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finisgeekis http://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 18 Jan 2023 20:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32 finisgeekis http://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 4 curiosidades sobre “Pentiment” que você provavelmente não conhecia http://www.finisgeekis.com/2023/01/18/4-curiosidades-sobre-pentiment-que-voce-provavelmente-nao-conhecia/ http://www.finisgeekis.com/2023/01/18/4-curiosidades-sobre-pentiment-que-voce-provavelmente-nao-conhecia/#respond Wed, 18 Jan 2023 19:56:56 +0000 https://www.finisgeekis.com/?p=23223 Nós historiadores somos famosamente chatos. É muito difícil resistir à tentação de criticar um game ambientado no passado, ainda que seja a melhor experiência que já curtimos.

Pentiment é uma exceção. Ambientado na Baviera (atual Alemanha) na época da Reforma Protestante, o último game da Obsidian é o raro game histórico que parece ter acertado todas as notas. Estou para encontrar um colega que não sorria ao falar do esmero que teve em trazer o século XVI à luz do XXI.

Essa atenção teve um preço: algumas de suas referências podem soar bastante obscuras se você não for um fã de história medieval ou moderna.

E não, não estou falando apenas de O Nome da Rosa.

Pentiment, como a história de mistério que seu roteiro tece, vai muito além da superfície.

(Aviso: contém SPOILERS de Pentiment)

1) Martin Bauer é baseado em uma pessoa real

No primeiro ato do jogo, somos introduzidos a um jovem delinquente chamado Martin Bauer. Tão inconsequente quando é boca-suja, Martin, a princípio, serve apenas de red herring para complicar o mistério sobre a morte do Barão. Coisa que o próprio arquidiácono reconhece ao exclui-lo sumariamente da lista de suspeitos.

As coisas mudam a partir do segundo ato. Ao retornar à Tassing sete anos depois, Andreas reencontra Martin, irreconhecível de corpo e personalidade. Amável com sua esposa, afável com os vizinhos e engajado em causas políticas, é um novo homem.

Literalmente, como logo descobrimos.

O novo “Martin”, na verdade, é Jobst Färber, companheiro de crime do delinquente de Tassing que assume sua identidade após a morte do comparsa. Brigita, ex-esposa de Martin, concorda em acobertá-lo em troca de sua vista grossa para seu romance com Verônica. O resto da vila, se percebe o embuste, não vê motivos para a denúncia. “Martin”, afinal, é um sujeito muito melhor do que Martin jamais foi.

Fãs de história medieval (ou de cinema francês) entenderão de pronto a referência. Martin Bauer é baseado em Martin Guerre, um camponês que tentou a mesma fraude na França do século XVI.

Infelizmente para Guerre, ao contrário de seu xará de Tassing, seu truque não funcionou. O verdadeiro Martin não estava morto. Quando retornou para casa, o golpista foi denunciado, julgado e executado.

A singularidade do julgamento garantiu que sobrevivesse na cultura popular. Nos séculos seguintes, seu conto recebeu diversas adaptações. Uma delas, o filme O Retorno de Martin Guerre, é deliberadamente citada na quest de Pentiment (“O Retorno de Martin Bauer”)

Cartaz do filme “O Retorno de Martin Guerre” (1982), com Gérard Depardieu

Em qualquer de suas encarnações, o caso é menos interessante por conta do impostor do que de sua esposa. O episódio é representativo dos poucos caminhos disponíveis com que mulheres contavam para escapar de sua sina – e do risco que sofriam ao trilhá-los.

Lésbica, forçada a se casar ainda adolescente após ter sido engravidada por um bandido, Brigita é uma mulher vivendo no fio de uma navalha. Se estivesse no lugar dela e ajudar um crime pudesse tornar sua vida mais fácil, você aceitaria? Quanto você estaria disposta a sacrificar até que as consequências da mentira caíssem sobre seu colo?

São questionamentos que ressonam até os dias de hoje. Muita coisa mudou desde o século XVI, mas muitas pessoas continuam vivendo em fios de navalha, de toda natureza.

2) Otto Zimmerman não foi o primeiro a causar problemas com uma cabeça de santo

No clímax do jogo, Andreas e Magdalene descobrem que Padre Thomas é o mandante dos assassinatos em Tassing-Kirsau.

O religioso confessa que agiu como agiu para impedir que o segredo da vila viesse à tona: São Moritz e Santa Sátia, padroeiros de Tassing, nunca pisaram na aldeia. Sátia, em particular, pode nunca ter existido.

Na verdade, eles nada mais seriam que representações dos deuses romanos Marte e Diana, que os primeiros cristãos erroneamente interpretaram como imagens divinas.

O twist é a parte do jogo que, como historiador, menos me convence. Santos de origens suspeitas e/ou semelhanças com divindades pagãs existem a rodo na Europa. É realmente plausível que os peregrinos que os veneram há séculos parariam de adorá-los da noite para o dia? Sobretudo quando a abadia possui uma relíquia – portanto, um pedaço do santo?

Padre Thomas acredita que sim, e é isto que importa. Para isto, ele comete uma série de crimes para esconder duas peças de evidência que podem trazer a verdade à tona. A primeira é um velho livro em latim, Historia Tassiae (“A História de Tassing”). Trata-se de uma óbvia referência a O Nome da Rosa, que também envolve assassinatos cometidos para impedir um livro de ser lido – no caso, um volume perdido da Poética de Aristóteles.

Plano do mosteiro fictício onde “O Nome da Rosa” é ambientado. O professor de Bologna a que Andreas se refere é o autor do romance, Umberto Eco (que, na vida real, realmente foi professor da Universidade de Bologna)

A segunda evidência é mais indireta, mas nem por isso menos literária. Otto Zimmerman, o carpinteiro da cidade, encontra por acaso a cabeça da estátua de São Moritz que adorna a vila. O problema: em seu elmo está escrito Mars Pater (“Marte Pai”). Para Thomas, se Otto tornar pública sua descoberta, todos saberão que Moritz nunca pisou em Tassing.

Uma história muito parecida faz parte dos contos de Till Eulenspiegel (em português, também conhecido como Til Malasartes.) Trata-se de uma personagem cômica do folclore alemão, cujo hobby é desafiar autoridades e zombar de convenções sociais.

Em uma de suas estripulias, Till toma um crânio de um cemitério e paga um artesão para que o revista de prata. Então, disfarça-se de padre e anuncia ter encontrado a cabeça de um certo São Brandonus. Por uma pequena contribuição (monetária ou, no caso das mulheres da cidade, sexual) ele permitia que os habitantes da cidade a beijassem.

Ninguém descobre o golpe.

Till Eulenspiegel foi publicado pela primeira vez na década de 1510, exatamente quando se inicia o primeiro ato do jogo. Pentiment não esconde a coincidência: o livro é mencionado logo no primeiro diálogo entre Andreas e Claus Drucker, logo após a morte do barão.

Easter egg adicional: Claus, no livro, é o nome do pai de Till.

Dependendo das escolhas que você fizer para a formação de Magdalene no terceiro ato há uma referência ainda mais explícita a ser encontrada. Conversando sobre santos com Padre Thomas, a jovem tem a chance de confrontá-lo com a história de Till. O religioso então responde que vidas de santo não precisam ser 100% reais para nos inspirar, tal como os contos de Till Eulenspiegel falam sobre verdades a despeito de serem ficção.

Bem hipócrita para um homem que está disposto a matar para esconder a verdade de seu rebanho.

3) Abades também eram senhores – no sentido “feudal” da palavra

Na sua primeira refeição do jogo, acompanhado de Endris e Otto Zimmerman, Andreas descobre que as relações entre Tassing e Kiersau são tensas. Todos os camponeses devem tributo à abadia, que controla a região e seus recursos naturais. Nem todos acham que o imposto é justo.

As coisas pioram no segundo ato. Cansado de ser contrariado por Otto, o Abade Gernot cerra fileiras contra Tassing. Os impostos aumentaram. Os camponeses perdem o acesso à floresta e ao riacho. Num golpe de particular crueldade, ele impede que a população visite a relíquia de São Moritz.

Se você ainda se lembra das aulas de feudalismo na escola, a situação pode ter parecido bizarra. Afinal, aprendemos que havia três ordens na Idade Média: aqueles que lutam, aqueles que oram e aqueles que trabalham. Aos clérigos, cabia rezar. Neste caso, por que raios eles tinham terras e pessoas sob sua autoridade?

Porque, como costuma ser o caso, as coisas na prática eram mais complicadas. No período medieval, mosteiros controlavam pessoas e territórios tanto quanto senhores seculares – com todos os fardos e obrigações que isto implicava. Aliás, abades e senhores muitas vezes vinham das mesmas famílias. Não era incomum que as grandes abadias de um dado reino ou território fossem controladas pelas mesmas dinastias que ocupavam a Coroa.

Como atores importantes no jogo político, também não era surpreendente que abades jogassem sujo para expandir seus territórios. Caso Andreas possua uma educação em direito, Andreas pode descobrir que Kiersau estava tramando para roubar as terras da viúva Ottillia. Pior: por meio de fraude.

