu conteúdo, mas por quem o escreveu. Lançado originalmente em 2010, o livro é a primeira obra de Tomihiko Morimi a ser lançado em inglês – e, até onde sei, no Ocidente como um todo.

Se você não o reconhece de nome, talvez suas obras lhe dêem uma pista. Morimi é autor de Tatami Galaxy e Yoru wa Mijikashi Arukeyo Otome, cujas adaptações em anime, feitas pelo diretor Masaaki Yuasa, se tornaram hits entre fãs do gênero.

Capa japonesa de “Penguin Highway”

Penguin Highway venceu o prêmio Nihon SF Taishou – o equivalente japonês do Nebula. Rotulado de ficção científica, o romance é na verdade uma obra de fantasia, recheado com uma dose suficiente de cultura pop para parecer uma versão light de Haruki Murakami.

Sua trama acompanha Aoyama, um garoto estudioso que sonha em vencer o Nobel. Seu desejo parece próximo de realizar quando um mistério científico acontece diante de seus olhos:

Uma horda de pinguins invade sua cidade.

Ao lado de seus amigos, Ushida e Hamamoto, Aoyama se compromete a desvendar o mistério. As coisas, todavia, não são o que parecem. E quando se aproxima de solucionar o enigma, mais perto ele fica de aprender uma lição importante sobre si mesmo.

 

Penguin Highway, a animação, foi dirigida por Hiroyasu Ishida, mais conhecido pelo badalado (e nem tão bem avaliado) Typhoon no Noruda.

Misturando fenômenos naturais, fantasia e coming-of-age com uma pitada de romance, seu longa parece, de fato, uma elaboração de temas já ensaiados em Typhoon. Que ambos tenham sido produzidos pelo mesmo estúdio apenas reforça a impressão.

O material parece ter caído como uma luva à Ishida, e sua obra coleciona críticas positivas, além de ter faturado o Prêmio Satoshi Kon por Excelência em Animação no Fantasia Festival, Montreal, onde teve sua première.

Mérito do material de origem? Ou teria o dedo criativo de Ishida sido o responsável pela mágica?

Como diria Aoyama, vamos desvendar esse mistério.

  Aoyama

 

Eu sou extremamente inteligente e nunca pego leve com meus estudos.

É por isso que eu serei muito importante no futuro.

As frases de abertura do livro de Morimi dizem tudo o que é preciso para entender seu protagonista. Ele é um saco.

Aoyama é aquele tipo de criança que pensa que ser mimado pelos pais é reconhecimento, e que ler a National Geographic e montar naves de LEGO o tornam um garoto prodígio. Ele ama se achar melhor que os outros, coisa que não para de repetir – literalmente – do primeiro ao último capítulo.

Filho de cientistas, o garoto age como se ele, próprio, fosse um dos candidatos ao Nobel.

Ele chama nuvens de “cumulonimbus”, é fã de xadrez e bebe café como os adultos. Carrega um caderno diferente para cada fenômeno que estuda e tem uma obsessão por seios femininos – tudo, ele garante, em nome da ciência.

Que Aoyama não seja nem de longe tão adulto quando finge parecer é algo que Morimi nunca esconde. Pelo contrário, não demora para cair a ficha de que seu linguajar chupinhado do Discovery Channel é uma fantasia que veste para esconder suas criancices.

“Todos os pesquisadores sofrem de cáries” ele diz, ao ser confrontado por não escovar os dentes. “Você realmente não fica nervoso”, comenta um amigo “Não se eu penso sobre peitos” ele responde.

Nem sempre sua seriedade convence, e os momentos em que sua máscara cai trazem as maiores pérolas da prosa de Morimi:

Sempre que eu vejo um rastro de vapor eu não consigo evitar olhá-lo. Uchida e eu combinamos que nós assistiríamos a um lançamento de ônibus espacial algum dia, mas eu sinto que se eu visse algo assim tão incrível meu pescoço mais voltaria a sua posição original 

Infelizmente, nem a ironia de Morimi salvam seus diálogos de sucumbirem ao peso do technobabble. E após páginas e páginas narradas por um mala-sem-alça, é difícil não sentir que nosso tempo com o livro foi desperdiçado.

Os diálogos do anime são fidelíssimos aos do romance – em muitos casos, à última sílaba. Assim, é impressionante como a magia visual de Ishida conseguiu transformá-lo em um protagonista cativante. Enquanto que no romance só dispomos da versão de Aoyama, o diretor escancara a cada cena o quão distante seu discurso furado é da realidade. Seja quando está apavorado, tentando arrancar um dente

fazendo bico ao experimentar café

ou queimando de febre.

Nada mais autêntico a uma personagem infantil do que vê-la agindo como uma criança de verdade.

 A mulher do consultório

Eu deixei o apartamento e descobri que o céu sobre o morro tinha uma cor incomum. Haviam nuvens fofas cobrindo o céu e elas estavam todas pintadas de um rosa pálido. Eu nunca tinha visto um céu daqueles antes. Havia um buraco nas nuvens além das montanhas, e a luz do entardecer brilhava através dele.

Eu me virei para trás e vi a mulher acenando da sua varanda.

Ela também era rosa.

A mulher do consultório é a personagem mais importante – e, acrescento eu, intrigante dessa história. O fato de não sabermos sequer do seu nome é, em si, uma pista. Ela é um grande mistério, que o pequeno Aoyama fará sua missão desvendar.

Como nós mesmos descobrimos sem grande esforço, Penguin Highway não é apenas uma história sobre pinguins. O “experimento” que Aoyama realiza, no fundo, é apenas um: entender por que seu coração bate tão rápido quando pensa naquela mulher.

Funcionária no dentista que frequenta, a mulher conhece Aoyama durante uma consulta, quando flagra o garoto pregando uma peça no bully da escola.

Amante, ela própria, de xadrez, não demora para que ela se torne uma espécie de babá de Aoyama, passando tardes e tardes ao seu lado em uma mesa no Café à Beira Mar.

A natureza desses encontros ganha contornos diferentes no livro e no anime. Se no romance seu amor não passa de um crush por uma figura materna – vindo de um garoto que ainda tem 3888 dias para se tornar um adulto, como Aoyama mesmo nos conta – no anime de Ishida ganha contornos mais… picantes (veja abaixo, “A Descoberta da Sexualidade).

Hamamoto

Ela era como uma amante de chocolate diante de uma caixa de bombons, pairando sobre o tabuleiro como se decidindo qual peça comer primeiro.

Hamamoto é a garota com que todo menino nerd sonhou alguma vez em namorar. Inteligente, cheia de si – e, de quebra, bonita – ela é a única personagem capaz de colocar nosso protagonista em seu lugar.

Tal como Aoyama, Hamamoto é filha de um cientista – e não faz questão de escondê-lo. A garota sabe jogar xadrez, conhece a Teoria da Relatividade e passa seu tempo livre montando experimentos.

Sua versão animada não ficaria mais fiel à original se Ishida tivesse escrito o romance ele próprio. A Hamamoto das telas é uma recriação da personagem de Morimi nos seus menores detalhes.

Ao contrário de Aoyama, que passa seu tempo construindo naves e estações espaciais de LEGO, Hamamoto tem o tique de empilhar pedras em muros. Ishida não destaca este detalhe da mesma forma que Morimi, mas ele pode ser visto nas tomadas em que aparece brincando.

No livro, Hamamoto é descrita como uma garota de pele clara e cabelos castanhos, que “parecia que tinha se mudado para cá de algum lugar na Europa”. O visual caucasiano é sabidamente difícil de reproduzir em animes, em que todas as personagens possuem pele clara e cabelos coloridos.

Ishida, porém, esteve à altura do desafio. Não só ela parece ligeiramente mais pálida que seus colegas, como ganhou olhos azuis e roupas retrô, no melhor estilo Marnie.

 

Uchida

Uchida era do tipo silencioso, mas aquele era um silêncio muito mais significativo que o habitual

Para um parceiro tão recorrente em suas aventuras, Aoyama tem muito pouco a dizer sobre Uchida. Não por acaso. No romance de Morimi, o garoto é o Pink para o Cérebro de Aoyama, uma imagem inversa do protagonista que parece só existir para nos lembrar de quão excepcional nosso herói é.

Se Aoyama é corajoso, Uchida é um chorão. Se Aoyama é analítico, Uchida é emotivo. Se Aoyama é cego para os sentimentos mais óbvios daqueles ao seu redor – e, até mesmo para os seus – Uchida parece entender tudo, embora nem sempre o ponha em palavras.

Personagem-tipo, nunca escrito para ser mais do que um pedestal ao protagonista, Uchida era uma tela em braco para Ishida pintar seu próprio retrato de um garoto comum na pré-adolescência. E um bom retrato ele pintou, com todo o esmero de que a animação é capaz.

A diferença não está no conteúdo, mas nos detalhes. Com uma sensibilidade digna de Memórias de Ontem, o diretor transforma a personagem na porta-voz daquele lado ridículo, embaraçoso da infância que a maturidade fake de Aoyama tenta a todo custo esconder.

Descrever um menino chorando, apanhando de bullies, fugindo de medo é uma coisa. Ver Uchida titubeando de volta para casa, sujo de ranho e lama após ter caído enquanto brincava, é de uma honestidade tão brutal que traz flashbacks dos nossos próprios traumas de infância.

 

O “Império Suzuki”

Suzuki tinha a voz mais alta na nossa classe e era muito forte. Os meninos sob seu comando o obedeciam sem questioná-lo. Aquela estrutura era fascinante, e eu a estava estudando, fazendo anotações que eu batizei de Observações sobre o Império Suzuki.

A descrição de Aoyama dos bullies de sua escola é uma das mais brilhantes do romance de Morimi. E Suzuki, junto a Kobayashi e Nagasaki, seus fiéis escudeiros, um trio de cretinos de que todo nerd estudioso se lembrará muito bem.

O “Imperador Suzuki I”, como Aoyama o chama, é o antagonista da primeira parte de Penguin Highway. Ao descobrir que os garotos estão fazendo um “experimento”, Suzuki e seu império fazem de tudo para atrapalhá-los. O ponto baixo de sua crueldade vem em uma cena envolvendo uma vending machine – e mais fluidos corporais que esperaríamos encontrar em um anime infantil.

Como tantos outros valentões da ficção – e também da vida real – não demora para que Suzuki se mostre mais inseguro que covarde, menos violento que solitário.

Desde a primeira cena, fica claro que odeia Aoyama por ser o garoto dos olhos de Hamamoto, por quem ele próprio tem uma queda. Embora Ishida nunca chegue a ter pena do sujeito, seu filme deixa claro que muito de sua dor – e, consequentemente, sua crueldade – vem do sofrimento de achar-se burro.

O subtexto é menos forte no romance de Morimi, em que Suzuki e seu comparsas tentam impressionar Hatamoto vencendo Aoyama em seu próprio jogo. O “Império” se torna uma equipe rival de exploradores, tentando solucionar um mistério ainda maior para conquistar os olhos de Hatamoto.

Felizmente, essa trama bisonha foi eliminada quase por completo do anime de Ishida. Suzuki ainda nutre uma rixa por Aoyama, e suas tentativas de sabotar seus experimentos continuam um ponto-chave no enredo. Mas o garoto e seu “império” nunca deixam de ser o que aparentam à primeira vista: três bullies não muito espertos, intimidados pela sua inteligência.

Uma caracterização menos original que a do romance, mas ainda assim mais verossímil.

 

Aoyama começa o romance ao lado de seu fiel escudeiro Uchida, buscando mapear o trajeto de um córrego local. Eles chamam sua empreitada de “Projeto Amazonas”, uma referência aos exploradores que desbravaram os confins do rio brasileiro no passado.

Sua busca é colocada em hiato quando sua cidade é invadida por uma horda de pinguins. Não pinguins normais, mas criaturas que surgem do nada, sobrevivem a atropelamentos e desaparecem quando transportados para longe.

O mistério começa a se complicar quando ele descobre que a mulher do consultório é a responsável pelos bichinhos. Em dado momento, ele a flagra transformando uma lata de Coca-Cola em um pinguim.

O poder, contudo, não parece ser voluntário. E mudanças no seu estado de espírito tem consequências assustadoras. Em dada cena, seu dom dá lugar a uma revoada de morcegos.

Ao saber dos experimentos de Aoyama, sua colega Hamamoto lhe conta que ela, também, está pesquisando uma coisa. Uma aparição misteriosa no meio das florestas da cidade, conhecida como “a lua de prata”.

Não demora para que o garoto perceba que a lua, os pinguins e sua dentista misteriosa são partes do mesmo enigma. E que toda aquela confusão, cedo ou tarde, explodiria diante de seus olhos.

O pior acontece quando a mulher do consultório, em vez de um pinguins, começa a produzir monstros. Quando o valentão Suzuki resolve capturar um espécime, as autoridades intervém. E a pacata cidade de Aoyama e seus amigos viram o palco de um episódio de Stranger Things.

Cabe ao garoto e à mulher do consultório salvarem o dia. Surfando uma estrada (literal) de pinguins, em um clímax tão surreal que daria inveja a Satoshi Kon.

Como as imagens deixam claro, Penguin Highway, o filme, é a adaptação que todo autor que vende os direitos da sua obra amaria receber. O anime de Ishida acompanha praticamente à letra o enredo do livro. A mudança não está no quê acontece, mas em como a história é contada.

Ou, melhor dizendo, em onde Ishida e seu roteirista, Makoto Ueda, decidiram mirar sua lente.

A “perfumaria”

O texto de Morimi segue uma estrutura quase episódica, em que a trama principal se perde em digressões e episódios avulsos.

São cenas de Aoyama peitando seus bullies, de Hamamoto jogando xadrez, de conversas quase idênticas no Café à Beira Mar, onde Aoyama e a mulher do consultório se encontram. Ou simplesmente listas tediosas dos achados do garoto, como se Morimi quisesse fazer o resumo de seu livro antes mesmo de terminar de escrever.

Eu registrei essa descoberta significativa no meu caderno.

> Quando o Mar aumenta, a mulher do consultório fica melhor

> Quando o Mar diminui, a mulher do consultório fica pior

Em termos práticos, isso acaba por diluir a clássica estrutura em três atos da ficção, dando a impressão, em alguns momentos, que a história não caminha a lugar nenhum.

Isso não é um problema para romances slice of life, mais interessados em acompanhar a vida de suas personagens que em expor enredos complicados. Porém, as cenas descritas por Morimi nem sempre são interessantes – e o linguajar pseudo-acadêmico de Aoyama é, simplesmente, um saco.

O filme de Ishida se livrou dessa “gordura” narrativa condensando-a em uma belíssima montagem musicada. Ao longe de apenas 2 minutos, o clipe nos traz alguns dos quadros mais belos de todo o longa. E, junto a eles, referências a cenas que Morimi desenvolve em detalhe em seu romance.

O palavrório científico de Aoyama, por sua vez, é representado por imagens de seus cadernos, pinceladas aqui e ali ao longo do filme. O recurso liberta Ishida da chatice crônica do protagonista, permitindo-o fazer o que conhece melhor: uma boa e honesta história sobre crianças.

Esses ajustes podem parecer coisa pequena, mas são mudanças que fazem toda a diferença. Não apenas na fluidez do roteiro, mas nos próprios temas que abordam.

Os Jaguadartes

Os monstros que a mulher do consultório produz não são criaturas quaisquer. Como tanto o livro quanto o filme nos deixam claro, eles têm uma origem literária.

O jaguadarte (em inglês jabberwocky) é uma criação de Lewis Carroll para o clássico Alice Através do Espelho. A arte de época mostrada no anime nada mais é que uma ilustração original de sua primeira edição.

O aparecimento dessas criaturas é uma virada importante tanto no romance quanto no anime. Nas páginas de Morimi, porém, as referências a Lewis Carroll vão muito mais longe.

No livro, os monstros aparecem logo no início da história. “Jaguadarte” entra para o vocabulário de Aoyama e seus amigos, a ponto de batizaram a floresta em sua cidade de “Bosque dos Jaguadartes”.

A relação entre os monstros e a mulher do consultório tampouco é gratuita. Em Alice Atrás do Espelho, a protagonista do País das Maravilhas retorna a um mundo fantástico, desta vez como peça em um gigantesco jogo de xadrez. Exatamente o jogo que a musa de Aoyama o convida a jogar – e que conecta o garoto às duas mulheres da sua vida.