Um exemplo muito parecido aconteceu de verdade com a abadia de San Clemente a Casauria, no norte da Itália, no final do século IX. Num espaço de poucos anos, o monastério agressivamente comprou terras vizinhas, até que praticamente todos os habitantes da região se tornassem dependentes da Igreja

Obviamente, a Itália do século IX não era a Baviera do século XVI. Manobras como as de Casauria eram mais fáceis de se orquestrar no passado porque a paisagem política e econômica da região ainda estava para se consolidar. Com o passar dos séculos, tomar terras passou a ser complicado, pois implicava em competir diretamente com os interesses de outras abadias ou senhorios. De onde a decisão do Abade Gernot em mirar justamente no elo mais vulnerável: viúva, idosa e malquista em Tassing, Ottilla é a vítima perfeita.

4) A caça às bruxas foi um fenômeno moderno, não medieval

Dependendo de nossas escolhas ao longo de Pentiment, podemos nos deparar com a revelação de que Vacslav e Ursula queimaram na fogueira após os eventos da história. Ele, por advogar ideias heréticas sobre o livro do Gênese; ela, por adorar os Deuses Antigos do passado pagão.

Se você está acostumado a escutar que a Idade Média foi a Idade das Trevas, em que indivíduos (sobretudo mulheres) eram queimados a rodo por todo tipo de infração espiritual, talvez o timing da execução possa ter lhe parecido estranho.

Afinal, estamos diante de uma história que se passa justamente na passagem da Idade Média para o que entendemos por modernidade. Por que Ursula e Vacslav foram queimados justo agora, sendo que durante as décadas que a história cobre os camponeses de Tassing tiveram total liberdade para invocar Perchta e misturar ideias cristãs com costumes pagãos?

Com o advento da impressora, alfabetização popular e demandas por liberdade religiosa, não seria mais intuitivo que o mundo ficasse mais liberal e menos persecutório com o passar das décadas)?

Por incrível que pareça, não. Embora caças às bruxas tenham sido associadas à Idade Média, elas foram um fenômeno quase que exclusivamente moderno. No que é hoje sul da Alemanha, região retratada em Pentiment, alguns dos maiores processos aconteceram poucas décadas depois dos eventos do jogo. Os processos de Salem, possivelmente os mais famosos do mundo, foram realizados ainda depois, entre 1692 e 93

Imagem do livro “The history of witches and wizards, publicado em 1720

Olhando essas datas, dá para entender por que a modernidade achou melhor condenar seus crimes às fogueiras do passado. A ideia de que a mesma época que nos legou René Descartes e Isaac Newton produziu episódios de intolerância e fanatismo religioso é desconfortável.  Muito mais fácil é alimentar a ilusão de que o obscurantismo é uma velha superstição que estamos a caminho de extinguir.

Essa ingenuidade, porém, teve efeitos sérios que perduram até os dias de hoje. Ainda hoje, continuamos incapaz de aceitar que atos de extremismo, negacionismo ou terrorismo não são exceções remanescentes do passado, mas parte do que somos: pecados da época contemporânea, não de uma “era medieval”.

Empenhados em recusar responsabilidade sobre tudo o que sofremos, não fazemos a pergunta mais importante: até que ponto os pesadelos dos dias de hoje – disparos em massa de discursos de ódio, fim de empregos por conta de IAs, ataques à democracia liberal – não são subprodutos de nosso próprio movimento de progresso?

Se nada mais, ao ambientar deliberadamente sua história em uma época de transição ideológica e cultural, Pentiment nos mostra que não é a primeira vez que a humanidade se depara com essa questão. E, tal como o foi na época da Reforma Protestante, não é o tipo de  questão que podemos ignorar.

Como Pentiment e outros RPGs nos ensinam, ações têm consequências. Sua ausência também.

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“Hiraeth”: morremos sozinhos, mas vivemos por meio dos outros http://www.finisgeekis.com/2022/08/04/hiraeth-morremos-sozinhos-mas-vivemos-por-meio-dos-outros/ http://www.finisgeekis.com/2022/08/04/hiraeth-morremos-sozinhos-mas-vivemos-por-meio-dos-outros/#comments Thu, 04 Aug 2022 20:09:08 +0000 https://www.finisgeekis.com/?p=23202 Hiraeth é uma daquelas palavras que vira e mexe aparece em listas de palavras intraduzíveis, ao lado de schadenfraude ou “saudade”. Tal como saudade, aliás, ela é frequentemente explicada como nostalgia, saudade de casa, tristeza de pensar em algo que é impossível ou que já passou.

Não sei o suficiente de galês para saber se Hiraeth, mangá homônimo de Yuhki Kamatami, faz jus a todos os seus significados. O que posso dizer é que é sim uma história sobre nostalgia, saudade de casa e a tristeza de pensar em algo que é impossível ou que já passou.

Mais do que isso, é uma história sobre qual difícil é saber o que de fato queremos – e de onde vêm as ausências que nos correm por dentro.

O fim da jornada

Como seu subtítulo indica, Hiraeth: The End of the Journey é uma road trip, embora seus protagonistas sejam tudo menos óbvios.

Mika é uma adolescente que desistiu de viver após a morte da melhor amiga. Ela tenta se suicidar, no que é impedida por Hibino, um homem que, ironicamente, não consegue morrer.

Hibino, por sua vez, acompanha Hani (nome fantasia), um deus que busca o caminho para Yomi, a terra dos mortos da mitologia xintoísta. “Sim, até os deuses morrem”, ele relembra seus companheiros. Quando os séculos levam consigo seus últimos fieis, divindades embarcam de bom grado em sua última viagem. Primeiro, fazem uma peregrinação até o santuário de cada outro deus que conhecia, agradecendo-o por favores passados. Depois, abandonam o mundo terreno.

Não é exatamente a mesma coisa que mortais entendem como “morte”. Mika e Hibino, no entanto, decidem apostar na chance que, ao acompanhar o deus misterioso, eles também serão abençoados com seu fim.

O mangá de Kamatami está em boa companhia, a despeito – ou talvez por causa – de seu caráter mórbido. De Noragami a Gekijou Ningyo no Mori (baseado na lenda de Yaobikuni, citada diretamente em Hiraeth), o peso da imortalidade e a dependência de mitos naqueles que os contam são temas tão classicos na cultura pop japonesa quanto na mitologia que a precedeu.

O que Hiraeth agrega à fórmula é a confusa, bela e trágica série de nós que entrelaça as motivações de seu trio principal. Embora persigam o mais egoísta de todos os objetivos – a morte – Mika, Hibino e Hani acabam por depender completamente um no outro.

Hibino é fascinado por Mika pois, em todos os seus séculos de vida, nunca experimentou um afeto tão sério a ponto de desejar morrer por outra pessoa. Para sua própria proteção, nunca permanece muito tempo com o mesmo parceiro, preferindo um vida sem compromissos à inevitabilidade de continuar jovem enquanto seus entes amados envelhecem.

Hani, um deus, não entende a morte da mesma forma que os humanos. A tristeza, o luto e o medo que mortais têm do fim inevitável desperta nele uma imensa curiosidade. Curiosidade que parece, aos olhos das pessoas, insensível e opressiva.

Não fosse o bastante, ele tem o poder de enxergar a morte das pessoas. Mais especificamente, todas as memórias que ligam o nascimento ao último suspiro. Se isto é conveniente para ele – e para o leitor, que se aproveita de seu conhecimento – é aterrorizante para qualquer um que tenha o desprazer de cruzar seu caminho. Pior do que carregar uma culpa vergonhosa é saber que seu coração é um livro aberto a estranhos.

É uma premissa que garante que esse trio de protagonistas jamais estará na mesma página. Consequentemente, até a mais banal das revelações se mostra uma fonte de surpresas e conflitos.

“A estrada até a morte é um caminho conectado pelas memórias dos vivos” Hani explica. E tal caminho não é nem tão curto nem tão previsível quanto imaginam à primeira vista.

A vida dos outros

Não bastassem suas bagagens pessoais, Mika, Hibino e Hani são confrontados por todo um elenco de personagens vivendo à sombra da morte. Uma idosa que viveu uma vida plena, mas anseia conhecer o mundo para além da cidade onde mora. Um oficial do shogunato que descumpre suas ordens para ajudar o povo afetado por uma calamidade, condenando-se à morte por seppuku. Uma jovem com câncer terminal que busca o segredo de Hibino para que ela, própria, possa ganhar mais uns anos.

Nenhum dos três sai de cada encontro do mesmo jeito que entrou. Com o passar dos capítulos, é questão de tempo até que comecem a repensar ou o objetivo de sua jornada ou os motivos que os levaram até ali.

Nesse sentido, Hiraeth funciona como uma versão mais breve e menos movimentada de A Vida Imortal: uma série de vinhetas que continuamente forçam suas personagens -e a nós mesmos – a nos questionarmos sobre o final da vida. Que Kamatami tenha conseguido inserir tanto conteúdo em tão pouco espaço é prova de sua habilidade. Se com certos mangás sentimos que as páginas voam diante de nossos olhos, cada volume de Hiraeth nos atinge como uma pedrada. Esta não é uma leitura leve, pois mais fofas que suas personagens e capas floridas sugiram o contrário.

Uma “obra Covid?

Hiraeth começou a ser publicado em outubro de 2020. É tentador – e, provavelmente, não de todo errado – encará-lo como uma “obra Covid”: uma de tantas histórias sobre a morte, o luto e a culpa de sobrevivente que calamidades recentes tornaram populares. Se isto não passou pela cabeça de Kamatami, sem dúvida o fez pelas de quem resolveu trazê-lo ao Ocidente – pelo menos em língua anglófona – esse ano.

Mas julgar demais o mangá pelo nosso zeitgeist pode nos levar a deixar de lado o mais importante. Como a road trip de Mika, Hibino e Hani deixam claro, calamidades não têm, nem nunca tiveram, o monopólio sobre a dor e a morte.

A pandemia trouxe um holofote para a perda e o sofrimento. Porém, o desafio de viver em um mundo onde a vida vale pouco e a morte é arbitrária é um velho conhecido de muitas pessoas. Em especial, aquelas que vivem nas margens.

Anos antes de publicar Hiraeth, Kamatami escreveu outro mangá, Shimanami Tasogare, sobre um jovem gay que tenta o suicídio, mas é salvo de última hora por uma entidade misteriosa. Puxado de volta à vida que de tentou escapar, o garoto se voluntaria a construir um centro comunitário para pessoas LGBT+. A experiência abre seus olhos para as vidas, dores e amores de outras pessoas – outrora, invisíveis a seus olhos.

Hiraeth é uma obra bem mais metafórica, mas ambos os mangás, no fundo, nos dirigem à mesma questão.

O trio viajante de Hiraeth possui muito pouco em comum. Porém, se há algo em sua jornada que os une são as surpresas que os forçam a enxergar além dos próprios umbigos.

A Hibino, estes choques o levam a questionar se a frieza por trás da qual se esconde não é uma fuga mais do que uma solução. À Mika, eles indicam que a perda da amiga pode não ser importante a ponto de valer seu próprio sacrifício. A Hani, o ajudam a dar sentido a tapeçaria de memórias que ele sempre enxerga, mas raramente compreende.

Estar próximo da morte nos faz reapreciar a vida. Mas, se Mika e companhia nos ensinam alguma coisa, é que se tudo o que tirarmos da experiência disser respeito a nossa própria dor, possivelmente será uma lição aprendida em vão.

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Yuuta Nishio: um mangaká para as angústias de nosso tempo http://www.finisgeekis.com/2022/07/14/yuuta-nishio-um-mangaka-para-as-angustias-de-nosso-tempo/ http://www.finisgeekis.com/2022/07/14/yuuta-nishio-um-mangaka-para-as-angustias-de-nosso-tempo/#respond Thu, 14 Jul 2022 19:43:19 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23178 Uma mulher anda de bicicleta. O terno e mochila de laptop entregam que não pedala a passeio.

Um caminhão a ultrapassa. A motorista lembra alguém que conhece. Alguém importante, insubstituível. Alguém que lhe prometera construir uma vida com ela, que jamais a largaria para rodar Japão afora. A não ser que algo de muito errado tivesse acontecido.

Ela acelera, indiferente ao penteado desfeito e o suor que arruinava sua maquiagem. No retrovisor do caminhão ela enxerga a ponta de um cigarro. A pessoa de seu coração nunca fumava. A ciclista sorri, deixando que a bicicleta a embale em uma descida enquanto caminhão segue seu caminho.

Ela está feliz.

A sequência é uma de tantas pitadas de poesia visual encontradas nas páginas de Yuuta Nishio. Chamado por alguns de um Inio Asano dos mangás yuri, Nishio combina um olhar apurado para problemas íntimos com uma leveza que serve de antídoto aos anos de fadiga em que vivemos.

Um novo Inio Asano?

Comparações costumam ser armadilhas. Às vezes, o paralelo está menos nas páginas que na nossa mente. Às vezes, trazer à discussão uma obra ou autor de sucesso cria expectativas que história nenhuma é capaz de cumprir.

Meu primeiro contato com Yuuta Nishio veio justamente de uma comparação. No caso, com Inio Asano, mangaká de quem escrevi à exaustão nesse blog e que, para o bem ou para o mal, conquistou uma posição única nas discussões sobre a mídia. Há um espaço em formato de Boa Noite Punpun no universo dos mangás que apenas Asano é capaz de preencher.

Isso não impediu Rebecca Silverman do ANN de chamar Nishio de um “Inio Asano-lite”: um autor que “toca em muitos temas e estilísticas similares”, dentro de “história[s] mais gente[is] com um apelo um pouco diferente”.

Não é preciso abrir seus mangás para entender o mais visível desses apelos: Nishio escreve histórias yuri. Isto, por si só, já lhe abre um terreno que os protagonistas de Asano enxergam apenas com o canto dos olhos.

O autor de Nijigahara Holograph já foi considerado “a voz de uma geração”, mas é uma voz distorcida pelas preocupações dos homens jovens, problemáticos e sexualmente precoces que encabeçam a maioria de suas histórias. Há conflitos humanos que personagens como estas nunca experimentaram. Em especial quando se desenrolam em espaços aos quais homens não são convidados.

O que não significa que não haja uma vibe indiscutivelmente “asânica” nas histórias que Nishio conta. Como os adolescentes de Umibe no Onnanoko, as personagens do autor mostram uma completa franqueza em relação ao sexo. As mulheres sobre as quais escreve usam o corpo para se relacionar com o mundo, sem atentar para charminhos, tropos românticos – ou mesmo, em alguns casos, convenções sociais.

Em contraste com a pobreza temática de certos mangás de romance, as personagens de Nishio não se deixam definir por seus afetos. Elas não são namoradas, apenas estão com outras – por pouco ou muito tempo, a depender das circunstâncias, mas sempre cientes de que a vida é uma jornada que deverão realizar sozinhas. E o amor e o sexo, apenas duas – e não necessariamente as mais importantes – das paradas.

Em Mizuno & Chayama, esse relacionamento une duas garotas separadas por rivalidades entre suas famílias. Mizuno é a filha de um político ambientalista em combate contra uma grande empresa do ramo de chá que emprega metade da cidade. Chayama é ninguém menos que a filha do dono da empresa, cujo rosto estampa outdoors.

Ambas se se sentem frustradas: Mizuno porque todos a veem como uma extensão de seu pai: uma celebridade influente a quem podem pedir favores; Chayama, porque a riqueza de seus pais causa rancor entre os colegas mais humildes.

Chayama, em particular, é vítima de um bullying tão violento que parece tirado das páginas de um romance de Mieko Kawakami. A tortura vem das mãos de Aikawa, que em origem – e até aparência – lembra uma versão malévola da Aiko Tanaka de Boa noite Punpun. Pobre, divide uma casa enterrada no lixo com uma mãe que torra dinheiro em produtos milagrosos vendidos por seitas. Aikawa odeia sua vida e põe a culpa na Corporação Chayama, menos por acreditar que são culpados por suas dores que para mascarar sua violência com um verniz de justiça.

Como Asano, Nishio usa e abusa do sexo para atiçar o desconforto do leitor. Mizuno é molestada por um aliado de seu pai durante um jantar da campanha. Ninguém se move para ajudá-la: a eleição é mais importante que o desconforto da filha. O irmão de Aikawa, pré-adolescente, adquiriu o hábito de se masturbar contra os móveis. Por conta da negligência da família, não aprendeu como seu corpo funciona. Sobra à jovem limpá-lo quando chega ao orgasmo.

Quando todas essas violências acumuladas atinge um ponto de ebulição, não nos surpreendemos ao ver o sangue derramado. Há algo de As Flores do Mal na maneira como Mizuno & Chayama migra lentamente para uma tragédia anunciada.

Novos rumos depois dos 30

Sob muitos aspectos, o mangá não poderia ser mais diferente de After Hours, trabalho anterior de Nishio. Aqui, o foco é a relação de Emi, uma mulher de 24 anos, perdida e desempregada, por Kei, charmosa DJ seis anos mais velha.

Não deixe o título e as luzes de balada passarem a mensagem errada. Embora sua história se passe em becos escuros e raves alucinadas, não há nada de libidinoso e chocante em sua história de amor. As baladas de Emi e Kei pertencem ao mesmo universo de Paripi Koumei: um underground sempre às claras – ainda que suas luzes sejam artificiais e estroboscópicas.

É difícil ler o mangá sem pensar em Solanin, obra de Asano sobre os dramas de um grupo de jovens adultos que se envolvem na criação de uma banda de rock. Emi e Kei são mais velhas que o elenco daquele mangá, mas isso só dá mais peso ao seu projeto de vingar na carreira das raves.

Não há nada de misterioso em sonhar de viver de arte nos seus vinte e poucos anos. Fazê-lo depois dos trinta, por outro lado, é uma decisão intrigante a ponto de carregar todo um enredo.