Não à toa, a primeira tomada do filme (repetida na sua conclusão) mostra um tapete xadrez no quarto do menino.

Mais: os jaguadartes de Morimi são descritos como baleias-azuis com pernas humanas e asas de morcego. Não por acaso, já que Aoyama é obcecado por cetáceos, e suas conversas com a mulher do consultório geralmente convergem até ele. Perto do fim do livro, um sonho do garoto o coloca frente a frente com um espécime falante:

A baleia-azul estava murmurando alguma coisa.

– Jabberwock, o que você está dizendo?

– Deus às vezes comete erros – a baleia-azul disse – É apenas natural.

– Isso é inaceitável – diz a mulher.

– Todos os pinguins concordariam comigo.

– Bem, eu não sou uma pinguim.

– O mar está vindo! O mar está vindo! – a baleia-azul disse misteriosamente.

Todos esses elementos aparecem no anime. Incluindo uma estátua de baleia no Café à Beira Mar, onde Aoyama e sua amiga se encontravam para jogar xadrez.

Sem o contexto dado por Morimi, contudo, esses detalhes são pouco mais que easter eggs de seu material de origem.

A lua de prata

O surgimento dos pinguins não é o único mistério com que Aoyama tem de lidar. Logo no início do livro, o garoto escuta rumores de uma “lua de prata” que adoecia todos que olhassem para ela.

A princípio, Aoyama faz pouco caso para a lenda. É apenas quando Hamamoto chama a atenção para um fenômeno estranho escondido entre as árvores que o mito ganha traços de realidade:

Árvores cercavam a clareira. Uma terra esquecida no coração do Bosque dos Jaguadartes. Como um prato de sopa gigante esperando para ser enchido com algum tipo de líquido. Conforme eu andava por ele eu sentia que o céu era como uma tampa colocada em cima da gente. Como se a tampa da minha cabeça fosse puxada em direção ao céu.

(…).

No meio da grama, onde Hamamoto apontava, havia uma estranha esfera translúcida. De acordo com sua distância a partir de nós, o diâmetro da esfera era aproximadamente cinco metros. Ela flutuava cerca de trinta centímetros do chão. Ela não parecia usar nenhuma espécie de motor para se manter suspensa no ar. Eu sabia disto porque ela não produzia som algum. 

Para o crédito de Morimi, o “mar” – como seria chamado pelas crianças – é o tipo de invenção que parece feita para uma tela de cinema.

O “mar” não é o único ringue em que o anime nocauteia seu material de origem. Ver uma motocicleta dissolvendo-se em pinguins é o tipo de magia visual que nos remete às obra-primas da animação.

A prosa de Morimi tem seus momentos de inspiração (“Nós cruzamos a rua como bolinhas de gude através de um tapete”; “A mulher assobiou […] e os pinguins se ajeitaram como cavalheiros britânicos”). É preciso, contudo, mais do que comparações criativas para vencer o dom de Ishida.

Ponto para o anime.

A iniciação amorosa

Penguin Highway não é apenas um conto de fantasia. Como toda história bem contada, é também uma fábula sobre relações humanas. No seu caso específico, com uma pitadinha de amor.

Ou, pelo menos, sua adaptação é.

Aoyama decidiu “investigar” a mulher do consultório porque estava apaixonado por ela. Hamamoto se convidou ao seu projeto porque, secretamente, sentia ciúmes. Suzuki o atazanava porque curtia Hamamoto e o via como um rival.

O amor é a linha mestra nos principais conflitos no anime. Obcecado por sua “ciência”, contudo, Aoyama parece incapaz até de acreditar em amor, quanto mais de enxergar seus efeitos. Quando fala sobre o assunto, é difícil não imaginar que estamos ouvindo as declarações de um robô:

– Ah. Então o Suzuki está apaixonado pela Hamamoto. Eu não fazia ideia. Se ele se sentia desse jeito, ele devia ter me contado.

– O Suzuki nunca faria isso.

– Por que não?

– Por que ele sente vergonha.

– Por que o Suzuki sentiria vergonha de estar apaixonado pela Hamamoto? Ficar apaixonado com pessoas é totalmente normal. Minha mãe e meu pai se casaram porque eles se apaixonaram. Se meu pai não tivesse se apaixonado eu nunca teria nascido.”

– Isso é verdade – Uchida disse, rindo – Mas você simplesmente não entende.

No anime, o diálogo aparece com pouquíssimas alterações. Porém, graças à linguagem visual de Ishida – e de um competente trabalho de dublagem – nós entendemos o tom professoral de Aoyama pelo que de fato é:  o papo-furado de um garoto inseguro, intimidado pelos seus próprios sentimentos.

A literatura é plenamente capaz de passar essas ideias. Infelizmente, a prosa de Morimi não dá conta, e seus diálogos depenados, com poucos (e batidos) verbos de elocução, fazem o protagonista parecer um desalmado.

Que o próprio Morimi não dê a devida atenção aos sentimentos das suas personagens não ajuda. Em nenhum lugar isto fica mais claro que no festival de verão. Um episódio presente tanto no romance quanto no filme, mas que não poderiam ter sido apresentados de maneira mais diferente.

No livro, a cena se desenrola como uma série de encontros não relacionados, conforme o elenco da história explora as atrações da noite.  Nenhuma destas trocas traz informações nova, e a sequência soa apenas repetitiva. Um meandro desnecessário em um romance que já sofre de uma falta de direção.

No anime, pelo contrário, as personagens são reunidas em uma emboscada digna de uma comédia romântica.

Aoyama encontra Hamamoto e seu pai, que ainda não conhecia – ao contrário do livro, em que já haviam sido apresentados. A mulher do consultório surge segundos depois, e Aoyama se vê espremido dentro do próprio triângulo amoroso.

Cada linha de diálogo – original do anime – é carregada de duplo sentido.

“Quer dizer que somos rivais” diz o pai, ao ouvir de Hamamoto que ela e o garoto brincam juntos. “Nós somos parceiros de pesquisa.” Uma Hamamoto enciumada diz à dentista. “Quer dizer que é por isso que você deixou de lado a nossa pesquisa?” ela diz a Aoyama com um olhar lânguido.

Atento ao que é de fato importante, o roteirista Ueda coloca a bola no campo do Aoyama. O triângulo amoroso Suzuki-Aoyama-Hamamoto dá um passo para trás, substituído por outro: Aoyama e suas duas musas.

Prova: enquanto que no livro Aoyama irrita Suzuki ao dizer que gosta de Hamamoto, no filme é o bully quem sugere que ele tem uma queda pela garota.

Não adianta se esconder atrás dos outros, Aoyama. Nesse filme, é você quem deve tomar uma decisão sobre seus próprios sentimentos.

E é, afinal, esse foco em sentimentos que nos leva à mudança mais significativa de todas:

A descoberta da sexualidade

Morimi jamais esconde que os pinguins de sua história são pretexto para algo maior.  No fundo, o romance é uma crônica de seu amor pela mulher do consultório. E de como, igual a tantos garotos de sua idade com quedas por figuras maternas, ele aprendeu a superá-la.

Penguin Highway é uma indireta, criativa e psicodélica fábula sobre o primeiro amor. Esse detalhe traz aquela lufada de frescor no texto de Morimi e o previne – assim como o anime que o inspirou – de se tornar apenas mais uma fantasia escolar.

Se no livro esse sentimento pode se passar por um amor idealizado, contudo, o filme deixa claro que estamos falando de algo um tanto mais concreto: o despertar da sexualidade.

A diferença de ênfase fica mais clara quando Aoyama é convidado a passar a noite no apartamento de sua musa. No livro, a passagem é a seguinte:

Tudo o que eu podia ouvir era a chuva caindo fora da varanda e o som da mulher respirando.

Seus olhos e lábios estavam fechados, e ela dormia profundamente. Ela não falava durante o sono como minha irmã fazia.

Enquanto eu observava seu rosto, eu me flagrei me perguntando como que ele tinha adquirido aquela forma, quem decidia esse tipo de coisa. Claro, eu sabia que são os genes que decidem como seu rosto se parece. Mas não era isto que eu queria saber. Por que eu comecei a gostar tanto de olhar seu rosto? E como que os genes tinham conseguido fazer o rosto de que eu tanto gostava tão completamente perfeito? Era isto que eu queria saber.

Eu tentei escrever sobre esse mistério no meu caderno, mas eu nunca tinha escrito nada daquele tipo nas minhas anotações, então eu não soube encontrar as palavras para isso. Eu terminei apenas escrevendo O rosto da mulher, felicidade, genes, perfeição. Então eu escrevi sobre os ingredientes no espaguete da mulher e como extremamente gostoso ele tinha sido. Então eu escrevi sobre como nós tínhamos feito a salada como dois profissionais, começando com o molho, então misturando os vegetais.

Quando eu terminei de escrever, a mulher já estava dormindo.

Ocorreu-me que se ela ficasse com frio, ela podia pegar um resfriado, então eu peguei uma toalha na sua cama e e coloquei sobre ela.

No anime, não é apenas sobre a salada que Aoyama rabisca em seu caderno:

E, antes de cobri-la, seus olhos caem num ponto bem específico de seu corpo:

Essa conotação já existe no romance de Morimi. O próprio autor a coloca nos lábios de Aoyama:

Mulheres adultas não deixam homens adultos entrarem em seus apartamentos com frequência. E elas nunca dormem na frente deles. Isto só acontece se eles forem um casal. Mas a mulher do consultório me deixou entrar no seu apartamento e dormiu na minha frente. Isto porque eu era só uma criança.

Entretanto, é uma observação que não leva a nada.  No parágrafo seguinte,  o garoto volta a falar sobre as origens do sono e a NASA e seus planos para ganhar o Nobel. No filme, por outro lado, somos deixados com a lembrança daquela barriga descoberta. E o sentimento que algo mudou dentro de Aoyama.

Não é possível dizer que Ishida modificou seu material de origem. As duas sequências, afinal, são idênticas. Mesmo assim, o mero apelo à linguagem visual é suficiente para trazer uma bagagem que parece peitar os confins da prosa.

 

Penguin Highway é um romance medíocre com uma linda metáfora sobre o amadurecimento, soterrada debaixo de uma prosa insípida, um enredo recalcitrante e um protagonista antipático. Que Hiroyasu Ishida tenha construído a partir dele um filme desse calibre é praticamente um milagre – e prova de que o diretor é um dos novos talentos do anime contemporâneo.

Como um escultor respeitando os veios da madeira, Ishida enxugou Penguin Highway aos seus elementos fundamentais, libertando os temas-chave da fábula de Morimi da encheção de linguiça  que os tornava difíceis de ver.

Filmes que superam os livros em que são baseados são coisa rara. Penguin Highway, porém, entra para o seleto clube dos que violam a regra. E o faz nos ensinando uma lição que muitos roteiristas – e não poucos fãs – deveriam ter em mente:

Mais conteúdo nem sempre é o melhor. E o bom criador trabalha não só com a caneta, mas também com a tesoura.

Um único quadro expressivo, encaixado em um filme sem um grama de gordura, pode nos tocar muito mais fundo que parágrafos e parágrafos de devaneios.


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Anime x livro: “As Memórias de Marnie” http://www.finisgeekis.com/2018/10/10/anime-x-livro-as-memorias-de-marnie/ http://www.finisgeekis.com/2018/10/10/anime-x-livro-as-memorias-de-marnie/#comments Thu, 11 Oct 2018 00:58:08 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20576 Anime x Livro tem como objetivo comparar romances da literatura com suas adaptações na telinha japonesa. A proposta é sair do fla-flu e esmiuçar essas séries (e livros) em detalhe. 

Nos idos de 2014, o Studio Ghibli se despediu de seus fãs com um filme um tanto diferente: As Memórias de Marnie. O longa chamou a atenção pelo seu estilo low key, pela estética um tanto ocidental e pelo seu diretor, Hiromasa Yonebayashi, menos conhecido que os decanos Miyazaki e Takahata.

Fãs do estúdio talvez não saibam que o filme foi baseado em um antigo clássico da literatura britânica. Que o próprio Miyazaki elegeu como um dos melhores romances já escritos para jovens.

Quão parecido ficou a adaptação do original? Vamos juntos descobrir.

Clique nos títulos para ir direto às seções. Ou então só continue abaixo, se estiver com tempo. AVISO (DESNECESSÁRIO): Contém SPOILERS para As Memórias de Marnie)

 


As Memórias de Marnie não é um romance tão conhecido fora do Reino Unido. Mesmo assim, foi um grande sucesso da literatura britânica, rendendo uma indicação à Medalha Carnegie.

Ele conta a história de Anna, uma garota solitária que não consegue de forma alguma se encaixar. Órfã, ela descobre certo dia que sua mãe adotiva recebe dinheiro para criá-la.

Subsídios do governo a pais de órfãos são coisa super normal. Anna, porém, não sabe disso. A seus olhos de criança, aquele cheque significa que sua “tia” (como a chama) não a ama de verdade. E que ela é, no final das contas, apenas uma despesa.

Aflita com a melancolia de Anna, sua mãe adotiva a leva à casa de um casal de amigos na praia, esperando que a mudança de ares ajude a garota a se encontrar.

Na pequena cidade portuária, Anna encontra um misterioso casarão beirando a areia que parece esconder um mistério ainda maior: uma linda garota loira que aparece em suas janelas.

Ela diz se chamar Marnie e logo se torna a melhor amiga de Anna. Mas algo não parece muito certo.

Por que Marnie se veste com roupas antigas, como se viesse do passado? Por que sua casa parece ora abandonada, ora polvilhada de aristocratas, camareiras e mordomos?

Seria Marnie uma garota de verdade? Um delírio, uma amiga imaginária… um fantasma?


Marnie não é uma história estranha ao mestres do Ghibli, e provavelmente deve sua longevidade ao estúdio japonês.

Como mencionei na introdução, o livro aparece em quarto lugar em uma lista de 50 melhores livros-infanto juvenis elaborada por Hayao Miyazaki. Mesmo assim, não foi o criador de Totoro, e sim Hiromasa Yonebayashi (Arriety, Mary to Majo no Hana) quem o levou à telona.

O longa foi o último filme do Studio Ghibli antes de seu hiato em 2014. O encerramento das atividades levou uma série de criadores (entre os quais o próprio Yonebayashi) a fundar uma empresa sucessora, o Studio Ponoc, pela qual lançariam outros filmes.

Tudo isso fez com que Marnie fosse lançado em um clima de certa melancolia, ofuscado pela sombra de Princesa Kaguya, contra o qual sua atmosfera pacata e ambientação simples custou a competir.

Se Marnie não foi um arrasa-quarteirões para os padrões ghiblianos, o mesmo não pode ser dito de seu material de origem. O anime renovou o interesse no livro original, tornando-o um sucesso mundial de público décadas depois da morte da autora.

Será que alguma coisa se perdeu na tradução? Ou teriam os ares japoneses até mesmo melhorado essa história?

Para responder, vamos por partes.


A diferença mais óbvia entre livro e filme é o lugar onde sua história se passa. Marnie, o livro, é ambientado em Norfolk, na Inglaterra, província em que a própria Robinson viveu.

Que Yonebayashi a transportaria ao Japão era inevitável. Porém, há uma peculiaridade do condado que vale a pena comentar.

Para aqueles que não conhecem muito a Inglaterra, Norfolk é aquela “bundinha” da região de East Anglia, virada para o Mar do Norte:

Como o mapa deixa claro, não é apenas um condado interiorano. É um lugar que está completamente fora das grandes rotas ligando cidades importantes como Londres, Manchester, Birmingham ou York. Se você foi parar em Norfolk, é porque quis ir para Norfolk.

Como escreveu Kazuo Ishiguro no seu belíssimo Não me Abandone Jamais: 

“Vocês vêem, porque está saltado para fora aqui no leste, nessa corcunda saindo para o mar, [Norfolk] não está no caminho de nada. Pessoas indo para o norte ou para o sul” ela mexia a varinha para cima e para baixo “elas o evitam completamente. Por essa razão, é um canto pacato da Inglaterra, bastante agradável. Mas é também um canto perdido.” (p. 60)

É nesse “canto perdido” que Anna, uma garota da cidade, se vê exilada durante sua crise de solidão.

Yonebayashi teve uma tarefa ingrata ao transpor esse cenário ao Japão. Felizmente, a Ilha do Sol Nascente possui sua cota de condados pacatos.