Ao contrário da titubeante Minare de Nami yo Kiitekure (ou de todo o elenco de Honey & Clover), a Emi e Kei nem sempre sabem o que elas querem, mas sabem exatamente o que elas são. Elas não precisam de uma jornada de auto-conhecimento. O seu futuro pertence a elas.

Embora escondido sob a agressividade de sua trama, esse mesmo otimismo está também presente em Mizuno & Chayama. Se Asano é trágico mesmo quando tenta ser leve, há uma leveza nos mangás de Nishio que se sobrepõe às cenas mais chocantes.

Mizuno & Chayama, que se passa no último ano do Ensino Médio – literalmente, o último ano (de suas adolescências/antes do início de sua vida adulta). A despeito dos sapos que são obrigadas a engolir, suas protagonistas nunca perdem de vista de que aquilo que vivem é uma fase que um dia passará sem deixar traumas ou rancores.

Após três anos de pandemia, violência galopante, desmandos políticos e histeria, histórias como essa soam como nada menos que um curativo mental.

Muitos mangás falam sobre os tombos, os machucados, o desespero de e ver sem rumo. Nishio escreve sobre o que acontece quando decidimos nos levantar. E este momento, ela nos ensina, sempre chega.

Todos estamos na sarjeta…

“After hours”, a DJ Kei explica, são aquelas horas entre o fim da balada e o início do próximo dia útil. As horas incertezas que ainda não fazem uma manhã, mas tampouco pertencem à noite; em que o frenesi do escapismo já passou, mas ainda não fomos rendidos pela chave-de-braço da rotina. Um momento para nos situarmos – e, quando a situação pede, respirar.

De certa forma, esses anos 20 que vivemos vem se mostrando as after hours do século XXI, tal como os anos 20 do século passado foram a era do jazz. Que saibamos aproveitá-los tão bem quanto Emi e Kei, ou Mizuno e Chayama; se não para fundar uma rave ou mudar de cidade, para dar à nossa vida o rumo que precisa.

Como escreveu Oscar Wilde, todos estamos na sarjeta, mas alguns olhamos para o céu.

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“Os Triunfos de Tarlac” dev diary #9: a arte do jogo http://www.finisgeekis.com/2022/07/01/os-triunfos-de-tarlac-dev-diary-9-a-arte-do-jogo/ http://www.finisgeekis.com/2022/07/01/os-triunfos-de-tarlac-dev-diary-9-a-arte-do-jogo/#comments Fri, 01 Jul 2022 20:48:10 +0000 https://www.finisgeekis.com/?p=23159

Fidelidade histórica em jogos é um dos pontos mais discutidos por entusiastas na disciplina – Embora, como defendi em outra ocasião, não necessariamente o mais importante. Para nós, historiadores, representar adequadamente coisas como sistemas políticos, mentalidades e transformações de longo prazo costuma ser mais importante do que saber que tipo de fivela de cinto ou rei ou príncipe usava.

Isso não significa que se preocupar com a representação de armas, roupas e edifícios em jogos históricos não seja importante. Para certos jogos – como os arqueogames – reconstituir elementos da cultura material é um objetivo de primeira ordem. Mesmo para jogos mais abstratos, como o nosso, é uma oportunidade de apresentar a leigos reconstituições do passado que fogem dos chavões comumente associados à era medieval.

Embora Os Triunfos de Tarlac seja um jogo bastante abstrato, nos esforçamos para desafiar esses clichês dentro dos limites que nosso material permitia.

Fichas de batalha

Dois clichés específicos de que queríamos distância diziam respeito à indumentária dos guerreiros – de longe, um dos aspectos da Idade Média mais fetichizados pela mídia. O primeiro era a imagem de soldados vestindo armaduras lustrosas feitas de placas de aço. Embora tenham se tornado um ícone de Idade Média, este tipo de equipamento é mais recente que as primeiras armas de fogo e só se popularizou de verdade no fim do século XV e no século XVI – para efeitos de comparação, na mesma época em que os europeus começaram colonizar a América.

O segundo cliché diz respeito aos irlandeses. Na cultura pop, habitantes da Irlanda e Escócia frequentemente são retratados como bárbaros que marchavam para a guerra nus e pintados de azul. Como escreveu uma importante historiadora do século XX – hoje devidamente criticada – é como se não houvesse diferença entre a Irlanda conquistada pelos ingleses e a Gália na época de César.

Há um motivo para o tropo: além das razões políticas relacionadas ao imperialismo britânico, é muito difícil obter informações sobre como os guerreiros da época de Tarlac realmente eram. Isso não é tanto um problema em relação aos ingleses, sobre cujos guerreiros existem bastantes fontes iconográficas e também arqueológicas – ex. figuras em manuscritos, selos, efígies funerárias e armas e armaduras que sobreviveram ao teste dos tempos.

Selo de Gilbert de Clare, um dos antepassados dos de Clare de Thomond. Data: c. 1218-30

Porém, a situação é diferente em relação aos irlandeses. Embora tenhamos fontes visuais sobre o período anterior à conquista inglesa (século XII) e sobre o início da era moderna (séculos XV a XVII), contamos com pouquíssimas evidências sobre o intervalo entre essas épocas.

Dessa maneira, não tivemos escolha senão expandir nosso leque temporal e incorporar fontes visuais mais distantes. Na medida do possível, esse material foi comparado a descrições narrativas tiradas da saga Os Triunfos de Tarlac. Em outros casos, contudo, tivemos de utilizar nossa imaginação.

Para evitar cair no clichê de uma Irlanda bárbara, decidi como critério de “desempate” que, na ausência de informações, basearíamos nossas personagens em armas e armaduras de um período posterior (sécs. XV-XVII), não anterior. Nosso exército gaélico, portanto, é provavelmente mais “moderno” que os soldados que marcharam contra os ingleses liderados por Tarlac Ó Briain, embora nem tão modernos a ponto de se confundir com os paladinos em armaduras brilhantes que viriam dominar os campos de batalha da Renascença.

Ficha de batalha (versão inglesa)
Ficha de batalha (versão irlandesa)

O primeiro detalhe que salta aos olhos quando comparamos as duas fichas é o quão similares seus guerreiros são. Isto foi proposital. Exércitos na Irlanda eram, por necessidade, multiculturais: tanto ingleses quanto irlandeses contavam com soldados e mercenários provenientes de outras culturas. Nossa ilustração buscou atentar para esse fato, retratando soldados que bem poderiam se confundir no calor da batalha – algo que historicamente ocorria.

Fichas de devastação/destruição

A ficha de devastação se tornou a imagem mais icônica do nosso jogo. Foi ela que escolhemos para a capa do manual e todo o material de divulgação.

Aqui, todo o mérito pertence ao nosso artista, Vinícius Veneziani. Meu único briefing havia sido que as fichas deveriam incluir um assentamento – possivelmente um mosteiro – sendo saqueado.

Veneziani escolheu não um mosteiro qualquer, mas a Abadia de Clare, o exato lugar onde a saga que inspirou o jogo foi escrita. Ele também incluiu o Castelo de Bunratty – capital inglesa no reino de Thomond – e o antigo Castelo de Quin – outra importante fortaleza inglesa, hoje destruída.

A imagem não é exatamente fidedigna: na vida real, esses três lugares estão há dezenas de quilômetros de distância um do outro. Porém, inclui-los no mesmo quadro dá à imagem uma importância simbólica. Ele concentra três dos assentamentos mais importantes pertencentes às duas linhagens-chave do conflito: os Uí Bhriain e os de Clare.

Um detalhe curioso: os animais retratados nessa ficha são vacas Kerry. Trata-se de uma das raças contemporâneas de gado que mais se assemelham às vacas criadas na Irlanda na época de Tarlac.

A mesma vaca também aparece na nossa ficha de gado – que inclui, como easter egg, um auto-retrato do nosso artista (à direita)!

O Tabuleiro

Se a ficha de devastação se tornou o cartão de visitas do jogo, o tabuleiro é o elemento que mais recebe atenção dos próprios jogadores. É ao redor dele, afinal de contas, que passarão horas a fio durante suas partidas.

Nós sabíamos que ele precisava ficar não apenas funcional, mas bonito – de preferência, impressionante.

A tarefa ficou a cargo de outro de nossos artistas, Gabriel Cordeiro – que também se encarregou de colorir as fichas desenhas por Vinícius. Para tanto, ele se inspirou no Mapa Gough: uma obra cartográfica de meados do século XIV que representa a Irlanda e Inglaterra.

Detalhe do mapa Gough
Detalhe do tabuleiro de Os Triunfos de Tarlac

Os castelos são baseados em Bunratty, mesma fortaleza inglesa retratada na nossa ficha de devastação. Os longphoirt (assentamentos irlandeses), por outro lado, foram inspirados nos ráthanna e cathracha: tipos de residência circulares populares entre famílias gaélicas.

Aqui, fomos também obrigados a fazer concessões. Ráthanna e cathracha não foram os únicos tipos de fortaleza construídas por irlandeses na época em que o jogo se passa. Os Triunfos de Tarlac inclusive sugerem, em uma passagem, que Clonroad, residência principal dos Uí Bhriain, possuía muralhas e defesas de pedra. Teria ela sido, na vida real, mais parecida a um castelo que a um ráth?

Infelizmente, não sabemos. Boa parte dos assentamentos dessa época foram eventualmente abandonados. Em muitos casos, sequer sabemos seus nomes – ou mesmo sua localização exata! O que de fato sabemos é que pelo menos algumas das residências irlandesas da época seguiam esse modelo – por exemplo, Caherballykinvarga, no antigo reino de Corcamruad. E foi nelas que baseados o design do jogo.

Se esse processo criativo nos ensinou alguma coisa, foi que fidelidade histórica é importante, mas deve ser encarada como um horizonte, não como um requisito. É impossível fazer um jogo que seja uma fotografia perfeita do passado. Não temos informações suficientes (e, mesmo que tivéssemos, quem segura a câmera sempre afeta o resultado da imagem).

Certas escolhas artísticas podem nos ajudar a lidar com nossas lacunas de saber. No contexto do nosso jogo, o traço cartunesco de Vinícius Veneziani e as cores fortes de Gabriel Cordeiro deram à sua identidade visual um aspecto irreverente, que gera menos expectativas que um trabalho fotorrealista. Com sorte, ela também servirá de antídoto à densidade de suas regras, contribuindo para fazer de Tarlac um jogo mais acessível.

O fim da jornada

Esse é o último diário de desenvolvimento de Os Triunfos de Tarlac. Após mais de dois anos de desenvolvimento, nosso jogo finalmente terá seu lançamento oficial!

Espero que você tenha curtido acompanhar nossa jornada até aqui!

O material do jogo está disponível para download nesse endereço, em formato print & play.Planejamos também lançar uma versão digital nos próximos meses, que será incluída nessa mesma página.

Boa jogatina! Que suas campanhas na Irlanda da época de Tarlac também sejam um triunfo!

 

Historical accuracy in games is one of the most talked about topics among history enthusiasts– although, as I argued elsewhere, not necessarily the most important one. For us, historians, to adequately represent things like political systems, mentalities and long-term transformations is usually more relevant than to know which type of belt buckle a given king or prince used.

This does not mean paying attention to the representation of weapons, clothing and buildings in historical games is unimportant. For some – like archaeogames – recreating certain features of a material culture might be a first order priority. Efforts towards this goal can also be an opportunity to introduce laypersons to recreations of the past that challenge tropes often associated with the medieval era.

Although The Triumphs of Turlough is a very abstract game, we did our best to confront these clichés within the limits of our material.

Battle tokens

Two specific tropes we wanted to avoid at all costs concern the equipment worn by warriors – by far one of the most fetichized aspects of the Middle Ages. The first is the image of soldiers clad in shining plate armor. Iconic as it may be, this type of personal protection is actually more recent than the first firearms and only became truly widespread in the late 15th and 16th centuries – for effects of comparison, around the same time Europeans started to colonize the Americas.

The second trope concerned the Gaelic Irish. In popular culture, the Irish and Scottish from this period are often portrayed as barbarians that marched to war naked and/or painted with woad. As a famous 20th century historian – now duly criticized – once wrote, it was as if there was no difference between Ireland in the time of the English conquest and Gaul during the campaigns of Caesar.

There is a reason why this trope is so popular. In addition to political factors harking back to the centuries of British imperialism, it is very hard to obtain information about what warriors in the time of Turlough actually looked like. This is not so much an issue in relation to the English, about whom there are plenty of sources – e.g. figures in manuscripts, seals, effigies, and surviving arms and armour.

Seal of Gilbert de Clare, an ancestor of the de Clares de Thomond. c. 1218-30

However, the situation is different in relation to the Irish. Although we have some visual sources from the period before the English conquest (12th c.) and from the Early Modern period (15th – 17th c.), there is preciously little evidence from the interval between these eras.

To address this gap, we had no choice to broaden our scope and include visual sources from other centuries. Whenever possible, this material was compared to descriptions of military equipment from the saga-text The Triumphs of Turlough. In other cases, however, we were forced to use our imagination.

To avoid falling into the cliché of a barbaric Ireland, I decided that, in the case of absence of data, we would base our artwork in arms and armour from a later period (15th – 17th c.). Our Gaelic army, therefore, is probably more “modern” than the soldiers that marched under Turlough O’Brien, although not modern enough to be taken for the paladins in shining armour that would dominate battlefields during the Renaissance.

Battle token (English version)
Battle token (Irish version)

The first thing one notices when comparing both tokens is how similar they are. This was intentional. Armies in Ireland were mixed by necessity: both the English and the Irish recruited soldiers and mercenaries from different cultures. Our artwork tried to account to that fact, portraying warriors that could well struggle to identify friends and foes in the heat of battle – something that historically happened.

Devastation/destruction tokens

The devastation token became the most iconic image of our game. It was the image we chose for the rulebook cover and all our promotional material.

Here, all the credit belongs to our artist Vinícius Veneziani. The only guideline I gave him during briefing was to include a settlement (possibly a monastery) being raided.

Veneziani chose not just any monastery, but Clare Abbey, the exact place where the saga that inspided the game was written. He also included Bunratty castle – the English capital in Thomond – and the old castle at Quin – another important stronghold, which was later dismantled.

The image is not quite true to life: in reality, these three places are located several kilometers apart from one another. However, including them in a single picture provides the token with symbolic meaning. It features three of the most importante settlements belonging to the main lineages involved in the conflict: the Uí Bhriain and the de Clare.

An interesting detail: the animals in this token are modeled after the Kerry cow, one of the contemporary breeds that resembles the most the cattle reared in the time of Turlough.  

The same cow is featured in our cattle token – along with a self-portrait of our artist (on the right)!

The game board

If the devastation token became our game’s greeting card, the board is the element that receives the most attention from players. It is around it, after all, that they will spend countless hours during matches.

We knew it needed not only to be functional, but also pretty – even better, it should be impressive.

The task fell on another of our artists, Gabriel Cordeiro (who also colored the tokens drawn by Vinícius Veneziani). To that end, he took inspiration from the Gough Map, a mid-14th c. cartographic source that features Ireland and Britain.

Detail from the Gough map
Detail from The Triumphs of Turlough game board

The castles are based on Bunratty, the same English stronghold from our devastation token. The longphoirt (Irish settlements), on the Other hand, were inspired by raths and cahers: circular holdings popular among Gaelic families of the time.

Here, we had again to make some concessions. Raths and cahers were not the only types of settlement built by the Irish in the period the game is set. The saga The Triumphs of Turlough even mentions, in one passage, that Clonroad, head place of the Uí Bhriain, had walls and fortifications made of stone. Is it possible that it resembled a castle more than a rath?

Unfortunately, we don’t know. Most settlements from this period were eventually abandoned. In many cases, we don’t even know their names – or even their exact location! What we do know is that at least some of the Irish longphoirt resembled raths or cahers – for example, Caherballykinvarga in the kingdom of Corcomroe. It was on these settlements that we based our design for the game.

If this creative process taught us anything, is that historical accuracy is important, but it should be pursued as a horizon, never as a requisite. It is impossible to make a game that is a perfect photograph of the past. We don’t have enough data (and, even if we did, the person holding the camera always affects the result).

Certain artistic choices can help us deal with knowledge gaps. In the context of our game, the Vinícius Veneziani’s cartoonish style and Gabriel Cordeiro’s bold colours brought some irreverence to its visual identity, granting the game a leeway in regards to detail it would not have enjoyed if we had pursued strict realism. With luck, this art style will also act as an antidote to the density of Turlough’s rules, making it more accessible to a larger audience.

The end of the journey

I hope you enjoyed following our journey so far!

This is the last dev diary for The Triumphs of Turlough. After more than two years of development, we will be having our official launch on August 15th.

The print & play game material can be downloaded here. We are also planned a digital version in the coming months, that will also be available at this same address.

Have a good game! And may your campaigns in Ireland in the time of Turlough also be a triumph!

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http://www.finisgeekis.com/2022/07/01/os-triunfos-de-tarlac-dev-diary-9-a-arte-do-jogo/feed/ 2 23159
“A Música de Marie”: por um sonho que abrace nossa humanidade http://www.finisgeekis.com/2022/06/17/a-musica-de-marie-por-um-sonho-que-abrace-nossa-humanidade/ http://www.finisgeekis.com/2022/06/17/a-musica-de-marie-por-um-sonho-que-abrace-nossa-humanidade/#respond Fri, 17 Jun 2022 15:30:09 +0000 https://www.finisgeekis.com/?p=23138 Cerca de trinta anos atrás, algumas pessoas pensavam que a queda do Muro de Berlim seria o capítulo final de um século de catástrofes que nunca mais se repetiria. Sem dúvida, faltavam problemas a se resolver. O futuro traria sua parcela de desafios. Mas nenhum deles voltaria a sacudir os pilares do sistema. Havíamos chegado ao fim da história.