O local escolhido foi um vilarejo próximo a Kushino, na ilha de Hokkaido no extremo norte do Japão.

A cidade de Kushiro em Hokkaido, onde se passa o filme.

Província rural, isolada do “meião” urbano de Kanto e Kansai, é de fato o mais próximo de um “canto perdido” que o país tem a oferecer.


Marian (aka Marnie)

Ela olhava diretamente à frente conforme remava, seus olhos abertos jamais piscando, esforçando-se para absorver cada detalhe de sua nova amiga através da escuridão. Ela viu que seu cabelo liso e loiro estava preso naquela noite, pendurado sobre seus ombros em duas longas tranças que balançavam para frente e para trás cada vez que ela se debruçava. Debaixo de seu cardigã ela usava novamente um vestido longo e branco que se estendia quase até seus pés. Teria ficado estranho em qualquer outra pessoa, mas Anna o aceitava sem titubear. Parecia certo que aquela garota parecesse uma personagem de um conto de fada. (p. 77)

O trecho acima diz tudo o que há de ser dito sobre Marnie: ela é uma personagem saída de um conto de fadas.

Com cachos loiros que parecem feitos de ouro, olhos penetrantes e roupas anacrônicas, ela arrebata a atenção de Anna (e de nós, leitores) quase de imediato.

Yonebayashi não fez qualquer mudança à caracterização de Robinson. Pelo contrário, adaptou o seu próprio cenário para que Marnie se mantivesse exatamente a mesma, a despeito de ser transportada a outro país e época.

Para que preservasse seus traços caucasianos, o anime deu a ela um pai estrangeiro. Tanto ela quanto Anna (que, descobrimos, é sua neta) herdaram seus olhos azuis, coisa inusitada para japonesas que contribui para que a protagonista se sinta ainda mais deslocada.

Princesa europeia perdida no interior do Japão, Marnie ganha assim uma aura mais etérea e fantasmagórica do que contava no livro. Mais do que uma garota de outra época, ela parece uma figura de outro mundo, habitado por dignatários estrangeiros e mansões ocidentais.

Exatamente como os ricos japonesas da Era Meiji (1867-1912), que construíram casarões muito parecidos com a casa em que Marnie vive:

Casarão em estilo ocidental na cidade de Fukuoka. Fonte

Os Pegg/Oiwa

Claro, a moçoila podia vir e seria bem vinda. Ela e o Sam adorariam recebê-la, embora a gente não fosse mais tão jovem e o Sam sofresse daquele reumatismo sei lá o quê crônico desde o inverno passado. Mas vendo que ela é uma coisinha mansa que não curtia muito aprontar eles torciam para que ela ficasse feliz. “Como você se lembra” escreveu a Sra. Pegg “Somos gente simples e de casa aqui na nossa, mas as camas são confortáveis e não carecemos de nada agora com a tevê  (p.12)

O Sr. e Sra. Pegg (em japonês, os Oiwa) são os amigos da Sra. Preston, mãe adotiva de Anna, que a recebem durante sua estada em Kushino.

Casal simpático, de modos simples e jeito caloroso, eles ficam aflitos com a dificuldade de Anna em se enturmar. Ao longo do livro, suas personalidades conflitantes trarão algumas faíscas.

Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, e isso sem dúvida é verdade para os Oiwa. A produção luxuosa do Studio Ghibli deu vida ao casal de forma que supera a própria prosa de Robinson. Seja dirigindo seu carro minúsculo, seja esculpindo corujas de madeira, o casal parece saído de Memórias de Ontem, um dos melhores animes sobre o Japão rural.

Se nada mais, é possível que Yonebayashi tenha gostado dos Oiwa até demais. No livro, eles são retratados de maneira cordial, porém distante; dispostos a ajudar Anna, mas incapazes (de um jeito quase grosseiro) de entender o que a aflige.

No filme, pelo contrário, eles são incrivelmente compreensíveis, mesmo quando Anna perde a compostura de forma indesculpável.

Após xingar uma menina da vizinhança (vide “Sandra”, abaixo), os Oiwa são emboscados pela mãe revoltada. Ao saber do ocorrido, eles tentam colocar panos quentes, e em momento algum se irritam com a garota. Ao descobrir que ela os estava escutando, escondida, dizem apenas que ela foi “um pouco dura demais” com suas palavras.

No livro, pelo contrário, brigar com sua vizinha deixa Anna apavorada. Ela passa capítulos a fio temendo a reação da Sra. Pegg, e quando ela chega, é tão dura quanto ela – e os leitores – estavam esperando.

O episódio é importante porque ressalta o distanciamento de Anna para com as outras pessoas. A garota foge para a companhia de Marnie porque está legitimamente apavorada com a perspectiva de uma bronca. E, de uma forma geral, de ser apenas um fardo na vida dos adultos, seja dos Pegg, seja de sua mãe adotiva.

Sem esse contraponto, a separação entre os dois mundos no anime se torna muito mais sutil. De onde os muitos palpites errados que apostavam em um romance entre Anna e Marnie.

Afinal, o que faria uma garota se obcecar tanto por outra se não o amor?

Wuntermenny/Toichi

Sim, claro que Anna podia descer até a angra. Se a maré estivesse baixa ela podia andar pelo charco até a praia e se estivesse alta ela sempre podia descer no barco de Wuntermenny. “Desde que você não se incomode em não ter companhia” ela disse. (p. 32)

O barqueiro rabugento com que Anna faz amizade é uma personagem secundária na história. Mesmo assim, ele é um dos motivos que fazem de Marnie um conto fora de série.

No livro, ele recebe seu nome peculiar por ser o décimo primeiro (!) filho de uma família muito pobre. Cansado dos frequentes partos, sua mãe nem tem mais energia para batizá-lo. “Deus me livre” ela diz “esse já é demais da conta”.

O “nome” colou, e ele passou a ser conhecido por Wuntermenny (pronúncia fonética de “one-too-many”, “um demais da conta” em inglês).

O trecho original é uma das passagens mais primorosas do livro, que mostra o cuidado de Robinson em reproduzir o sotaque caipira de Norfolk:

“Ah! I’ll tell you how it was, then, since you’re asking,” said Sam. “Wuntermenny’s ma – old Mrs West, that was – she had ten already when he was born. ‘What’re you going to call him, mam?’ they all says, and she says, tired-like, ‘Lord knows! He’m one-too-many and that’s a fact.’ So that’s how it was!” he said, laughing and spluttering into his mug of tea. “And Wuntermenny West he’s been ever since.” (pp. 32-33)

Caçula de uma família paupérrima, Wuntermenny sofria bullying frequente das crianças da aldeia. Coisa que não escapou a Marnie, que escrevia sobre o garoto em seu diário.

Nada disso aparece no filme, mas Yonebayashi conseguiu colocar a porção certa de referências na forma de Easter Eggs.

Seu Wuntermenny se chama Toichi (十一), literalmente “onze”, uma referência a seus dez irmãos mais velhos. Para a surpresa de Anna, que o julgava mudo, ele também tem recordações de Marnie, que compartilha ao final do anime. Sua primeira – e única – fala no filme.

Para aqueles que leram o livro, a cena tem um quê de poesia. A Marnie do romance observava Wuntermenny com pena, aflita por não poder ajudá-lo. O Toichi de Yonebayashi a responde, confessando que ele, também, sofria com a separação.

Sandra/Nobuko

Sandra era loira e maciça. Seu vestido era curto demais, e seus joelhos, gordos demais, e ela não tinha nada a dizer. Anna passou uma tarde insuportável jogando cartas com ela na mesa da cozinha enquanto a Sra. Pegg e a mãe de Sandra se sentavam e conversavam na sala. Sandra e Anna conheciam versões diferentes de todos os jogos, Sandra trapaceava, e elas não tinham nada a dizer. (p.40)

Desesperados com a apatia de Anna, os Pegg decidem lhe dar uma amiguinha. A escolhida é Sandra (em japonês Nobuko), filha de uma vizinha.

Sandra é uma garota que não tem, a princípio, nada de errado. Mesmo assim, Anna não consegue sentir afeto por ela. Tudo na menina lhe inspira antipatia, de seu corpo roliço ao seu jeito espevitado.

É um (de tantos) problemas que apenas crianças entendem e que contribuem para piorar cada vez mais a solidão da protagonista.

No anime, Sandra é retratada com uma fidelidade que chega a ser cruel. Yonebayashi a imagina como uma espécie de “dona da rua”, metendo-se na vida das outras crianças e liderando-as em trabalho voluntário.

A “gota d’água” acontece durante um festival de verão, cerimônia tipicamente japonesa que obviamente não está no livro original. Pressionada por Nobuko a se entrosar, Anna estoura e a xinga. É o estopim de um mal-estar que só será resolvido no final do filme.

O episódio é um exemplo curioso de adaptação. Seu diálogo foi puxado quase que diretamente do livro, mas ele ganhou uma conotação toda diferente.

Anna diz que Sandra parece uma “porca gorda”. Ultrajada, a garota responde que Anna parece “exatamente o que ela é”. Tanto no original como na adaptação a frase mexe com a protagonista, mas não pelos mesmos motivos.

No livro, ela alimenta as inseguranças de Anna de que ela seria uma garota completamente normal, sem graça. Uma menina, nas suas próprias palavras, com um “rosto de madeira”.

No anime, pelo contrário, Anna se aflige porque tem medo de não ser normal. Em vez de mostrá-la direto na plataforma de trem, Yonebayashi abre seu filme com uma tomada da garota em um trabalho da escola, sentindo-se excluída pelos demais alunos.

A Anna de Robinson sofre porque desaparece na multidão. A Anna de Yonebayashi, porque é incapaz de fazê-lo.

É uma diferença sutil, mas que revela bem as diferentes pressões sociais que acometem os jovens na Inglaterra dos anos 1960 e no Japão dos dias de hoje.

Scilla/Sayaka

“A Priscilla viu você primeiro” disse a garota com as tranças. “Ela é aquela ali”. Ela apontou para uma menina de cabelos castanhos que estava olhando para a frente, em silêncio, com os olhos arregalados. (p. 184)

Scilla (apelido de Priscilla) é a garota que faz Anna entender que Marnie não é apenas uma obra da sua imaginação.

Depois de um tempo sem ver sua amiga, Anna se surpreende ao encontrar a casa do pântano em reformas. Uma nova família – bem mais moderna e “comum” – passa a habitar as janelas onde antes via Marnie e suas governantas.

Anna começa a pensar que estivera delirando, até que uma das crianças a chama de “Marnie”. É a deixa para que entenda que mais alguém além dela fez contato com a menina de cabelos loiros.

Batizada de Sayaka no anime de Yonebayashi, Scilla se manteve relativamente fiel à sua origem. Se no livro de Robinson ela era londrina, o filme a transformou em uma nativa de Tóquio, preservando a pompa de uma garota da cidade grande.

Infelizmente, as pouco menos de 2h do anime não foram suficientes para reproduzir todos os detalhes do romance. E Scilla, personagem secundária, acabou vítima da sala de edição.

Embora o conteúdo da sua participação não tenha mudado, a forma como é contada sofreu algumas das mudanças mais expressivas.

No filme, Anna conhece Sayaka quando esta grita o nome de “Marnie” da janela. No livro, o encontro é a conclusão de uma perseguição de dias, em que ambas as garotas pensam que estão atrás de um fantasma.

Quando a revelação de fato aparece, é de uma forma tão doce que nos faz sentir pena de não ter sido adaptada às telas:

A maré já havia virado quando ela alcançou a praia. O céu estava encoberto e parecia cinza e solitário, muito diferente do local ensolarado onde eles tinham jogado críquete naquela tarde. Tinha sido estúpido fazer todo aquele caminho até ali só para ver alguma coisa escrita na areia por uma garotinha, ela pensou. Mas ela desejara vir. Ela gostava de Scilla e estava feliz em saber que ela desejava compartilhar um segredo com ela, mesmo se fosse um segredo infantil.

Ela andou até a beira da água e o viu. Conchas e tiras de algas tinham sido usadas para fazer o padrão detalhado de cada letra, e o nome MARNIE estava escrito na areia. (p. 201)

 

A vendedora de flores

A amizade entre Marnie e Anna começa de forma tímida. Ciente das suas visitas, a habitante do casarão passa a deixar um barco para que Anna possa visitá-la. Sua casa, afinal, fica de frente a um pântano, inacessível a pé na maré alta.

É apenas ao tomar os remos e surpreender a amiga durante uma festa que sua estrepolia de verão se transforma em uma aventura para nunca mais esquecer. Em vez da amiga, Anna encontra uma festa de arromba povoada por ricaços e mordomos saídos de Downtown Abbey:

“Homens e mulheres em uniformes negros e vestidos brilhantes moviam-se de um lado para o outro. Anna viu o cintilar de jóias, o lustro de correntes de ouro, a luz reluzindo em taças de vinho, vasos de rosas vermelhas e brancas e um fundo de cortinas carmesins. O corredor foi subitamente preenchido pelo som de vozes e gargalhadas e música. (p. 99)

Anna tenta fugir, mas Marnie lhe dá uma ideia melhor. Emprestando-lhe um xale e um cesto de flores, ela disfarça a amiga de “cigana” e pede que se intrometa no baile fingindo ser uma mendiga.

O plano, surpreendentemente, dá certo. Anna se torna uma sensação, bebe vinho pela primeira vez e dança bêbada nos braços de Marnie sob a luz do luar.

A cena é tão perfeita ao espírito e à letra do livro de Robinson que mal deixa o que comentar. Os animadores chegaram até a reproduzir a mesmíssima flor que Anna colhe no livro: a lavanda do mar, gênero nativo de Norfolk.

A realidade começa a se dissolver

A festa leva Anna a pensar que seus dias com Marnie são bons demais para serem verdade. Em tempo, ela descobre que de fato são.

Depois daquela noite, Marnie convida Anna para participar de um jogo. Cada uma responderá a três perguntas sobre sua vida.

Tudo parece normal até que Marnie lhe pergunta como é morar na casa dos Pegg:

Anna abriu sua boca para responder e descobriu, para sua surpresa, que ela não conseguia se lembrar. Talvez fosse porque ela estivesse pensando na resposta de Marnie e se perguntando se era Pluto quem ela às vezes escutava latindo de noite. Como era estar na casa dos Pegg? Nem um mísero detalhe ela conseguia lembrar. Tudo havia saído de sua cabeça tão completamente como se alguém tivesse apagado uma lousa com uma esponja. Marnie, que até então só parecia meio real, tinha agora se tornado mais real que os Pegg. (p. 81)

Anna sente como se estivesse habitando duas realidades diferentes que não se misturam. Quando está com Marnie, o mundo “normal” parece desaparecer. Quando está na cidade na companhia dos outros, a amiga desaparece, e seu casarão volta a ser uma ruína.

A dualidade começa a afetar sua própria mente. Com o tempo, ela se vê repetindo a Marnie coisas que a amiga disse a ela – e escutando, em troca, frases que um dia saíram de sua boca:

“Isso é o que eu disse a você – da última vez em que nós estávamos aqui.”

“Foi mesmo?”

“Sim, você não lembra? Oh, pobre Marnie! Eu amo você. Eu amo você mais do que qualquer garota que eu já conheci”. Ela estendeu a mão para tocar os cabelos de Marnie, então parou a meio caminho. “E foi isso que você disse para mim” ela disse devagar, com um olhar surpreso em seu rosto. “Que engraçado. Até parece que estamos trocando de lugar.” (p. 145)

Yonebayashi não se contentou em reproduzir a cena nos seus mínimos detalhes.  Ele usou toda a bagagem visual do Studio Ghibli para contrastar (e misturar) a realidade com o mundo dos sonhos.  Repetindo uma técnica usada por Miyazaki em Vidas ao Vento, o diretor acrescentou uma cena deliberadamente fantástica à sua história realista.

Em dado momento, próximo ao fim do longa, Anna se vê perdida em um dilúvio, que envolve toda a praia até deixar apenas um pequeno morro.

Ao subir à segurança, uma onda de cor varre a paisagem, transformando o casarão em ruínas na mansão iluminada de seus sonhos.

A cena não aparece no livro – pelo menos, não desse jeito. Apontar isso, contudo,  é perder o mais importante de vista. Sem as longas descrições e o discurso indireto do romance, Yonabayashi precisou de outros recursos para ilustrar a catarse de Anna. A solução que arranjou conseguiu ser mais emocionante que seu material de origem.