Hoje em dia, poucos acreditam nessa ilusão.

Nossa sociedade vive com medo: não apenas de regredirmos a uma era de extremismos e incertezas que julgávamos acabada, mas também o medo de termos ido longe demais. A crise ambiental se faz sentir um pouco mais a cada dia que passa. Novas tecnologias nos trazem não utopias, mas algoritmos obscuros, controle político e fake News.

É difícil acreditar que A Música de Marie, mangá de Usamaru Furuya recém-lançado pela NewPop, não tenha sido escrito com tal medo em mente. Publicado originalmente entre 1999 e 2001, é um trabalho a um só tempo atual e nostálgico; atemporal, mas também hesitante em abordar seu tempo.

Uma caixa de música

A Música de Marie é o tipo de fantasia que não vemos todos os dias – se é que de “fantasia” podemos chamá-la. Seu mundo fictício é mecânico, movido a pistões, engrenagens e ponteiros analógicos. Não perca tempo, contudo, buscando a desilusão ou inquietude com o mundo industrial tão presentes na ficção steampunk.  

Trata-se de um mundo construído, mas desprovido de construtores: tão belo e misterioso quanto uma velha caixinha de música flagrada nas vitrines de um antiquário.

O paralelo, aliás, é proposital. Como o título deixa claro, A Música de Marie é a história sobre uma música – mais precisamente, sobre um garoto abençoado (ou amaldiçoado) a ouvi-la.

Quando criança, Kai sofreu um acidente de que não deveria ter sobrevivido. Contrariando as expectativas, ele retorna ao mundo dos vivos e descobre, no processo, que adquiriu sentidos excepcionais. Em primeiro lugar, o episódio o dotou de uma audição fora de série, capaz de escutar até mesmo tensões nas rochas e bolsos subterrâneos de gás. A habilidade prontamente o transforma em uma sensação na vila de mineradores em que vive.

Mais importantemente, ele se tornou capaz de ouvir e enxergar Marie, deusa protetora da humanidade.

Como tantos profetas da mitologia, Kai sobrevive à experiência um tanto menos humano. Seu amor pela deusa ultrapassa o metafórico e se transforma em desejo físico. Para Pipi, que o ama desde a infância e não consegue imaginar um futuro senão ao seu lado, seu retorno é um acontecimento agridoce.

Quando suas tentativas de impressionar o garoto começam a pôr em risco sua própria vida – por exemplo, motivando-a “voar” para ficar parecida com Marie – somos tentados a nos perguntar se esse paraíso mecânico é assim tão paradisíaco.

Infelizmente para Pipi – e todos os cidadãos de seu mundo – algo mais sério que a solidão ameaça os pilares de seu mundo.

Se o país de Kai é belo como uma bailaria de porcelana sobre uma caixa de música, não demora para sentirmos que seu mundo perfeito, milimetricamente planejado, é tão claustrofóbico e opressivo quanto a estante de uma cristaleira.

Os sinais são sutis, mas consistentes. Ninguém entende muito bem como as máquinas que tanto usam funcionam. Depósitos legados por gerações passadas estão repletos de aparelhos estruturalmente intactos, mas que se recusam a funcionar. Sempre que um inventor descobre uma tecnologia nova, sua invenção é destruída em uma pane misteriosa.

Kai, cuja audição supera aquela das outras pessoas, escuta um ruído dissonante imediatamente antes de enguiçarem. É como se as máquinas quebrassem de propósito após receberem um comando. Um comando que só pode ter uma única fonte.

O leitor estará perdoado se pensar em Drosselmeyer, o sinistro fabricante de brinquedos do conto O Quebra-Nozes – que inspirou o igualmente macabro antagonista de Princess Tutu. Esta é exatamente a atmosfera que Furuya constrói para sua personagem titular.

Seria a Marie que seu povo tanto venera menos uma deusa benfeitora que uma inteligência criada para manter humanos no lugar?

E se esse lugar for bom – como de fato – seria mesmo correto tirá-los de lá? O que é preferível: a liberdade para se destruir ou a segurança trazida por um demiurgo?

Como Furuya resolve esse impasse é algo que você terá de ler o mangá para descobrir. Estragar a surpresa de seu enredo seria uma afronta à sua trama, tão bela e delicada como o mecanismo de um relógio de bolso.

Ainda assim, sem dar mais detalhes, posso contar que há uma falha filosófica em seu trabalho que destoa do todo como uma chave presa entre as engrenagens.

Tal como obras como Nausicaa do Vale do Vento e a série Nier, Furuya brinca com a ideia de que a humanidade será a arquiteta de sua própria destruição – de maneira que apenas seu fim poderia salvar o planeta de um apocalipse generalizado. Ao contrário destas obras, contudo, o autor parece acreditar que o armagedom pode ser evitado mantendo as pessoas longe de laptops e motores a diesel.

É como se o mesmo impulso elétrico que faz um circuito funcionar fosse responsável por acender o ódio e a mesquinhez no coração das pessoas.

No que diz respeito a ideias, esta está longe de ser nova. O que nem de longe significa que não seja problemática.

O mito da humanidade pura

A ideia de que o ser humano é um ser puro enquanto vive em paz com a natureza e é corrompido pela ação da sociedade remonta a séculos, quando não milênios. Ele ganhou popularidade, em particular, em períodos que passaram por rápidas (e bem-sucedidas) transformações sociais. Afinal, se é a sociedade quem estraga os humanos, basta mudar a sociedade para criar pessoas perfeitas.

Se essa proposta soa bem-intencionada (ainda que ingênua e potencialmente perigosa), algumas de suas variações resistiram pior à passagem do tempo. Historicamente, esse discurso também foi utilizado para infantilizar populações nativas, opor-se ao progresso da ciência e fundamentar políticas reacionárias – voltadas não só contra fábricas e chaminés, mas para a glorificações de ideologias retrógradas, fanáticas, violentas e primitivistas.

O Saque de Roma em 410 pelos Vândalos, de Joseph Nöel Sylvestre (1847)

É verdade que a era industrial tem problemas. Destruição do meio-ambiente, guerras mundiais, relações de trabalho desumanas são apenas algumas das muitas tragédias em seu currículo. Mas também é verdade que ela nos trouxe antibióticos, vacinas, sistemas públicos de bem-estar social e tecnologias de telecomunicação que, por sua vez, nos ajudaram a nos organizar politicamente e melhorar nosso sistema.

Ao mesmo tempo, não é preciso ir muito longe para enxergar que o país sorridente de Furuya existe apenas nas páginas de seu mangá. Como nossas mitologias atestam, violência, egoísmo, engodo e mesquinhez acompanham o ser humano desde que aprendeu a contas histórias. A natureza é responsável pelo brilho das estrelas e pelas estações do ano, mas também pelas doenças infecciosas e pelos nossos piores instintos. Ela não é “boa”; apenas “é”.

A era contemporânea pode ter industrializado a crueldade, mas ela de forma alguma a criou.

Saturno Devorando seu Filho, de Francisco Goya

Na sua utopia a um só tempo futurista e bucólica, Furuya parece construir seu próprio “fim da história”: uma sociedade não apenas afastada dos problemas do presente, mas da própria história humana, com todas as suas ironias, complexidades e contradições.

Como exercício intelectual, é o tipo de coisa que tem o seu valor. Ursula le Guin, uma das maiores mestras da ficção científica, já dizia que o escritor não tem obrigação de contar a verdade. Seu trabalho é nos incitar a imaginar o diferente, nem que apenas para que tenhamos coragem de questionar o status quo.

Ainda assim, em uma época em que nossos piores pesadelos começam a ganhar vida, é importante que aprendamos a sonhar com a realidade – e não apenas contra ela.

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“Drive My Car”: para que serve uma adaptação? http://www.finisgeekis.com/2022/03/16/drive-my-car-para-que-serve-uma-adaptacao/ http://www.finisgeekis.com/2022/03/16/drive-my-car-para-que-serve-uma-adaptacao/#respond Wed, 16 Mar 2022 21:41:48 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23121 Adaptações têm uma fama ambígua no mundo do cinema. Se é verdade que livros e filmes flertam um com o outro desde os primórdios da sétima arte, poucas opiniões são mais repetidas que a máxima “o livro é melhor”.

Quando soube que o conto Drive My Car de Haruki Murakami havia sido adaptado ao cinema, contive meu entusiasmo. Embora Murakami seja o escritor japonês mais popular da atualidade, adaptações de suas obras foram, até hoje… menos que ótimas, para dizer o mínimo. Saber que o novo filme possuía quase três horas pouco fez para aliviar minha desconfiança. Roteiristas frequentemente patinam para adaptar romances a uma história deste tamanho. O que seria de um conto de menos de 40 páginas?

Como quem assistiu Drive My Car sabe, a resposta é um primor do cinema japonês contemporâneo.

Mas comentar por que o filme de Ryusuke Hamaguchi conseguiu acertar em cheio é apenas pretexto para uma discussão mais importante: talvez esteja na hora de repensarmos na nossa relação com as adaptações.

Qual é, afinal de contas, o sentido de contar de novo uma história que já foi escrita?

E o que, exatamente, torna uma adaptação ‘bem’ ou ‘mal’ sucedida?

Drive My Car em palavras…

Capa original do livro “Homens sem Mulheres”

Se o filme de Hamaguchi é qualquer indicativo, a primeira escolha começa antes mesmo que as filmagens. Drive My Car, o conto, é um excelente material para adaptações.

Haruki Murakami é conhecido por seu realismo fantástico e por um estilo intuitivo, quase anárquico de escrita. O escritor já afirmou diversas vezes que não é um “contador”, e sim “observador de histórias”: simplesmente registrando as ideias que saem de sua cabeça. Boa sorte para adaptar um livro destes a um roteiro – mais ainda para fazê-lo funcionar em movimento.

Para complicar as coisas, Homens sem Mulheres, coletânea a que Drive My Car pertence, está longe de seu melhor trabalho. Suas histórias, em grande parte, giram em tornos de homens desprezíveis que insistem em atribuir às mulheres a culpa de suas mágoas. Há mais autocomiseração e misoginia em suas páginas que frases bem construídas. Pelo contrário, alguns períodos, como “todas as mulheres nascem com um órgão especial, independente que lhes permite mentir”, nos fazem perguntar o que passou pela cabeça do editor ao publicá-las.

Drive My Car é uma exceção às duas regras. O conto não apenas demonstra um controle da linguagem de que suas obras posteriores parecem ter perdido, como esbanja uma empatia que falta a seus colegas de coletânea. Seu protagonista é, de fato, um “homem sem mulher” – mas quem é essa mulher e o real significado de sua ausência são questões nada óbvias que nos acompanham pelo conto inteiro – e que o final, em aberto, pouco se esforça para elucidar.

O homem em questão é Kafuku, ator veterano de teatro. Sua esposa (Oto no filme, sem nome no conto) é uma companheira perfeita e colega de trabalho, que grava os diálogos de sua peça para que estude no carro enquanto dirige. Ela também o trai. Serialmente. Com múltiplos homens.

Dividido entre a estabilidade conjugal e um acerto de contas que sem dúvida a destruiria, Kafuku opta pela inação. Em tempo, nenhuma outra escolha lhe será possível. Sua esposa morre (de câncer fulminante no conto, de uma doença súbita não declarada no filme). A dúvida, o choque, e os assuntos inacabados corroem o que resta do homem que um dia foi.

Não é difícil simpatizar com Kafuku. Embora seja a personagem ponto de vista, o ator parece viver pelo mote de outra personagem de Murakami, que certa vez disse que “apenas escrotos sentem pena de si mesmos”.  O conto é quase que inteiramente contado do banco de trás de seu Saab 900, em conversas com Misaki, motorista contratada pelo teatro depois que um diagnóstico de glaucoma o impossibilita de dirigir.

É Misaki que, em dado momento, lhe dispara uma Pergunta-Gretchen – “Por que você não tem amigos?” – depois da qual Kafuku se abre como uma rede esgarçada por toneladas de pensamentos vergonhosos.

… e em imagens

E é aqui que as semelhanças do filme com seu material de origem acabam.

Em seu longa, Hamaguchi força Kafuku para fora de seu Saab com a mesma violência da pergunta de Misaki. Sua esposa, antes uma recordação mal digerida, ganha um nome. Flashbacks da traição nos mostram os detalhes que o protagonista do conto reluta até em imaginar.

Enquanto que Murakami apenas nos informa que Kafuku estava ensaiando a peça Tio Vânia de Tchekov, Hamaguchi transforma sua montagem em uma história dentro da história, praticamente nos forçando a enxergar os paralelos entre uma obra e outra.

Em mãos menos habilidosas, a inclusão de toda essa bagagem extra afundaria a história mais rapidamente do que levaríamos para dizer que “o livro era melhor!”.  Mas há duas características do filme de Hamaguchi que o põe em um caminho diferente.

Em primeiro lugar, a despeito de todos os desvios, ambas as obras chegam ao mesmo lugar.

Kafuku, descobrimos no conto, é um homem sem mulheres, no plural. Muito antes de descobrir a traição, seu casamento foi abalado com a morte precoce de sua filha. Murakami nunca soletra o paralelo, mas é possível deduzir que, como Molly e Leopold Bloom de Ulisses, foi a morte da criança que colocou Kafuku e sua esposa em uma crise que apenas os braços de terceiros podia aliviar.

E Misaki, sua motorista, é uma mulher sem homem. Especificamente, uma mulher da idade de sua filha, consternada pela ausência de uma figura paterna. É da aproximação entre os dois, mais do que a traição que sofreu, que o conto verdadeiramente trata.

O filme de Hamaguchi subverte essa prioridade, afogando o relacionamento de Misaki e Kafuku sob o peso de quase três horas de tramas paralelas. Até mesmo o amante de sua esposa (no conto, apenas um de muitos) ganha um holofote para chamar de seu – junto com um arco pessoal que envolve suas ambições como ator e até mesmo um passado criminoso.

Mas Misaki e Kafuku ainda assim se encontram e abrem-se um para outro e percebem que são peças de um mesmo quebra-cabeças, ainda que tão maltratado pelos anos que dificilmente pode ser montado.

“Isso é tudo o que fazemos” disse, certa vez, outra personagem de Murakami, “tomamos infinitamente o caminho mais comprido”. Drive My Car, o filme, vive por esta máxima.

Em segundo lugar, mesmo o conteúdo original de Hamaguchi parece misteriosamente Murakamiano.

A traição de sua esposa, no conto apenas mencionada, ganha no longa uma cena de sexo ao som do Rondó K.485 de Mozart– tocado de um disco de vinil, ainda por cima. Leitores veteranos do autor reconhecerão de pronto o apreço de Murakami por música clássica – e por cenas eróticas (segundo seus críticos) mais tristes que prazerosas de se ler.

Se originalmente uma tomboy nas linhas de Kaoru, a durosa dona de um motel e Após o Anoitecer, a Misaki do filme mais se aproxima de uma contraparte jovem de Reiko, ex-pianista de Norwegian Wood que aconselha o protagonista Toru à luz dos sofrimentos de seu próprio passado.

O longa, de fato, parece quase uma releitura de Norwegian Wood, com jovens universitários com as emoções à flor da pele trocados por adultos de meia-idade. Mesmo as digressões mais originais de Hamaguchi – as cenas e mais cenas sobre o processo de criação de Kafuku, a subtrama sobre uma atriz surda-muda – lembram o enredo livre de seu romance de 1987, que acompanhar suas personagens sem a mordaça de um Kishotenketsu ou uma estrutura em três atos.

É possível imaginar um mundo paralelo em que Muramaki em pessoa tivesse concebido cada um desses detalhes. Provavelmente, enquanto escutava o Rondó K.485. Ou corria pela manhã.

Um ponto de partida… para a própria obra

Nada disso desmerece o trabalho de Hamaguchi e Takamasa Oe, que coassina o roteiro. Pelo contrário, suas escolhas mostram que seu filme possui algo cada vez mais raro no campo do entretenimento. Um propósito.

Hoje em dia, gastamos tanta energia debatendo se uma adaptação é ou não boa que raramente nos perguntamos para que serve uma adaptação.

Qual é o propósito de reescrever uma história que já existe? Para que revisitar conflitos, plot twists e retratos conhecidos de antemão?

Hamaguchi e Oe têm uma resposta: ela é apenas um ponto de partida – não, necessariamente, para novas ideias, ao menos não como um fim em sim, mas para fisgar aquelas escondidas no próprio texto; não para negar ou substituir a obra, mas para torná-la mais a obra que é.

Leiam comigo as últimas linhas do conto:

— Eu vou dormir um pouco – disse Kafuku.

Misaki não respondeu. Ela estudou quietamente a estrada. Kafuku estava grato pelo seu silêncio.

Quando Misaki aparece na última cena do filme de Hamaguchi, ela também estuda quietamente a estrada. Ela não está na companhia de Kafuku, dirigindo-o a mais uma peça. Não está mais sequer no Japão. Hamaguchi não nos explica o que faz na Coreia ou porque dirige o carro que pertencera ao ator.

Mas nós, como ele, somos gratos pelo seu silêncio.

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“People From My Neighbourhood”: imaginação em estado bruto http://www.finisgeekis.com/2022/02/23/people-from-my-neighbourhood-imaginacao-em-estado-bruto/ http://www.finisgeekis.com/2022/02/23/people-from-my-neighbourhood-imaginacao-em-estado-bruto/#respond Wed, 23 Feb 2022 21:41:43 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23113 Era, como diria Vinícius, um prédio muito engraçado. Famílias com exatamente seis pessoas ocupavam todos os apartamentos.

Aqui e ali, coisas estranhas começam a acontecer. Um homem cuja barba cresce mais rápido do que é capaz de cortá-la. Uma pessoa cujas bolha no pé viraram mini lagoas – com girinos e tudo.

“É coisa do Demônio” explica uma vizinha de outro prédio. Seis, afinal de contas, é o número da besta.