O diário de Marnie

A confusão de Anna começa a ser elucidada quando Scilla (Sayaka) entra na história.

A revelação vem de um diário que a colega encontra no antigo quarto da garota, narrando em detalhes as aventuras que ela e Anna viveram juntas. O texto não deixa dúvidas de que Marnie foi uma garota de verdade, não apenas obra da sua imaginação.

Só há um pequeno problema: o diário tem mais de cinquenta anos. Como ela pode se lembrar de coisas que aconteceram há tanto tempo?

No filme, o pequeno caderno tem uma participação mais expressiva do que no romance original. Encontrado com folhas arrancadas, Sayaka eventualmente o complementa com outras páginas achadas pelo casarão. O resultado são duas cenas de revelação, completando o quebra-cabeças ao longo do terço final do longa.

No livro, pelo contrário, o diário dá apenas as pistas iniciais às garotas. O verdadeiro mistério só seria complementado depois (vide “A História de Gillie” abaixo) em uma escolha narrativa que tirou muito do protagonismo de Anna e Scilla.

O fundamental, no entanto, se manteve o mesmo. O diário lhes conta que Marnie sofria de um terrível medo. Disposta a ajudar a amiga (e, no processo ,entendê-la), Anna decide enfrentá-lo.

O moinho

Na cidadezinha costeira havia um antigo moinho, que rumores diziam ser assombrado. Marnie morria de medo do edifício – por motivos um tanto menos óbvios.

Apesar de parecer viver uma vida de princesa, Marnie era maltratada pelas governantas. Quanto seus pais saíam para viajar (o que acontecia com bastante frequência), as criadas da mansão aproveitavam para maltratá-la.

As punições incluíam trancá-la no quarto, machucá-la de propósito (penteando seus cabelos com pentes duros) e algo ainda pior: arrastá-la até o moinho, ameaçando trancá-la dentro da torre apodrecida.

Certo dia a tortura foi longe demais, e uma tempestade inesperada acabou trancando a pobre Marnie no moinho. A garota só foi salva por seu primo Edward (no filme, Kazuhiko) que depois tornar-se-ia seu marido.

Com a intenção de fazê-la confrontar seu medo, Anna leva Marnie de volta ao moinho para mostrar como não a nada a temer. As duas são surpreendidas por outra tempestade, que termina deixando Anna apavorada, ensopada e delirante de febre.

Moinho de Burham Overy Sthaithe, que inspirou o local do livro.

O moinho (que existe de verdade) também ganhou espaço na adaptação. Entretanto, o sentido do episódio variou um pouco de uma mídia para outra.

Primeiro por conta da postura da própria Marnie. Se no livro ela é retratada como uma vítima de um staff tirano, no filme ela é uma garota simplesmente infernal.

No seu pior momento, chega a prender sua governanta debaixo de um cobertor e a tranca dentro do quarto para que não atrapalhe sua travessura com Anna.

Somando a isso a diferença de classe entre Marnie e a governanta, não é de se espantar que as criadas nutrissem rancor. Embora nada justifique as crueldades que infligiam à menina, é possível ver como, ao seus olhos, ela teve o que merecia.

A diferença mais importante, porém, diz respeito à própria Anna. No livro, já febril e delirante, a garota escuta Marnie sendo salva por Edward. Ao vê-los ir embora sem resgatá-la, ela fica desolada. Depois de tudo o que tinha feito por Marnie como ela ousava abandoná-la?

A crise em sua amizade aparece nas telas, mas nem de longe com a intensidade com que foi trabalhada no romance. Na história de Robinson é justamente fazer as pazes com aquela traição que move Anna a desvendar o mistério até o fim.

De certa forma, toda a sua amizade é apresentada como uma rivalidade não declarada entre ela e Edward. Considerando que o rapaz é na verdade seu avô e que Marnie a criou como mãe (vide abaixo), a sub-trama tem um sentido simbólico mais profundo.

Anna, afinal de contas, foi abandonada diversas vezes durante sua vida: pela sua mãe que morreu, pela sua avó; que faleceu logo depois; por Sra. Preston, sua mãe adotiva, que cuida dela (ao seu ver) apenas por dinheiro.

Apavorada pelo espectro do abandono materno, ela o projeta sobre a garota misteriosa.

Nada é por acaso. Como Anna logo descobre, Marnie é muito mais que uma “amiga”.

A história de Gillie

No final, a verdade chega de onde Anna menos espera. Gillie, uma artista da cidade, visita a família de Scilla pouco depois de se mudarem. Ao escutar a história das garotas, ela revela o twist que fez amantes de yuri do mundo todo espumarem de desapontamento.

Marnie, no final das contas, não é uma paixonice imaginária de Anna. É uma amiga de infância de Gillie, que viveu naquela mesma casa cinquenta anos atrás.

Mais: ela é a avo da própria Anna, que a criou quando bebê.  Se Anna tem memórias tão vívidas dela – mesmo de episódios que não estão em seu diário – é porque Marnie usava essas histórias para embalá-la no berço.

As memórias foram embora, mas alguns fiapos permaneceram. Como uma foto antiga da casa do pântano, assinada por Marnie, que Anna segurava em sua mão no dia em que foi adotada.

No livro, quem une os pontos é sua mãe adotiva, Sra. Preston, que viaja para encontrá-la e bate um papo com a mãe de Scilla. A decisão resulta em uma série de capítulos expositivos, em um encerramento que já foi criticado por ser óbvio demais.

Gillie (em japonês, Hisako) também aparece no filme do Studio Ghibli. Feliz – e surpreendentemente – sua participação é muito mais sutil do que no romance.

No longa, ela é introduzida desde cedo como uma artista local, uma arma de Chechov que disparará em uma das cenas finais, depois de ter reconhecido Marnie a partir do desenhos que Anna esboça.

Infelizmente, é aqui que a “modernização” da história feita por Yonebayashi tem suas consequências mais drásticas.

No filme, os pais de Marnie são bon vivants que esquecem Marnie nas mãos da governanta enquanto curtem festas dignas do Grande Gatsby.

No livro, eles também estão ausentes, mas devido a uma obrigação de outra natureza: A Guerra para Acabar com Todas as Guerras.

Navio afundando durante a Batalha da Jutlândia, 1916

Marnie viveu cinquenta anos antes de Anna. Como a história se passa nos anos 1960, isso significa que ela viveu durante a Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918.

Seu próprio pai morreu em um navio afundado, deixando a mãe, sozinha, para administrar casa, negócios e família. Não é à toa que Marnie terminou largada nas mãos de suas governantas.

O próprio fato de Marnie ter uma governanta – três, na falta de uma! – já diz muito sobre ela. A avó de Anna não era uma garota qualquer. Era uma aristocrata britânica, vivendo em uma época em que divisões de classe eram mais intransponíveis que as trincheiras do Somme.

Marnie não era trancada em seu quarto porque era bagunceira. A mansão do pântano era uma gaiola dourada feita para separá-la de outro perigo: as crianças da “plebe” – como Wuntermenny – com quem era proibida de se relacionar.

Nascida ela própria em 1910, Joan Robinson conhecia muito bem esse mundo. E a sinceridade com que o explica às crianças em seu livro é tão inocente que chega a ser cruel:

“Ela estava sempre muito animada – uma companheira maravilhosa – e sempre parecia alegre em brincar comigo. Aquilo era uma surpresa para mim, porque eu não era uma criança muito excitante, isso eu posso lhes dizer! Eu era careta e sem-graça. Mas eu não acho que ela tinha muitos outros amigos.

“Por que não?” perguntou Scilla

“Era diferente naquela época.” Gillie explicou. “Crianças não faziam amizade umas com as outras casualmente, como elas fazem hoje” ela disse “Nós sempre tínhamos de pedir às nossas mães primeiro” (p. 253)

As tragédias não param por aí. No anime, Marnie manda sua própria filha, mãe de Anna, a um colégio interno depois da morte de seu marido. A Marnie do livro é forçada a coisa parecida, mas por motivos muito mais terríveis:

Eles caíram em silêncio, desapontados e um pouco tristes. Então Jane perguntou:  “O que aconteceu com o bebê de Marnie?”

Aquela tinha sido uma história triste, disse Gillie. Ela tinha apenas cinco ou seis anos quando a Segunda Guerra Mundial chegou e ela foi mandada para os Estados Unidos para se proteger dos bombardeios. Quando ela voltou já tinha quase treze anos e parecia outra criança, sua mãe disse – tão crescida, tão cheia de vontade e independente. E ela sempre pareceu ter rancor da mãe por tê-la mandado para longe, muito embora tenha sido para sua própria segurança (p. 263)

Londres em ruínas após os bombardeios nazistas

Ao trazer sua história para o presente, Yonebayashi jogou toda essa bagagem pelo ralo. Se isso deixou sua história mais acessível aos jovens contemporâneos, também mudou radicalmente seu sentido.

Marnie, o livro, não é apenas um coming of age. É um romance geracional sobre duas garotas de épocas diferentes confinadas por prisões invisíveis: a gaiola dourada da aristocracia pré-guerra e a solidão de um presente que força todos a serem felizes.

É um retrato de uma geração de britânicos marcados pelo turbilhão da guerra – e pelas transformações sociais drásticas, libertadoras, mas também violentas trazidas pelo conflito.

Por que Yonebayashi não decidiu unir o útil ao agradável, como fez Miyazaki em Vidas ao Vento ou o não-Ghibli Sunao Katabuchi em Nesse Canto do Mundo – é difícil de entender.
O Japão afinal de contas, não é um estranho ao trauma da guerra. A morte do pai de Marnie na Batalha da Jutlandia faria o mesmo sentido no Estreito de Tsushima. E o espectro  da Blitz de Londres não é mais poderoso que o da bomba de Hiroshima.
Seja como for, não tenho como afastar a impressão de que isso fez de Marnie uma entrada menor do cânone ghibliesco, sem o poder e relevância de Princesa Kaguya ou  Túmulo dos Vagalumes.


Marnie, de Yonebayashi, é fidelíssimo ao romance original de uma forma que raramente se vê no cinema. Nenhum detalhe se perdeu na adaptação, nem mesmo seus personagens secundários e peculiaridades do cenário.

Se o filme não supera o livro, no entanto,  é porque falha em capturar o que estava além das palavras. Sem o DNA britânico que Robinson deu à sua história – do passado da Guerra ao sotaque de suas personagens –  o longa perde aquilo que fazia dela única.

A escritora Linn Ulmann certa vez disse que histórias precisam de um “senso de um lugar”. Ao arrancar Marnie de sua Norfolk do pós-Guerra, o filme do Studio Ghibli se tornou inofensivo, até um tanto genérico: mais um (de tantos) contos de angústias adolescentes.

Nada de errado com isso. Mas, até aí, também nada de novo sobre o sol.

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http://www.finisgeekis.com/2018/10/10/anime-x-livro-as-memorias-de-marnie/feed/ 9 20576
Anime x Livro: “Gankutsuou: O Conde de Monte Cristo” http://www.finisgeekis.com/2018/09/11/anime-x-livro-gankutsuou-o-conde-de-monte-cristo/ http://www.finisgeekis.com/2018/09/11/anime-x-livro-gankutsuou-o-conde-de-monte-cristo/#comments Tue, 11 Sep 2018 18:41:07 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20356  

Muitos animes são baseados em mangás. Outros tantos em games ou visual novels.

Mas existem também aqueles baseados em livros. E não digo apenas as light novels tão populares na Terra do Sol Nascente. Mas romances “inteiros”, para o público infanto-juvenil ou adulto, que já possuem um espaço cimentado na literatura. E, em alguns casos, uma fama que remonta a séculos.

Quão fiéis são essas adaptações? O que acontece com suas personagens, conflitos e ideias depois de transpostos à era contemporânea, ou ao mundo oriental? É verdade que “o livro é sempre melhor”?

Se você já se perguntou essas coisas, é com prazer que lhe dedico essa nova série temática do Finisgeekis. O projeto mais ambicioso, longo, trabalhoso e (por que não?) baddass que esse site já viu.

Anime x Livro tem como objetivo comparar romances da literatura com suas adaptações na telinha japonesa. Baseado no excelente Book vs. Film do A.V. Club,  a proposta é sair do fla-flu e esmiuçar essas séries (e livros) em detalhe.

E para dar a largada, nada melhor que uma das mais ousadas adaptações da mídia: Gankutsuou: O Conde de Monde Cristo. A adaptação mais longa, complexa e diferente do clássico de Alexandre Dumas já feita em qualquer formato.

Uma aviso aos marinheiros de primeira viagem: esse artigo é longoO Conde de Monte Cristo tem mais de 1000 páginas e o anime deixa muito pouco de fora. Para facilitar a navegação, ele está dividido em seções que podem ser acessadas individualmente abaixo.

AVISO (DESNECESSÁRIO): Contém SPOILERS para O Conde de Monte Cristo Gankutsuou.


O Conde de Monte Cristo por Mead Schaeffer (1898-1980)

O Conde de Monte Cristo é um dos maiores clássicos da literatura mundial. Lançado em capítulos entre 1844 e 1846, a obra se tornou um fenômeno imediato de público.

Sua trama acompanha Edmond Dantès, um jovem marinheiro de Marselha que parece ter vencido a loteria da vida. Noivo, promovido a capitão do navio em que trabalhava, nada poderia lhe dar errado.

Infelizmente para Dantès, seus queridos amigos não são assim tão queridos. Motivados pela inveja, três de seus companheiros montam um complô para colocá-lo atrás das grades. Acusado de bonapartismo logo após a derrota de Napoleão, Edmond é enviado à prisão para nunca mais sair.

Para a sorte de Dantès, ele não é a única alma traída pela justiça. No cárcere, o jovem conhece um polímata chamado Padre Faria, que lhe confia um grande segredo: um tesouro inestimável escondido na ilha de Monte Cristo, esperando ser descoberto. Com o passar do anos, os dois montam um plano para resgatá-lo.

Faria não sobrevive à fuga, mas Dantès sim. E munido de uma riqueza infindável, com todo o conhecimento que recebeu do padre, decide criar para si uma outra identidade: O Conde de Monte Cristo, um nobre sem pátria, sem passado e sem vínculos.

Na pele desse estranho misterioso, Dantès começa a arquitetar um plano de vingança.  A vingança mais completa, maquiavélica, cruel e imprevisível que qualquer um poderia conceber.

Uma vingança tão complexa que daria ao Batman uma lição de humildade. E faria leitores se descabelarem tentando acompanhar cada um de seus passos.

O mapa da vingança do Conde de Monte Cristo

Exibido entre 2004 e 2005, Gankutsuou não foi para os animes o arrasa-quarteirão que o livro de Dumas foi para a literatura. Mesmo assim, suas credenciais não podiam ser melhores.

A obra é assinada por ninguém menos que Mahiro Maeda, que conta no currículo com Animatrix: Segunda Renascença, Blue Submarine No 6 e o segmento animado de Kill Bill.

O anime adapta a história a um futuro distante e anacrônico, em que aliens e naves espaciais dividem espaço com dirigíveis, carruagens e roupas do século XIX. O cenário é uma referência a Estrelas O Meu Destino de Alfred Bester, clássico do sci fi que também homenageia a obra de Dumas.

Curiosamente, a maior diferença entre as obras não está no cenário espacial, mas em seu ponto de vista. Enquanto que Dumas nos conta sua história pelos olhos de Dantès, Maeda nos coloca nos pés de Albert de Morcerf, filho de Fernand Mondego, um dos alvos da vingança do Conde.

Embora os eventos narrados sejam praticamente os mesmos, essa decisão traz uma mudança drástica ao tom da série. Se no livro Dantès é um anti-herói se vingando daqueles que merecem, no anime ele se torna uma figura sinistra, manipulando pessoas e destruindo vidas para satisfazer o próprio ódio.

Até que ponto essas mudanças são fieis ao espírito do romance? Vamos por partes.

Os inimigos de Dantès

Fernand Mondego, conde de Morcerf

Não é você o soldado Fernand que desertou na véspera da batalha de Waterloo? Não é você o tenente Fernand que serviu de guia e espião ao exército francês na Espanha? Não é você o coronel Fernand que traiu, vendeu e assassinou seu benfeitor Ali? E todos esses Fernands aqui reunidos não formam o general de divisão conde de Morcerf, par de França? (capítulo XCII)

Fernand Mondego é o mais famoso dos inimigos de Dantès – em algumas interpretações, o único. Rival amoroso de Edmond durante sua juventude, ele se une ao complô para conquistar o coração de Mercèdes, garota que disputa com o jovem.

Mondego (ou Morcerf, como veio depois a se chamar) é descrito como um covarde crônico, um militar pérfido que sobe na vida surfando a maré da oportunidade –  às custas, muitas vezes, de seus aliados.

Espanhol de berço, não teve problema em marchar contra a Espanha a serviço da França, nem em trair a França a favor dos ingleses em 1815, quando o regime de Napoleão começava a desmoronar.

Sua pior traição, no entanto, aconteceu em 1822, quando se voluntariou como consultor de Ali Tebelin, o pasha (governador) de Janina, na Grécia, em sua rebelião contra o Império Otomano. Seduzido pelos turcos, Mondego vendeu seu aliado às forças de sultão, capturou sua mulher e filha e as leiloou como escravas.

Por ser uma personagem tão calcada em eventos históricos, é óbvio que Fernand sofreria as maiores mudanças em Gankutsuou. No anime futurista de Maeda, o século XIX é uma lembrança remota, e seu cenário geopolítico passa longe da complexidade do mundo de Dumas.

Em Gankutsuou, o Império Otomano não existe, mas há de fato um “Império” que rege um “Quadrante Oriental”, com uma inimizade em relação a Paris que reflete a desconfiança para com os turcos durante boa parte da história europeia.

Surpreendentemente, o episódio de Janina é reproduzido nos mínimos detalhes, com direito a um planeta chamado “Janina” (na vida real, uma cidade na Grécia).

O “planeta” Janina em Gankutsuou. Note que a catedral é uma cópia exata da Basílica de Santa Sofia em Constantinopla (atual Istambul).

Mondego preservou seu caráter como militar corrupto, embora sua personalidade tenha sofrido algumas mudanças. Enquanto que no livro ele é um traidor compulsivo, o general do anime é um aspirante a ditador sedendo pela violência.

No curso dos episódios, chega a conduzir campanhas militares para firmar sua candidatura a presidente. Humilhado publicamente por Haydée (veja abaixo), decide dar um golpe de Estado que coloca Paris em rebuliço.

Nada disso existe no romance de Dumas, em que Fernand há muito já aposentou a espada, e a França, monárquica, não tinha presidentes.

Villefort

Para seus amigos, M. de Villefort era um protetor poderoso; para seus inimigos, um adversário surdo, porém ardoroso; para os indiferentes, era a estátua da lei feita homem: atitude arrogante, fisionomia impassível, olhar insosso e gélido ou insolentemente afiado e perscrutador, tal era o homem que quatro revoluções habilmente empilhadas uma sobre a outra haviam construído, depois cimentado o pedestal. (capítulo XLVIII)

Se Mondego é um mau-caráter desde o começo – um “pecador”, como Dumas nunca cansa de chamá-lo – Villefort é, à primeira vista, uma alma atormentada.

Ao contrário das outras personagens dessa lista, ele não é um dos membros do complô contra Dantès, mas o delegado que o recebe quando é injustamente preso.

Jovem, prestes a se casar com o amor de sua vida, ele simpatiza com o marinheiro de imediato.  Infelizmente, o complô contra Dantès acaba colocando sua própria carreira em risco.

Na carta bonapartista carregada por Edmond, Villefort encontra o nome de seu pai, M. Nortier. Como oficial da Coroa, ele sabe que aquele escândalo pode trazer abaixo tudo o que construiu. Para garantir que a história não venha à tona, ele prende Dantès ilegalmente e o priva de qualquer recurso.

O tempo passa, e Villefort se torna o mais severo procurador da França. Como se para compensar seu passado criminoso, ele se torna a personificação da justiceiro hipócrita, usando a lei para esconder os esqueletos em seu armário.

Gankutsuou capturou bem os traços gerais de Villefort, embora sua personagem seja menos explorada que as outras. De todos os inimigos de Dantès, Villefort é o mais complexo. Para destrui-lo, o Conde se ampara em uma série de detalhes da sua vida pessoal que o anime não aborda tão bem quanto deveria.

Villefort é filho de Noirtier, um velho bonapartista que sofreu um derrame e só consegue mover uma das pálpebras. Ele tem uma filha do primeiro casamento, Valentine, e um filho chamado Édouard, da sua segunda esposa, Héloïse.

Noirtier e Villefort se detestam por questões pessoais e políticas. Héloïse detesta Valentine, pois a garota receberá uma herança que, na sua opinião, deveria ir para seu filho. Valentine, por sua vez, ama seu avô Noirtier, que a protege de tudo e de todos – apesar de só ter uma pálpebra para se comunicar!

Complicado? E isso porque não falamos da Valentine, que vive um amor proibido com Maximilien Morrel, que é filho de M. Morrel, dono do Pharaon, navio onde trabalharam Dantès e Danglars, com cuja esposa…

Enfim, é coisa demais para 24 episódios, e os cortes foram inevitáveis. O clã Villefort aparece quase todo em cena, mas como resultado seu tempo de tela é dramaticamente reduzido.

Danglars

Danglars é um daqueles homens de cálculo que nascem com uma pluma atrás da orelha e um pote de tinta no lugar do coração. Tudo nesse mundo é para ele subtração ou multiplicação, e um número lhe parece mais valioso que um homem, quando esse número pode aumentar o total que este homem pode diminuir. (capítulo IX)

Contador do Pharaon, navio em que Dantès trabalhava, Danglars é o mais vil, mundano e asqueroso dos vilões do romance.

Movido por inveja a Edmond, que estava prestes a se tornar capitão, o contador arquiteta o complô para tirá-lo de cena – e lucra horrores com a sua desgraça.

Com o passar dos anos, ele se torna um banqueiro influente, com tentáculos nos principais investimentos, cartéis e máfias do mundo financeiro. A obsessão pelo dinheiro se dá às custas de sua empatia com as outras pessoas – incluindo sua própria família.

Sua filha, Eugénie, é tratada como uma moeda de troca, prometida e “desprometida” em casamento sem que sua opinião sequer seja consultada. Já sua esposa usa sua fortuna para seus próprios fins, dormindo com uma legião de amantes que incluem o próprio Villefort.

Dos três antagonistas de Gankutsuou, Danglars é sem dúvida o mais fiel à sua caracterização original.

O costume design de Anna Sui, utilizando texturas estáticas em vez de cores tradicionais, traz sua caricatura à vida. Danglars se veste com texturas de barras de ouro, em uma casa estampada por cifrões e notas de dólar.

No romance, ele é contatado pelo Conde de Monte Cristo como um potencial cliente. Seduzido pela aparente riqueza do desconhecido, ele aceita dar ao conde um contrato de crédito ilimitado.

Tudo parte do plano de Dantès, que passa a exigir empréstimos pesados enquanto manipula o mercado de ações para que ele perca investimentos. Pouco a pouco, toda a sua fortuna vai para o espaço.

O anime é surpreendentemente fiel a esse plano, reproduzindo-o até nos mínimos detalhes. Danglars aceita o Conde como cliente após receber uma carta de recomendação do banco MM Thomson & French.

A carta – e o banco – existem no livro original e constituem uma das muitas fachadas de Dantès. Não satisfeito em roubar dinheiro Danglars, o conde funda seu próprio banco (e cria uma identidade secreta como seu representante) para derrubar todo o sistema que o enriqueceu.

É preciso dar crédito ao Conde. Não satisfeito em se vingar, ele também se tornou um empreendedor!

Caderousse

Uma segunda fortuna caiu para você do céu, você reencontrou o dinheiro e a tranquilidade, você pôde recomeçar a viver a vida de todos os homens, você, que havia sido condenado a viver entre os presidiários. Mas então miserável, então você quis tentar a Deus uma terceira vez. Eu não tenho o suficiente, você disse, quando você tinha mais do que jamais havia possuído. Você cometeu um terceiro crime, sem motivo, sem desculpas. Deus está cansado. Deus vai te punir. (capítulo LXXXIII)

O Caderousse de Maeda é tão diferente de sua versão literária que pode ser considerado uma outra personagem.

Menos importante de todos os inimigos de Dantès, Caderousse é o único que não se dá bem com a sua ruína. Pelo contrário, ele é tido como um eterno azarado, recebendo o carma pelas suas más ações assim que as comete.

É Caderousse quem Dantès procura assim que escapa do Castelo d’If. Disfarçado como um de seus alter-egos, o padre Busoni, Edmond lhe oferece um anel de diamante em troca do paradeiro de Villefort, Mondego e Danglars.

Por ganância, ele mata o joalheiro que contrata para avaliar a joia. O crime o leva à prisão, onde vira companheiro de cela de Benedetto, um criminoso inveterado que mais tarde seria recrutado pelo Conde, cumprindo um papel fundamental na sua vingança.

Caderousse tenta extorquir Benedetto e até planeja roubar a mansão de Dantès quando descobre que ele está ajudando o ex-comparsa. O crime termina mal, e somos presenteados com uma das mais satisfatórias cenas de morte do romance.

Nada disso aparece no anime, em que Caderousse é reduzido a uma exposição ambulante, pincelando detalhes do enredo que escapam às outras personagens.

Triste fim para uma personagem que, desde a origem, não teve sorte na vida…

O círculo de Albert

Albert de Morcerf

Albert não era apenas um cavalheiro muito elegante, mas também um homem de muito espírito. Mais ainda, ele era visconde: de nobreza jovem é verdade, mas hoje em dia não se pede mais esse tipo de prova. Que importa se um título data de 1399 ou de 1815? (capítulo XXXIV)

Personagem secundário elevado a protagonista, Albert é obviamente a personagem que mais sofreu modificações na visão de Maeda.

No livro, Albert é o filho de Fernand Mondego e Mercédès, noiva de Edmond antes de seu aprisionamento. O jovem tem um imenso orgulho do pai, que considera um grande herói militar.

Ele é a porta de entrada ao Conde à Paris, tendo-o conhecido meses antes em Roma, durante o Carnaval.

No anime, Albert se torna praticamente uma figura filial para o Conde. Mais jovem que sua contraparte literária, o garoto é a âncora de humanidade que impede que o Conde se perca no labirinto da vingança.

Em algumas cenas, como no climático episódio 23, sua devoção chega a um nível quase romântico.

O subtexto homoerótico não existe no romance (pelo menos, não entre os dois). Nem a devoção de Albert ao Conde, que ofusca o carinho de Dantès com outra personagem jogada no escanteio:

Maximilien Morrel

Em seu regimento, Maximilien Morrel era citado como um rígido observador, não apenas de todas as obrigações impostas ao soldado, mas também de todos os deveres exigidos do homem, e ninguém o chamava de outra coisa senão de “o estoico”. Não é preciso dizer que muitos dos que lhe davam esse epíteto o repetiam por tê-lo escutado e não sabiam eles próprios o que queria dizer. (capítulo XXX)

Filho de M. Morrel, dono do navio em que Dantès trabalhava, Maximilien é o único entre seus conhecidos de Paris que o Conde não apenas não odeia, mas abertamente ama.

Edmond conheceu Maximilien quando era criança. Embora o jovem não mais o reconheça, o Conde esteve disposto a tudo para ajudá-lo. Retribuição ao seu pai, M. Morrel, que fez o possível e o impossível para tentar (inutilmente) tirá-lo da prisão.

O design de Maximilien é um dos mais inusitados (e apropriados) de Gankutsuou. No livro, o jovem é um capitão de sipahis, regimento inspirado na cavalaria otomana. No anime, ele é reimaginado como um militar moderno, com uma farda austera que contrasta com a pompa nababesca de seus colegas.

É Maximilien, não Albert, que o Conde toma como filho adotivo. É Maximilien a quem ele diz as famosas palavras attendre et éspérer (“espere e tenha esperança”), o lema mais famoso do livro. E, finalmente, é a ele – e à sua namorada, Valentine de Villefort –  que o Conde lega toda a sua fortuna quando sua vingança é concluída.

(Sim, o Dantès não morre ao final do romance. Mais sobre isso em “O destino do Conde”, lá embaixo).

Franz d’Épinay

“Eu sou excêntrico, é verdade, mas minha excentricidade não inclui retirar minha palavra depois que eu a tenha dado.” (capítulo LXVIII)

Se Maximilien foi relegado ao banco de reservas, Franz d’Épinay, melhor amigo de Albert, sofreu o processo inverso.

No romance, o jovem é um personagem secundário, cuja principal função é servir de wingman a Albert durante suas folias no carnaval de Roma. Franz é noivo de Valentine, filha de Villefort e cumpre um papel importante na subtrama entre ela e Maximilien, seu amor verdadeiro.

Assim que esse conflito se resolve, ele simplesmente sai de cena por quase todo o restante da história!

Maeda deve ter achado que Dumas cometeu uma injustiça. Pois Franz, de figurante, se tornou a personagem mais importante depois de Albert.

Franz é a voz da razão que se interpõe entre o amigo e o Conde. É a partir dos olhos dele que vemos Monte-Cristo como algo mais sinistro do que aparenta à primeira vista, ameaçando um Albert deslumbrado demais para enxergar onde pisa.

Jovem honrado (e até cabeça-dura), ele leva sua amizade aos últimos limites. Quando Albert desafia o Conde a um duelo (que, no livro, sequer acontece) ele dopa o amigo e vai disfarçado em seu lugar.

O resto, como dizem, é história.

Eugénie Danglars

Mlle. Danglars era a mesma de sempre, quer dizer bela, fria, e debochada. Nenhum de seus olhares, nenhum dos suspiros de Andrea lhe fugiam. Pode-se dizer que eles eram defletidos pela couraça de Minerva, couraça que alguns filósofos dizem às vezes remontar ao busto de Safo. (capítulo LXXVI)

A referência a Safo de Lesbos, por si só, diz tudo o que precisa ser tido sobre Eugénie. Se Albert e o Conde viraram amantes na imaginação de Maeda, a filha de Danglars do livro gosta de outro tipo de fruta.

Em Gankutsuou, Eugénie é a amiga de infância de Albert a quem ele foi prometido em casamento. Embora nenhum dos dois deseje a união, eles acabam desenvolvendo sentimentos um pelo outro. Que culminam em um dos beijos mais emocionantes que já tive o prazer de ver num anime:

Longe de mero objeto de conquista, Eugénie é uma das principais aliadas de Albert e também seu termômetro, ao lado de Franz, que o avisam das maquinações do Conde.

Nada disso poderia ser mais diferente da Eugénie de Dumas, uma lésbica apaixonada por sua professora de música, hostil a quase todas as personagens e que parece odiar homens como um todo.

Eugénie cumpre um papel central nos planos do Conde, mas nunca se envolve profundamente com nenhuma das personagens principais. Tal como sua contraparte em Gankutsuou, tudo o que ela deseja é abandonar a vida aristocrática e viver como artista ao lado de sua namorada.

Coisa que de fato fez, com certa ajudinha do Conde. Em uma das passagens mais divertidas do romance, Eugénie foge ao lado de sua amada, vestida de homem de maneira a evitar suspeitas.

Maeda chegou a considerar incluir sua sexualidade original. Em um dos trailers do anime, vemos uma cena da garota com um character design alternativo, beijando outra mulher:

É, no entanto, compreensível porque Maeda não tenha insistido na ideia.

Em uma adaptação relativamente curta (para os padrões gigantescos do livro), não haveria muito espaço para uma personagem secundária como a Eugénie de Dumas. No pior dos casos, ela sofreria o mesmo problema da família de Villefort: jogados ao escanteio por falta de tempo de TV.

Maeda também quis traçar um paralelo entre o círculo de Albert e o círculo do próprio Dantès antes de se tornar o vingador de Monte Cristo. No último episódio, nos é mostrado um flashback de sua vida em Marselha, em que Dantès, Mercèdes e Fernand (na época, ainda amigos) brincam juntos na praia.

A cena é funcionalmente idêntica ao opening, que mostra os amigos Albert, Franz e Eugénie em um momento de descontração:

Os asseclas do Conde

Ali

Ali não é uma personagem central nem para o livro nem para o anime. O próprio fato de ter sido incluído, no entanto, mostra o esmero de Gankutsuou com seu material de origem.

Na série de Maeda, Ali é um alienígena a serviço do Conde. Em nenhum momento ele ergue a voz para questionar seu mestre – ou, na realidade, para qualquer outra coisa. O próprio Dantès o descreve como “marionete”.

Seu momento de glória aparece quando salva Héloïse e Edóuard de Villefort de um acidente de carruagem. Tudo é parte de um plano do próprio Conde para seduzir a esposa de seu rival: colocando sua vida em risco para depois salvá-la e bancar o herói.

O episódio é idêntico à sua contraparte no romance, com um detalhe peculiar. No livro, Ali é um escravo mudo de um sultão da Tunísia, cuja vida Dantès salvou.

A cena em que Édouard “agradece” ao seu salvador xingando sua aparência? Trata-se de um ataque racista do moleque ao escravo do Conde. Coisa que se repete em outros momentos da história – e que Dantès não está disposto a perdoar:

– Na verdade – disse Monte-Cristo – sua Paris é uma cidade estranha, e vocês parisienses um povo singular. Parece que é a primeira vez que vêem um núbio. Veja como se comprimem ao redor do pobre Ali, que nem sabe o que isto quer dizer. Eu lhes respondo uma coisa: se um parisiense for, por exemplo, a Túnis, a Constantinopla, a Bagdá ou ao Cairo não se fará um círculo em torno dele. (capítulo LIII)

O assunto tinha uma importância pessoal ao próprio Alexandre Dumas. Pardo, o escritor foi filho de Thomas-Alexandre Dumas, haitiano que se tornou general do exército napoleônico e militar negro mais condecorado da história da Europa:

General Thomas-Alexandre Dumas (1762-1806), pai de Alexandre Dumas

Os comentários de Édouard a Ali decerto não eram estranhos a ele – nem ao seu pai. E a invectiva de Monte-Cristo é, sem dúvida, algo que esperou muitas vezes escutar.

Bertuccio

– O bom servidor para mim é aquele sobre o qual eu tenho direito de vida ou de more.

– E você tem direito de vida ou de morte sobre Bertuccio? – perguntou Albert

– Sim – respondeu friamente o conde.

Há palavras que encerram a conversa como uma porta de ferro. O “sim” do conde foi uma destas palavras. (capítulo LXXXV)

O capanga mais leal do Conde é uma personagem curiosa. Levando em conta seu papel na obra original, Bertuccio consegue ser, a um só tempo, explorado de menos e demais na adaptação.

Em Gankutsuou, o brutamontes de voz forte é um símbolo da metamorfose de Dantès. De início um servo leal, Bertuccio se torna cada vez mais transtornado com a conduta sádica de seu mestre.

É curioso, no entanto, que sua backstory tenha sido completamente ignorada. Muito embora os eventos que protagonizou – e que o levaram a conhecer o Conde – estejam todos presentes no anime.

No romance de Dumas, Bertuccio é irmão de um soldado de Napoleão, assassinado por um monarquista ao voltar para casa depois de Waterloo. Desesperado, ele procura o procurador local, que não é ninguém menos que Villefort.

Sem vontade de se associar ao bonapartismo, Villefort se recusa a ajudá-lo. Indignado, Bertuccio decide fazer a justiça com as próprias mãos. Ele segue o procurador até o quintal de sua casa e lhe fere com uma punhalada.

Infelizmente, o plano não segue o esperado. Villefort sobrevive ao ferimento. Pior: Na sanha para fugir, Bertuccio descobre que o procurador estava enterrando um bebê, filho ilegítimo de Villefort com Mme. Danglars, com quem estava tendo um caso. Incapaz de deixar uma criança para morrer, ele a toma consigo.

affair de Villefort e seu filho se tornarão duas das peças-chaves no no plano de vingança do Conde, tanto no livre quanto no anime. Curiosamente, toda a atuação de Bertuccio é omitida na versão de Maeda. Em Gankutsuou, o bebê é encontrado por um servo qualquer, e o capanga não demonstra o menor conhecimento de Villefort.

Haydée

     

Sua cabeça estava coberta por uma pequena touca de ouro bordada com pérolas, tombada para um lado, e debaixo da touca, do lado em que se inclinava, uma bela rosa de cor púrpura se misturava a cabelos tão negros que pareciam azuis.

Quanto à beleza daquele rosto, era a beleza grega em toda a perfeição de seu tipo, com seus grandes olhos negros aveludados, seu nariz retilíneo, seus lábios de coral e seus dentes de pérola. (Capítulo XLIX)

Escrava alienígena a serviço do Conde, Haydée é, a princípio, a personagem mais distante das intrigas mediterrâneas da obra de Dumas. É impressionante, assim, que consiga ser também a personagem mais fiel de todas ao livro.

E não falo apenas de seu character design, que reproduziu perfeitamente a beleza exótica que o autor lhe atribui – incluindo até seus cabelos azulados, como se pode ler acima.

Haydée é singular por ser quase uma personagem histórica. Na trama, ela é filha de Ali Tebelin, o pasha otomano que tentou se rebelar contra o sultão – e foi traído por Fernand Mondego. Foram Haydée e sua mãe que Fernand vendeu como escravas depois do episódio de Janina.

Tebelin de fato existiu. E, a despeito de ser um alien do “Quadrante Oriental”, sua versão de Gankutsuou é incrivelmente fiel ao líder histórico:

Haydée possui uma relação ambígua para com o Conde. Dantès a trata como escrava em público, mas parece tê-la como filha em particular. Em dado momento, até tenta uni-la com Maximilien, até descobrir sua paixão secreta por Valentine.

Ao mesmo tempo, a garota parece ter um afeto por ele que vai além do familiar. Até que ponto se amor é correspondido é algo que Dumas deixa a cargo da nossa imaginação. O livro termina com ambos partindo juntos à Janina para nunca mais serem vistos.

Esse amor complicado (para dizer o mínimo) não aparece em Gankutsuou. Mesmo assim, a estranhice de sua relação chega a ser comentada por Albert.

Ao ser questionado do vínculo entre os dois, ele comenta que é uma “relação comum entre dois adultos”. O jovem se encabula, percebendo que nem ele sabe o que quer dizer com isso.

 O carnaval de Roma

Ao contrário do livro de Dumas, Gankutsuou começa sua história in media res. Somos apresentados ao Conde no carnaval de Roma, quando Albert conhece Dantès pela primeira vez.

Todos os detalhes sobre seu passado, de sua romance com Mercédès ao seu período na prisão, são revelados apenas muito depois, por meio de flashbacks e infodumps. 

A despeito da mudança de foco, o episódio em si é uma das partes mais fiéis à história original.

“Roma” é trocada por Luna, uma colônia humana na Lua. Todos os seus detalhes, no entanto (inclusive a presença da Santa Sé!) são mantidos exatamente como no livro.

Albert e seu amigo Franz estão buscando um lugar para curtir a folia quando se encontram com o Conde, que se oferece para ciceroneá-los.

Tudo vai bem, até que Albert decide se aventurar pelos inferninhos da noite. Ele é sequestrado por Luigi Vampa, um dos bandidos mais perigosos da Itália. Para sua surpresa, o Conde aparece para salvá-lo. A mera presença de Monte-Cristo é suficiente para intimidar o bandido, que liberta seu refém de imediato.

Do episódio nasce uma amizade entre Albert e o Conde, e um convite para que Dantès venha visitá-lo em Paris. Tudo parte do plano de Edmond: Albert é o filho de seu inimigo Fernand, e ele pretende usá-lo de ferramenta para se aproximar do rival.

Gankutsuou traz, no entanto, uma pequena diferença em relação ao livro.

No anime, o Conde convida Albert e Franz para assistir a uma execução em praça pública. Porém, antes que o carrasco faça seu serviço, revela que possui uma carta de anistia escrita por um cardeal.

Em vez de salvar a vida do criminoso que considera menos culpado, o Conde decide apostar o destino em um jogo de cartas, com Albert como executor. A despeito dos protestos de Franz, o jovem participa e acaba, inadvertidamente, salvando a pele do pior dos condenados.

A cena é um soco no estômago não apenas de Albert, mas também do espectador. Seduzidos pela ideia de que o Conde seria um herói (ele é, afinal, a personagem titular!) somos apresentados a um homem calculista, arbitrário e sádico.

Sua contraparte no romance é menos dramática que no anime, porém mais significativa. O relevante nela não é sequer a execução em si, mas o que acontece imediatamente depois.

Ao descobrir que o homem ao seu lado foi anistiado, um dos criminosos tem um ataque de raiva. “Eu não vou morrer sozinho!” ele grita “É injusto! Ele tem que morrer também!”.

O protesto provoca gargalhadas no Conde, que emenda com um dos seus melhores discursos do livro:

– Coloque dois carneiros no açougue, dois bois no abatedouro e faça compreender a um que seu companheiro não morrerá. O carneiro balirá de alegria, o boi mugirá de prazer, mas o homem, o homem que Deus fez à sua imagem, o homem a quem Deus impôs por primeira, por única, por suprema lei o amor de seu próximo, o homem a quem Deus deu uma voz para exprimir seu pensamento, qual será seu primeiro grito quando descobrir que seu camarada está a salvo? Uma blasfêmia. Honra ao homem, este mestre de obras da natureza, este rei da criação!

E o conde irrompeu em riso, mas um riso terrível que indicava que ele havia tido de sofrer terrivelmente para chegar a rir de tal maneira. (cap. XXXV)

É um foreshadow brutal do que está por vir, e uma prova definitiva de que o Dantès que vimos no começo não é mais o mesmo homem.

Tal como o condenado na praça pública, o Conde de Monte-Cristo é um espírito distorcido pelo ódio, que só quer ver seus rivais sofrerem. Custe o que custar.

A noite na ópera

Depois de se despedirem em Roma, o conde aceita o convite de Albert e compra um palacete nos Champs-Elysées, disposto a integrar a sociedade parisiense.

Aqueles que já visitaram Paris sabem que a avenida é um espetáculo à parte. Nada, contudo, se compara à sua mansão no anime, um underground nababesco que parece desafiar as leis da física.

Mas nem só de palácios vive um nobre. Para se introduzir aos círculos dos aristocratas, o Conde decide atender a uma noite na ópera.

Sua date é ninguém menos que Haydée, que faz queixos caírem, bochechas corarem e olhos revirarem com sua beleza fora da série e seu vestido impossivelmente luxuoso.

Ao fim de um instante, a jovem mulher se tornou o objeto de atenção não só da plateia, mas de toda a sala; as mulheres se debruçavam para fora dos camarotes para ver jorrar sob o fogo dos lustres aquela catarata de diamantes. (capítulo LIII)

A tomada é um dos pontos fortes do anime. O corpo da garota, coberto com mais pedras do que caberia em uma joalheria, foi animado completamente em CG. O resultado salta aos olhos mesmo em uma série como Gankutsuou, cuja direção de arte é tudo menos discreta.

Infelizmente, Haydée estaria fadada a roubar a cena de outra forma. Do alto de seu camarote, a garota enxerga Fernand Mondego. Reconhecendo o rosto do homem que a vendeu à escravidão, ela fica transfigurada:

Naquele momento, Haydée, que buscava os olhos do conde, reconheceu sua cabeça pálida ao lado daquela de M. de Morcerf, que o envolvia em um abraço.

Aquela visão produziu na jovem garota o efeito da cabeça da Medusa. Ela fez um movimento como se quisesse devorar a ambos com o olhar, depois, quase ao mesmo tempo, jogou-se para trás soltando um grito débil, que foi no entanto ouvido pelas pessoas mais próximas dela e de Ali, que então abria a porta.

[…]

– Ah! O miserável! – exclamou Haydée – É ele que me vendeu aos turcos!

A cena da ópera é um daqueles momentos em que a adaptação supera seu material de origem. O misto de ostentação visual, direção competente e trilha sonora arrepiante passa uma tensão maior que a prosa seca de Dumas – e estupidamente melhor que qualquer outra adaptação da obra que conheço.

Infelizmente, o que é bom dura pouco. A despeito de seus acertos, o anime de Maeda logo derrapa em uns pontos chaves.

O jantar em Auteuil

Logo depois de causar um furor na sociedade parisiense, o Conde de Monte Cristo decide convidar seus inimigos a um jantar. O local? Uma casa de campo em Auteuil, perto de Paris.

Embora pague de anfitrião cordial, as intenções de Dantès estão longe de ser puras. O local era uma antiga casa de Villefort, que o procurador vendeu depois de cometer um grave crime.

Anos antes, foi lá que ele e Mme. Danglars, vivendo um affair às custas do marido, enterraram um bebê nascido de sua relação. Ao ser trazido de volta àquele lugar, Villefort se sente imediatamente intimidado.

Dantès não pára por aí. Ele aproveita a situação para apresentar ao círculo um certo Andrea Cavalcanti, nobre italiano de muito boa família. O “príncipe” é na verdade um criminoso de carreira chamado Benedetto – o mesmo que dividiu cela com Caderousse.

É no jantar em Auteuil que seu plano de vingança começa a tomar forma. Infelizmente, é também aí que a história de Gankutsuou começa a desviar bruscamente do romance.

Em vez de confiar no espectador para formar suas próprias conclusões, o Conde do anime decide forçar a barra, convidando todos a participar de uma “caça ao tesouro” para descobrir as pistas de um antigo crime.

O crime em questão, é o enterro do bebê de Villefort e Mme. Danglars. Recado que os dois entendem imediatamente.

É uma apelação digna de um filme de terror B, que faz todos os presentes suspeitarem imediatamente do Conde. O fato da mansão de Auteuil parecer o castelo do Drácula só torna a cena mais tacanha.

Acreditar que um mestre calculista como Dantès faria uma provocação tão amadora é uma incoerência de coçar a cabeça.

A situação só piora com a próxima “artimanha” que apronta. Dois episódios depois, Edmond envia uma carta (assinada com seu próprio nome!) a todos os membros de seu complô.

twist é um recurso para introduzir os espectadores ao passado de Dantès, que até esse ponto não tinha sido abordado. Na prática, parece uma paródia de Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado. 

O resultado é que todos todos os inimigos de Dantès começam a trocar suspeitas sobre o Conde, coisa que o Edmond do livro jamais deixou acontecer. Tão cuidadoso ele é, na verdade, que até mesmo evita reuni-los no mesmo lugar! No romance, Dantès convida os Villeforts e Danglars ao jantar, mas não os Morcerf.

A tramoia força Gankutsuou a apelar a uma série de contorções narrativas para que a história volte aos trilhos. Comparado ao início e ao fim, fiéis à prosa de Dumas, isto faz a porção central do anime parecer muito mais fraca que o resto.

Franz e Noirtier

Paralelo à vingança de Dantès, O Conde de Monte Cristo nos conta a história de Maximilien e Valentine, dois pombinhos vivendo um amor impossível.

Maximilien, como dito acima, é um pobre soldado, filho de M. Morrel, ex-patrão de Edmond quando ele era marinheiro. Valentine é a filha do procurador Villefort, uma aristocrata prometida a Franz d’Épinay em um casamento arranjado.

Na sua luta para fugir do destino armado pelo pai, a jovem tem apenas um aliado: seu avô Noirtier, que vive paralisado devido a um derrame.

A situação é complicada por fatos que estão além de seu controle. Valentine é filha do primeiro casamento de Villefort, que agora vive com outra mulher, Héloïse.

Temendo que a garota roube a herança de seu filho, a madrasta arma para que Valentine seja assassinada. Tudo com o apoio de Monte-Cristo, que lhe ensina um ou dois truques sobre envenenamento.

E algumas “coisas” mais

Esse sub-plot dá as caras em Gankutsuou. Infelizmente, é levado para destinos siderais.

Em dado momento, Valentine tomba comatosa, vítima do veneno de Héloïse. Franz e Maximilien (que, no livro, são rivais amorosos) se unem para sequestrá-la junto com seu avô.

Noirtier (que não consegue mais falar) aproveita a ocasião para plugar sua consciência à de Franz. E lhe passa o infodump dos infodumps, narrando a verdade sobre o Castelo d’If, a vingança de Edmond e outras coisas que nem Franz, nem eu (nem, imagino, ele) entenderam direito.

Não há nada no romance minimamente parecido com essa cena.

A amizade entre Franz e Maximilien não existe. Franz, como bom noivo oitocentista, não dá a mínima para sua futura esposa.  O sequestro não acontece. Noirtier não faz nenhuma revelação sobre o passado de Dantès –  pelo contrário, sequer sabe das coisas que Maeda coloca em sua boca.

Mesmo assim, por mais fantasiosa que seja, a cena é uma jogada de mestre como adaptação.

Ao atribuir uma grande exposição a duas personagens secundárias, Maeda encontrou um jeito de nos passar parte da backstory que Dumas leva mais de 1000 páginas para construir. E ainda acrescentar detalhes importantes de sua própria lore que a transição para o sci fi acabou exigindo.

Não fosse o bastante, ainda tivemos um velhinho badass desparafusando sua mão robótica para revelar uma caneta mágica. Quão legal é isso? Dumas que me perdoe. Maeda ganhou essa.

O Duelo

Se o jantar em Auteuil é quando a trilha de dominó de Dantès termina de ser montada, seu duelo com Albert é quando a primeira peça leva o peteleco.

Tudo começa quando rumores sobre o passado de Mondego começam a circular em Paris. Enfurecido pelas notícias, Albert acusa Beauchamp, seu amigo jornalista, de espalhar mentiras sobre a sua família.

Não demora para que ele perceba que a fonte do escândalo é outra: Haydée, a protegida do Conde, que denuncia Mondego em foro público.

Procurado pelo jovem, Edmond o insulta de propósito para que o desafie a um duelo. Novamente, tudo parte de seu plano: sujar o nome de seu rival e matar seu filho em uma única tacada.

O episódio é importante nem tanto pelo duelo em si, mas pelo que acontece imediatamente antes dele. Na véspera do combate, o Conde recebe a visita de Mercédès, que lhe diz palavras que nem ele, nem o leitor, esperavam ouvir:

– Edmond – disse ela – você não matará meu filho!

O Conde deu um passo atrás, soltou um grito débil e deixou cair a arma que segurava.

– Que nome é esse que você pronunciou, madame de Morcerf? – disse ele.

– O seu! – ela exclamou, removendo seu véu – o seu que talvez apenas eu, de todos, nunca esqueci. Não é a Mme. de Morcerf que vem até você, Edmond, é Mercédès.

– Mercédès está morta, madame – disse Monte-Cristo – e eu não conheço ninguém com esse nome.

– Mercédès vive, monsieur, e Mercèdés se lembra, pois apenas ela o reconheceu assim que ela o viu, e mesmo antes de vê-lo, assim que ouviu sua voz, Edmond, o sotaque da sua voz. E desde aquele momento ela o segue passo a passo, ela o espiona, ela o teme e ela não tem necessidade de procurar a mão de onde partirá o golpe que matará M. de Morcerf. (capítulo LXXXIV)

O encontro é um baque na confiança do Conde, que finalmente se dá conta de  duas coisas. Primeiro que seu disfarce não é tão bom quanto imaginava.

Segundo que, na sanha para se vingar de quem o injustiçou, ele pode acabar fazendo inocentes sofrer. Incluindo, entre eles, o antigo amor de sua vida.

O duelo é um momento crucial tanto no anime quanto no filme por motivos radicalmente opostos.

No livro, é a acusação de perfídia, mais do que qualquer outra coisa, que motiva Albert a procurar as armas.

Desde a sua primeira aparição, ele é descrito como um jovem orgulhoso e valente. É essa bravura que o leva a explorar as ruas de Roma e cair nos braços de Luigi Vampa.

Seu role model para tudo isso não é outro que seu pai. Daí o baque que sente ao saber que seu herói é um covarde que fraudou seu título de nobreza.

No anime, pelo contrário, Albert é descrito como um menino carente de uma figura paterna. Ele não dá a mínima para o que o Conde lhe diz. É o fato de tê-lo enganado, de não reciprocar o afeto que sente, que o machuca.

Isso torna Albert uma personagem mais humana e próxima da época atual. Infelizmente (e talvez justamente por isso), também o faz parecer um chorão.

O julgamento é enfatizado pela intervenção de Mercédès, que chora aos braços de Bertuccio dizendo que “seu bebê não sabe o que faz”. De aristocrata do Segundo Império, a nobre virou uma mãe helicóptero.

Não era exatamente o que Dumas tinha em mente com suas personagens.

 O destino de Héloïse e Édouard de Villefort

Depois de aprender sobre venenos com o Conde de Monte-Cristo, Héloïse de Villefort pegou gosto pela coisa.

A primeira a morrer foi a avó de Valentine. Depois um criado e a própria garota. A bomba-relógio finalmente explode na cara de Villefort, que descobre que está na capa do maior escândalo da história de Paris.

Afinal, como confiar na justiça quando o procurador do rei acoberta um serial killer na sua própria casa?

Villefort  eventualmente descobre a verdade e se volta contra a esposa. A novela não poderia ser mais agradável ao Dantès, que vê os Villeforts se destruírem sem que precise mover um dedo.

O “sequestro” da Valentine aprontado por Maeda o força a mudar um pouco a ordem dos acontecimentos. Seu final, no entanto, é quase o mesmo ao escrito por Dumas.

Infelizmente, esse “quase” é um problema. Pois o destino de Héloïse e Édouard, ao lado do duelo, é um dos eventos mais cruciais do romance.

No anime, Héloïse se envenena acidentalmente. A substância a deixa num estado abobalhado, “como se tivesse regredido à infância”, nas palavras de uma das personagens. Ela e seu filho passam a viver na mansão do Conde, onde permanecem até o penúltimo episódio.

No livro, a vingança custa a vida de ambos.

Descoberta pelo marido, Héloïse decide se suicidar. E tomada pelo desespero (ou, mais provavelmente, pela loucura) decide levar o filho consigo.

A morte da criança é o Ponto Sem Retorno que faz todos entenderem que aquele jogo de vingança foi longe demais.

Villefort simplesmente pira. Já Dantès toma o chacoalhão que sua versão de Gankutsuou não recebe até ser tarde demais. Ao ver uma criança inocente morta por sua causa, ele entende que a vingança não é uma forma de justiça, mas um ciclo vicioso que o levará para o abismo:

E, como se tivesse medo de que os muros da mansão maldita tombassem sobre ele, lançou-se pela rua, duvidando pela primeira vez que tivesse o direito de fazer aquilo que havia feito.

– Oh, é o bastante! Isso tudo já foi o bastante! – disse ele – poupemos o último.

Retornando à sua casa, Monte-Cristo reencontrou Morrel, que perambulava pela mansão nos Champs-Élysées, silencioso como um espectro que aguarda o momento fixado por Deus para retornar à sua tumba.

– Prepare-se, Maximilien – ele lhe disse com um sorriso – nós deixaremos Paris amanhã.

– Você não tem mais nada a fazer?

– Não – respondeu Monte-Cristo – e queira Deus que eu não tenha feito demais! (capítulo CXI)

O episódio muda radicalmente sua postura desse ponto em diante, com consequências importantes para o mais odioso de seus inimigos:

O destino de Danglars

Mandante do complô contra Dantès, é para Danglars que fora preparada a vingança mais cruel.

Encantado com o “príncipe” Andrea Cavalcanti, Danglars decide romper o noivado entre Eugénie e Albert e casá-la à força com o charmoso nobre. Graças às ações do Conde, porém, ele descobre que o “príncipe” Andrea é na verdade o “criminoso” Benedetto.

Pior: que o “criminoso” Benedetto é o bebê de sua esposa com o procurador Villefort, deixado para morrer na mansão de Auteuil!

Pior ainda: que isso faz dele o meio-irmão de Eugénie. E que ele, ao casá-la com ele, estava forçando-a a cometer incesto!

O episódio é brilhantemente representado em Gankutsuou, que adiciona a ele requintes de crueldade. Se o Benedetto de Dumas é um criminoso comum, o de Maeda é um psicopata endiabrado, que tenta estuprar sua irmã e faz sexo com a própria mãe.

O fato de ele parecer, de fato, um príncipe encantado só faz da caracterização mais genial.

Com seu nome jogado na lama, Danglars pega o dinheiro que lhe resta e foge para Roma.  Infelizmente, Edmond está um passo na sua frente. Ele faz com que os capangas de Luigi Vampa o sequestrem, coloquem em uma cela e o deixem para morrer.

Luigi Vampa e sua braço-direito, Teresa, disfarçados de pilotos em Gankutsuou

Em Gankutsuou, a “cela” em questão é uma nave à deriva, com estofados, paredes e bagageiros repletos de ouro. Enlouquecido pela riqueza (que nunca poderá gastar), Danglars termina sua vida abraçado às barras douradas, sem comida ou oxigênio para sustentá-lo por muito tempo.

Seu destino é um exemplo daquelas mudanças super sutis, mas que fazem toda a diferença. No livro, Danglars é forçado a torrar sua fortuna pagando preços exorbitantes pelo menor naco de comida.

A intenção é fazê-lo morrer de fome, implorando por sua vida. O que de fato aconteceu com o pai de Edmond, Louis Dantès, enquanto ele e seus comparsas enriqueciam às suas custas.

A diferença crucial é que o Conde nunca chega a cumprir seu plano. Chocado com a tragédia dos Villeforts, Monte-Cristo decide que o crime que sofreu não justifica cometer novos pecados.

Em uma prova de nobreza, ele decide por aquilo que nunca cogitou fazer: responder ao ódio com compaixão:

– Então eu o perdoo – disse o homem tirando seu manto e avançando uma passo para se pôr sob a luz.

– O Conde de Monte-Cristo! – disse Danglars, mais pálido de terror que estivera, um instante atrás, de fome e miséria.

– Você está enganado. Eu não sou o Conde de Monte-Cristo.

– E quem é você então?

– Eu sou aquele que você vendeu, entregou à justiça, desonrou. Eu sou aquele cuja noiva você prostituiu. Eu sou aquele em quem você pisou para subir até sua fortuna. Eu sou aquele cujo pai você fez morrer de fome, que você condenou a morrer de fome e que mesmo assim o perdoa, pois necessita ele mesmo ser perdoado. Eu sou Edmond Dantès!

Danglars não exprime senão um grito e tomba prosternado.

– Levante-se – disse o conde – Você tem a vida poupada. Sorte parecida não tiveram seus dois cúmplices: um está louco, o outro morto! Guarde os cinquenta mil francos que lhe restam, eu lhes dou a você. Quanto aos cinco milhões que roubou dos asilos, eles já foram restituídos por uma mão desconhecida.

“E agora come e beba; essa noite, eu sou seu anfitrião. Vampa, quando esse homem estiver satisfeito, ele estará livre.” (capítulo CXVI)

O destino de M. de Villefort

Pobre Villefort. Depois de ver metade de sua família morrer envenenada, pensou que já tinha as contas quitadas com o Criador. Infelizmente para ele, Dantès tinha outra bala com seu nome escrito.

A meleca aprontada por Maeda no episódio de Auteuil mudou algumas coisas no destino do procurador. Revoltado com o Conde após o jantar, ele decide investigá-lo, denunciá-lo e, finalmente, tentar assassiná-lo.

A decisão é quase tão estúpida quanto a “carta” de Edmond que avisou seus rivais da sua existência. E completamente incoerente com sua caracterização. Esperar que um alto chefe de justiça com todo o aparato judiciário aos seus dedos precise apelar para uma violência tão amadora é descabido ao extremo.

Felizmente, Maeda logo coloca sua história nos trilhos de onde nunca devia ter saído. E o procurador sofre o mesmo destino que Dumas lhe preparou nas páginas do romance.

Ao descobrir que seu amigo Danglars foi enrolado por um criminoso, ele prontamente o leva ao tribunal. O evento é o último prego em seu caixão: empoderado por um palanque, Benedetto revela ao mundo ser seu filho, ilegítimo, deixado para morrer.

Entre essa humilhação e a morte de sua mulher e filho, a cabeça de Villefort não aguenta. O procurador fica louco.

Em Gankutsuou, Villefort também acaba seus dias num hospício. Em vez de chegar lá por conta própria, no entanto, ele recebe uma ajudinha do Conde.

Ainda no tribunal, ele é envenenado por Benedetto com uma substância preparada por Edmond. É essa toxina, e não o choque, que o deixa maluco.

É uma mudança pequena, mas acertada, que reforça vários temas que o anime trabalhara até então. O veneno (fundamental na derrocada do procurador), o papel de Benedetto como um “anti-Conde de Monte-Cristo”, exercendo uma vingança paralela contra a alta sociedade.

E, é claro, o retrato de psicopata que Maeda tão bem lhe deu.

 O Destino de Mondego

Se os destinos de Villefort e Danglars são relativamente fiéis, a vingança de Mondego, infelizmente, é aquela derrapada que faria Dumas se contorcer na tumba.

Tudo começa com a denúncia de Haydée, a mesma que leva Albert a desafiar o Conde a um duelo. A filha de Ali Tebelin embosca o militar na Assembleia Nacional, contando a todos de seus crimes:

– Você reconhece positivamente M. de Morcerf como sendo o mesmo homem que o oficial Fernand Mondego?

– Sim, eu o reconheço! – exclamou Haydée – Oh, minha mãe! Você me disse: “Você está livre, você possui um pai que a ama, você está destinada a ser quase uma rainha! Observe bem esse homem, este que a fez escrava, este que carrega no topo de uma estaca a cabeça de seu pai, este que nos vendeu, este que nos entregou! Observe bem sua mão direita, esta que tem uma grande cicatriz; se você esquecer seu rosto, reconheça-o pela mão que recebe, uma a uma, as moedas de ouro de El-Kobbir, o mercador de escravos!”. Sim, eu o reconheço! Oh, que ele diga ele próprio, agora mesmo, se não me reconhece também!

Cada palavra caiu como um cutelo sobre Morcerf e arrancou uma parcela da sua energia. Às últimas palavras, ele escondeu bruscamente sua mão, mutilada por um ferimento, contra seu peito e tombou sobre uma poltrona, assolado por um pavoroso desespero.

Essa cena fez os humores da assembleia efervescerem, como se fossem folhas soltas sopradas pelo vento poderoso do norte.

– Monsieur conde de Morcerf – disse o presidente – Não se sinta abatido, responda. A justiça da corte é suprema e igual para todos como aquela de Deus. Ela não o deixará ser esmagado por seus inimigos sem lhes dar os meios para combatê-los. Gostaria que novas investigações fossem feitas? Quer que eu ordene que dois membros da Câmara vão até Janina? Diga!

Morcerf nada respondeu.

Com aquilo, todos os membros da comissão se olharam com uma espécie de terror. Eles conheciam o caráter enérgico e violento do conde. Era necessário uma terrível prostração para aniquilar a defesa daquele homem. Era necessário, enfim, pensar que àquele silêncio, que parecia um sono, seguir-se-ia um sonho que lembraria um tempestade. (Capítulo LXXXVI)

A cena do anime não carrega o mesmo peso do livro. Ela é, mesmo assim, relativamente fiel à história original.

O problema é o que acontece depois.

Ao ter sua reputação destruída, Mondego decide dar um golpe militar (!) que transforma Paris em uma zona de guerra. Quando sua esposa e filho decidem abandoná-lo, ele os baleia em sangue frio (!!) e então monta cerco à mansão do Conde. Tudo, é claro, termina em um cinemático duelo de mechas (!!!).

O destino de Mondego não poderia ser mais diferente do escrito no livro. E não falo apenas da rule of cool. Ao fechar sua obra como um filme de ação, Maeda subverteu uma das características centrais da personagem.

No livro, Mondego não chega sequer a ousar lutar. Ao escutar a verdade sobre Dantès e ver sua família abandoná-lo, decide puxar o gatilho da sua arma – não contra o Conde, mas contra si mesmo:

Assim que escutou bater a porta de ferro do fiacre, depois a voz do motorista, depois o barulho da pesada máquina chacoalhar as vidraças ele se lançou ao seu quarto para observar uma última vez tudo aquilo que ele amava nesse mundo. Mas o fiacre partiu sem que a cabeça de Mercèdes ou a de Albert aparecesse na porta, para dar à mansão solitária, para dar ao pai e esposo abandonado um último olhar, o adeus e o remorso – quer dizer, o perdão.

Ao mesmo tempo, no exato instante em que as rodas do fiacre sacudiram as pedras da estrada, um tiro ressoou, e uma fumaça sombria saiu por uma das vidraças daquela janela daquele quarto, soprada pela força da explosão. (capítulo XCII)

A cena é crucial porque cimenta que tipo de canalha Mondego de fato é. Ao longo de todo o livro, o general mostra ser um covarde convicto, incapaz de encarar qualquer um que o desafie.

Ele foi covarde demais para se declarar à Mercédès, então conspirou contra Dantès para tirá-lo do caminho. Foi covarde demais para lutar uma guerra perdida, então vendeu Ali Tebelin aos homens do sultão. Foi covarde demais para peitar Haydée durante seu discurso na assembleia e nem ousou se defender.

Foi, enfim, covarde demais até para aceitar a derrota. E preferiu a saída “fácil” do suicídio a uma vida de desonra e ostracismo.

Paradoxalmente, ao transformá-lo num aspirante sanguinário a ditador, Maeda lhe dá uma personalidade mais positiva que o retrato de Dumas.

Não importa que ele eventualmente aperte aquele gatilho. Ao mostrá-lo esperando a morte na frente do por do sol, Maeda nos dá não a morte de um vilão, mas o adeus de um herói incompreendido.

O destino de Mercédès e Albert

Felizmente, a família de Mondego teve um destino mais próximo ao que Dumas lhes previu. Bom para eles, pois a alternativa seria morrerem baleados por Fernand, como Maeda (quase) fez acontecer.

No livro, Mercédès e Albert renegam à sua fortuna e passam a usar o nome de sua família materna, Herrera. A mãe retorna à Marselha, onde vivia na época em que ela e Dantès eram noivos. Já Albert entra para o exército, dedicado a se tornar o exemplo de nobreza e valentia que o pai nunca foi.

No episódio final de Gankutsuou, vemos que nenhum dos dois se afastou muito desse destino. Mercédès de fato retorna à Marselha, onde é vista visitando os túmulos de Edmond e Fernand. Já Albert segue seu próprio caminho, não como soldado, mas como um diplomata.

A carreira tem mais a ver com a personalidade bondosa que Maeda lhe deu. E também lhe permite fechar as pontas com outra personagem importantíssima: Eugénie.

Na cena final da série, a garota, agora uma pianista de sucesso, retorna à França para uma apresentação. Ao seu lado, ela toca a música que compôs para ele – o tema de abertura do próprio anime.

É uma conclusão doce que pouco tem de O Conde de Monte Cristo, mas que não falha em colocar aquele sorriso bobo em nossos rostos.

O destino de Maximilien e Valentine

Que Maximilien e Valentine terminariam juntos já estava mais do que óbvio. Não precisa ser um expert em tropes de anime (ou em histórias de amor) para saber que esses dois tinham sido beijados pelo destino.

Como eles chegam a esse ponto, em uma versão e outra, é bastante diferente.

Em Gankutsuou, depois do sequestro de Valentine, Maximilien passa a maior parte dos episódios longe da tela. A culpa é do Mondego ditatorial de Maeda, com suas campanhas eleitorais e golpes de Estado. Como militar, Maximilien é obrigado a participar de tudo.

O roteiro lhe dá uma folga no último episódio, quando ele volta a Marselha para viver com sua família e com Valentine. Juntos, eles retomam a profissão de seu pai, comprando o velho navio em que Dantès havia trabalhado.

Muito embora Dumas não o tenha feito lutar, o destino que preparou a Maximilien consegue ser ainda mais dramático. No livro, Valentine também é envenenada, mas quem a salva do pior não é seu namorado.

Culpado por ter quase matado a amada de seu protegido, o Conde lhe dá uma droga que simula o efeito da morte.A garota é dada por defunta, e  sua família até realiza um funeral. Sem que ninguém saiba, porém, ela está em segurança na presença do Conde.

Dantes então faz uma coisa que parece excessiva mesmo ao seu gênio vingador. Em vez de contar a Maximilien imediatamente, ele espera que o jovem tente se suicidar, para depois lhe mostrar Valentine viva!

O motivo é explicado em sua carta de despedida: o último que ele (e nós) ouvimos do Conde:

Quanto à você, Morrel, eis o segredo de toda a minha conduta a seu respeito: não há felicidade ou tristeza nesse mundo, apenas a comparação de um estado ao outro. Apenas aquele que experimentou o extremo infortúnio está apto a desfrutar da extrema felicidade. É preciso ter desejado morrer, Morrel, para saber quão bom é viver. (capítulo CXVII)

Cruel, não? Pois é. Pelo menos, os dois não saem de mãos vazias. Edmond desaparece deixando os dois como herdeiros de toda a sua fortuna. Nada mal para um presente de noivado.

O destino do Conde

Rebaixado de protagonista a vilão principal, é natural que o Conde de Monte-Cristo tenha sofrido o destino mais diferente do original.

Na verdade, não apenas o seu fim, mas também sua backstory apresenta divergências importantes.

No livro, Dantès passa 14 anos preso no Castelo d’If, uma prisão no sul da França. O castelo existe de verdade e aparece até no opening do anime:

No anime, o castelo é um pesadelo cibernético digno de Não Tenho Boca e Preciso Gritar, onde presos ficam acoplados a uma espécie de maquinário que consome sua consciência.

Em fez de Padre Faria, Dantès encontra um demônio espacial chamado Gankutsuou, que se oferece para habitar seu coração. A criatura transforma Edmond em uma máquina indestrutível de vingança em troca de seu corpo e alma.

Franz aprendeu tudo isso durante sua viagem de ácido virtual induzida por Noirtier. Assim, antes de duelar com o Conde, decide lhe preparar uma surpresa.

Após ser derrotado em combate, ele guarda sua energia para um último golpe e o atinge direto no coração. Gankutsuou, dizem, consome seu hospedeiro pelas beiradas, chegando só no fim ao peito. Sua esperança é matar o que ainda resta de humano no corpo de Dantès.

Infelizmente, Gankutsuou já havia dominado Edmond por completo. O golpe de Franz não tem efeito, e o jovem morre em vão.

Ou, pelo menos, é isso que ele pensa. No episódio 23, Albert decide restaurar a humanidade do Conde de outra maneira. Em uma cena que levou fujoshis à loucura, ele lhe lasca um beijo de tirar o chapéu.

Como um príncipe transformado em sapo, Edmond volta a ser humano. E o ferimento causado por Franz finalmente tem efeito, matando-o.

A cena obviamente não tem paralelo com o livro. Ela mostra, no entanto, que Maeda entendeu bem sua mensagem original. O resultado é um final que a reforça, embora a expresse com outras palavras.

Tendo poupado Danglars e entendido o erro de suas ações, o Edmond de Dumas abandona a França para sempre. Ele foi longe demais para integrar a sociedade, mas (felizmente) não o bastante para perder sua humanidade.

O Edmond de Maeda não teve a mesma sorte. Levando seu ódio às últimas consequências, não lhe resta alternativa senão morrer. Como o Kurtz de Coração das Trevas, o que quer que seu corpo sustente não é mais uma pessoa, e sim uma história cautelar do que o ódio humano é capaz de fazer.

 A perda da humanidade

– Quem é você? Quem então é você, meu Deus?!

– Eu sou o espectro de um infeliz que você enterrou nas celas do Castelo d’If. A este espectro enfim saído de sua tumba Deus entregou a máscara do conde de Monte-Cristo e a cobriu de ouro e diamantes para que vocês nunca a reconhecessem até o dia de hoje. (capítulo CXI)

A subtrama do Gankutsuou que transforma o Conde em um demônio é, de fato, o ponto em que a adaptação de Maeda toma vida própria.

De fato, não existem espectros intergaláticos nem doenças alienígenas no romance original de Dumas. Mas os dois recursos sublinham uma interpretação que não podia ser mais fiel a sua fonte: o julgamento de que Dantès, ao vestir o manto de Monte-Cristo, deixou de ser o homem que era.

O Conde de Dumas não é azul, nem possui tatuagens fosforescentes. Mas ele é continuamente descrito como um homem sobrenaturalmente pálido, gélido ao toque. Muitas personagens ponderam se ele não pode ser um vampiro – um rumor repetido várias vezes no anime.

A interpretação é reforçada pelo próprio Dumas. Na primeira parte do livro, seu protagonista é chamado de “Edmond” ou “Dantès”. A partir do momento que assume seu alter-ego, porém, ele é referido quase sempre como “Conde” ou “Monte-Cristo”.

“Edmond”, como o próprio bem diz, não existe mais.

Isso porque ele cede à uma vontade mais terrível que demônios espaciais: a voz do Criador.

Depois de 14 anos preso no Castelo d’If, Dantès começa a ver a si mesmo como executor da vingança divina. O que foi feito a ele, aos seus olhos, foi um crime contra a justiça de Deus. E ele punirá os culpados em Seu nome – mesmo que isso custe sua própria vida, o sangue de inocentes, um segundo dilúvio.

É um imperativo que repete a todas as suas vítimas antes do golpe de misericórdia. E que aparece em seu diálogo com Mercédès antes do duelo com Albert:

– Vingue-se Edmond! – gritou a pobre mãe – mas vingue-se contra os culpados; vingue-se contra ele, vingue-se contra mim, mas não se vingue contra meu filho!

– Está escrito no Livro Santo – respondeu Monte-Cristo – “os erros dos pais recaem sobre seus filhos até a terceira e quarta gerações”. Se Deus ditou estas mesmas palavras a seu profeta, por que seria eu melhor que Deus?

– Porque Deus tem o tempo e a eternidade, duas coisas que escapam aos homens! (capítulo LXXXIX)

Maeda tentou ao máximo evitar temas religiosos em seu anime. Mesmo assim, eles aparecem na figura de seu “Gankutsuou”. É por isso que o demônio aparece crucificado, com um crucifixo no peito. E o próprio Castelo d’If é representado como uma segunda, imensa cruz:

O Conde de Monte Cristo é muito mais que uma historinha de vingança. A obra é uma parábola sobre uma das questões mais espinhosas que nós, humanos, já enfrentamos: o conflito entre Homem e Deus.

A disputa entre os desmandos de uma Autoridade superior e a vontade de fazer o que bem entendermos. Entre o desejo de que a Criação tenha uma ordem e o medo de que estejamos sozinhos no mundo – e sejamos responsáveis pelo nosso céu e nosso inferno.

É um conflito que inspirou o Romantismo – e, em especial, o mais famoso dos escritores românticos. Um autor que Dumas diretamente cita em seu livro, e que Maeda, fiel à sua obra, fez questão de trazer ao anime:

O Herói byroniano

“Herói” byroniano é o nome que se dá a um tipo de personagem popularizada pelo grande escritor Lord Byron (1788-1824). Ele é um rebelde apaixonado, imediatista, em guerra contra a autoridade e convenções sociais, que age de maneira impulsiva, imprevisível e, muitas vezes, auto-destrutiva.

Esse tipo de herói ganhou os holofotes junto com a moda “gótica” do século XIX. Seu pano de fundo eram becos escuros e cidades decadentes; seus companheiros, vampiros, fantasmas e outras assombrações.

Com sua pompa vampiresca e passado sombrio, O Conde de Monte Cristo é um exemplo claro do herói. Coisa que o próprio Dumas deixa escancarado em sua prosa.

No livro, muitas personagens comparam Dantès com Lord Ruthven, personagem do escritor John William Polidori inspirado em Lord Byron. Ou com Manfred, criação do próprio Byron que se tornou uma sensação na época.

Uma delas é a misteriosa Condessa G., aristocrata que apresenta Albert e Franz à folia romana no início do romance.

A condessa G. em Gankutsuou

Tal como Ali Tebelin, a condessa é uma personagem histórica. Trata-se de Teresa Guiccioli, uma das amantes de Byron na época em que escrevia sua obra Don Juan.

Gankutsuou é fidelíssimo à vibe byroniana do livro original. Não só pela pompa gótica de seu Conde, nem por ter incluído – com ainda mais destaque que no livro – a personagem de Teresa Guiccioli.

Maeda foi além. O tema do Conde no anime é nada menos que a Sinfonia Manfred, obra de Tchaikovsky, homenagem a uma das obras mais famosas do escritor.

A referência mais importante, porém, talvez esteja no próprio enredo. O herói byronista é um eterno “do contra”, em guerra contra sua sociedade. O próprio Byron levou isso ao extremo, terminando seus dias na Grécia, lutando (tal como Ali Tebelin) contra a opressão dos otomanos.

Isso nos leva a outro grande tema do livro, abordado com ainda mais ênfase no anime:

A revolta contra o sistema

Não é preciso pensar fora da caixa para perceber que vingança de Edmond é justamente esse tipo de revolta.

Villefort, o procurador do rei, é o homem do Estado. Danglars, o banqueiro, o  porta-voz do mercado. Mondego, o general, o cabeça do exército. E Caderousse, o pobretão criminoso, a voz anônima do povo.

Não são homens que traem Edmond, mas toda a sociedade francesa. É por isso que o Conde ataca seus inimigos com os dois pés no peito, agindo, a princípio, sem medo de efeitos colaterais.

É por isso que adota como título de “nobreza” a Ilha de Monte-Cristo, uma montanha deserta no mediterrâneo que abriga apenas criminosos e fugitivos.

A Ilha de Monte-Cristo, na costa da Toscana

E é por isso que desaparece ao final do livro, fugindo para o Oriente com Haydée em vez de se reintegrar ao mundo que o decepcionou.

“Não é culpa deles serem bandidos”, diz um homem a Franz no começo do romance “É culpa da autoridade”. Edmond Dantès não diria melhor.

A revolta contra a sociedade é também o fio condutor das partes mais livres da adaptação de Maeda.

No anime, Paris é representada como um cidadela murada cercada por um mundo devastado. A elite parisiense, ofuscada pelos seus luxos, trata tudo o que se passa fora como desdém.

As autoridades, nos poucos momentos em que dão as caras, são tratadas como corruptas. Os soldados de Mondego armam um golpe de Estado. Quando tem seu nome desgraçado, mesmo Albert, um aristocrata, sofre abuso nas mãos de policiais.

Recontar a história pelos olhos de jovens não foi a escolha mais óbvia. Mas ela permitiu a Maeda enfatizar ainda mais esse fundo temático. Afinal, quem entende mais de “revoltas” e “sistema” do que os jovens?

Muitas páginas internet a fora descrevem Gankutsuou como um anime “levemente baseado” em O Conde de Monte-Cristo. A colocação não escapou sequer à sinopse oficial do My Anime List.

Essas pessoas não devem ter assistido ao mesmo anime que eu. Ou, então, têm noções bem diferentes do que significa uma “adaptação.”

Gankutsuou é um gold standard para adaptações. O respeito de Maeda pelo seu material de origem só não é maior que a criatividade com que desenvolveu livremente seus temas.

O anime não supera seu material de origem, mas é uma experiência obrigatória para fãs do romance – e de literatura como um todo.

  • Gankutsuou significa “O Rei da Caverna” e foi o título da primeira tradução de O Conde de Monte Cristo ao japonês, em 1901. Embora pareça uma mudança estranha aos ouvidos ocidentais, no Japão o título de Maeda traz de imediato a obra de Dumas à mente.
  • Apesar de parecer fanservice, Peppo (no livro Beppo) é uma personagem do romance! O garoto é um crossdresser a serviço de Luigi Vampa, que seduz e embosca Albert durante o carnaval de Roma.

  • No episódio 2, O Conde sobrevive a uma facada de Luigi Vampa, para o terror dos bandidos. O Conde de Dumas também é a prova de facadas, mas por outro motivo: ele usa uma cota-de-malha por baixo da roupa.
  • No anime, o Conde toma pílulas especiais para conter a corrupção de Gankutsuou. Elas ficam guardadas em uma caixa feita de uma grande esmeralda oca. A caixa e a pílula existem no livro, mas carregam um “remédio” de outra espécie: haxixe. Fiel ao seu “exotismo” oriental, tanto o Conde quando Haydée são usuários frequentes de vários tipos de drogas.
  • No episódio 22, Caderousse aparece roubando uma loja chamada Les Bijoux Carconte. A tomada é um easter egg sobre sua história no livro: na trama, ele foi preso por matar um joalheiro, incitado por sua esposa, que se chamava Carconte.
  • Caderousse ainda aparece no último episódio ao lado de Benedetto em uma placa de procurados pela justiça. Trata-se de uma referência à relação dos dois no romance, em que foram parceiros de cela.
  • As óperas tocadas no anime são Lúcia de Lammermoor Robert le Diable, as mesmas citadas no livro.

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