As pessoas da cidade começam a evitar o prédio. Isolados do mundo, seus moradores criam sua própria rotina, depois seu próprio banco central e moeda. Com o tempo, decretam independência e criam suas próprias forças armadas. Na Baía de Tóquio, é possível vê-los em exercícios conjuntos com a Marinha Japonesa.

Se a história acima a fez perguntar o que diabos acabou de ler, não está sozinha. A historinha vem de um dos contos de People From My Neighbourhood da escritora Hiromi Kawakami.

No papel, o livro é um compilado de microficção sobre os habitantes de um subúrbio de Tóquio. Na prática, é um álbum de retratos tão repleto de realismo fantástico, absurdo, metáforas e humor que parece feito sob medida para fritar nossas sinapses.

Esse não é um livro escrito com palavras, mas com imaginação em estado bruto.

As pessoas do meu bairro

Não olhe muito a fundo. Apenas curta o momento.

Esse é o sentimento que a protagonista sem nome de People From my Neighbourhood parece evocar.

Em sua voz, leitores veteranos de Kawakami reconhecerão de pronto o bom-humor de Quinquilharias Nakano, seu romance sobre funcionários de uma descontraída loja de antiguidades. Em certas histórias, o paralelo mais forte é com Parada, conto sobre crianças que se descobrem acompanhadas por seres da mitologia japonesa.

Porém, se Nakano mantém dos dois pés no campo do realismo e o segundo se insere na tradição do folclore, People From My Neighbourhood é uma obra orgulhosamente mais caótica.

Seus capítulos não são exatamente “contos” mais do que descrições de vizinhos de um bairro fictício – e dos eventos, muitas vezes absurdos, que protagonizam. Um adolescente que só é capaz de pronunciar três frases – “Devo assinar aqui?”, “A conta final, por favor” e “Está chovendo forte hoje” – e ocupa um banco no parque como se fosse seu escritório. Vovô Sombras, assim chamado por possuir duas sombras: uma em constante pé de guerra com a outra. Hachiro, garoto-problema abandonado pela família cuja custódia, entre os moradores, é determinada por uma loteria. A dona de uma decrépita casa noturna chamada Love, que passa noite após noite cantando a mesma música no karaokê. Nenhum cliente jamais agracia seu estabelecimento. Ninguém sabe como paga suas contas.

Personagens já apresentadas reaparecem em contos futuros, não necessariamente, do mesmo jeito ou no mesmo momento de suas vidas. A narradora sem nome migra sem cerimônia do passado ao presente e futuro. Muitas vezes, com tão pouco apreço à ordem que suspeitamos se tudo não passa de uma “trollagem”. Apenas Kawakami é capaz de escrever sobre uma doença que transforma todos em pombos – com sequelas irreversíveis –  e retornar ao status quo para o início de outro capítulo.

Nesse sentido, seu livro se aproxima do espírito de Shinya Shokudou (Midnight Diner), mangá de Yarou Abe sobre as histórias – às vezes maravilhosas ou sobrenaturais – de clientes de um boteco da madrugada. No caso de People From My Neighbourhood, bem mais do que “às vezes”.

Cena da adaptação às telas de Shynia Shokudou

Ao contrário de Shokudou, a obra de Kawakami tem os dois pés e alguns tentáculos no campo do realismo fantástico. Há um taxista que leva fantasmas para passear depois do expediente. “Mulheres são mulheres” ele protesta “Sempre é divertido tê-las por perto, mesmo se elas forem meio translúcidas e não tiverem pernas”.

Há uma garota que encontra uma criatura fedida em uma excursão escolar, cria-a até assumir a forma de um homem e a usa para sessões intermináveis de sexo. Quando seu companheiro insaciável começa a traí-la com outras mulheres, ela não consegue encontrar energias para se importar: “afinal de contas, ele não era uma pessoa real, apenas uma coisa estranha.”

Em certas histórias, é difícil escapar à impressão de que o livro de Kawakami é uma coleção de retratos de uma humanidade reduzida ao absurdo. Seus contos começam esquisitos, às vezes absurdos, então progridem a um nível de nonsense que viola qualquer suspensão de descrença.

Em um dos contos, por exemplo, duas crianças olham para uma estátua de bronze e decidem que também gostariam de ser homenageadas desta maneira. Tempos depois, elas declaram guerra ao Estado pelo direito de terem seu próprio monumento. A revolução é derrotada meses depois, e as crianças voltam para casa dramaticamente transformadas: uma tingira o cabelo de vermelho; outra aprendera a tocar trompete.

É o tipo de humor que esperamos do Flying Circus de Monty Python mais do que da autora de A Valise do Professor.

Mas Kawakami é menos consistentemente engraçada que a trupe britânica, e se permite, vez ou outra, nos derrubar com a rasteira de um arroubo de emoção. A linha que separa o fantástico do esquisito é fina – fina demais, muitas vezes, para que enxerguemos a diferença. Se alguma pessoa consegue sobreviver às 120 e poucas páginas de seu livro sem se lembrar de algum ex-morador ou indigente de seu próprio bairro, ela provavelmente não tem coração.

No Japão contemporâneo, realismo fantástico esteve por muito tempo atrelado ao sucesso sem paralelos de Haruki Murakami. People From My Neighbourhood se distancia da atmosfera onírica e urbana de seus romances, mas tampouco se confunde à prosa sóbria, melancólica de Yoko Ogawa; à sátira perturbadora de Sayaka Murata, muito menos à tradição latino-americana do realismo mágico. É um livro difícil de descrever, mais ainda de compreende, se é que “compreensível” é sequer um verbo compatível com sua irreverência. É, porém, uma obra que não deixa de nos surpreender da primeira à última frase.

O que mais um leitor poderia querer?

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“The Characters Taught Me Everything”: por dentro da carreira de Megumi Hayashibara http://www.finisgeekis.com/2022/02/10/the-characters-taught-me-everything-por-dentro-da-carreira-de-megumi-hayashibara/ http://www.finisgeekis.com/2022/02/10/the-characters-taught-me-everything-por-dentro-da-carreira-de-megumi-hayashibara/#respond Thu, 10 Feb 2022 19:43:38 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23098 Você sem dúvida já teve contato com Megumi Hayashibara, ainda que não a conheça de nome. Dubladora, cantora e radialista japonesa com uma carreira de mais de trinta anos, ela já trabalhou em alguns dos animes mais famosos de todos os tempos, como Evangelion (Rei Ayanami), Cowboy Bebop (Faye Valentine), Ranma ½ (Ranma) e Pokémon (Jesse).

The Characters Taught Me Everything (“As Personagens me Ensinaram Tudo”), livro de sua autoria publicado recentemente nesse lado do mundo, é uma rara (e preciosíssima) oportunidade de vê-la atrás da máscara.

“Tirar a máscara”, talvez, não seja sequer a expressão adequada. Hayashibara escreve com a aura de mistério de quem se esforçou por décadas para nublar as fronteiras entre si própria e as vozes a quem deu vida. Fechando metaforicamente os olhos, é até possível imaginar que lemos não uma mulher de carne e osso, mas uma alma compartilhada entre todas suas personagens.

Sua retrospectiva é menos uma autobiografia que uma história de quatro décadas seminais na história dos animes  – e daquilo que as tornou tão mágicas.

Vivendo a vida um episódio por vez

Hayashibara não escreve como uma escritora. Seu texto é espontâneo e informal, como se transcrito se um conversa face-a-face, separada dos leitoras apenas pelo espaço entre os bancos de um izakaya.

A seiyuu Megumi Hayashibara e algumas das (muitas) personagens a quem deu vida. Fonte da montagem: Crunchyroll

Sua fórmula também é simples – e forte justamente por isso. Cada capítulo é dedicado a uma personagem do vastíssimo rol de personagens a quem a atriz deu uma voz. Ela nos introduz à obra, conta-nos o que rolou nos bastidores e, fiel ao título, nos diz o que aprendeu com ela.

Essa mera premissa já faz do volume um item obrigatório na biblioteca de qualquer fã de anime. “Eu espero que esse livro possa se tornar uma pequena peça da história do anime”, diz a autora em sua conclusão. A seiyuu não poderia estar mais errada. Ela já é indiscutivelmente uma peça, e nada pequena, da história da mídia. Não me surpreenderia que sua memória, além de uma divertida leitura, viesse a se tornar base para estudos sobre animes por anos a fio.

Digo “memória”, palavra que aparece inclusive em seu marketing, mas vale a pena mencionar que o livro mal toca na vida pessoal de sua autora. Em tempos dominados por influencers que são seus próprios produtos, é reconfortante ouvir de uma criadora tão apaixonada por sua arte que sequer cogita roubar seu holofote.

É fascinante observar, pelos seus testemunhos, o quão radicalmente a indústria de dublagem se transformou com o passar das décadas. Nos primórdios, segundo relatos de seus senpais, o voice-over de filmes estrangeiros era feita ao vivo, e um único erro podia comprometer todo um dia de trabalho. Nos anos de 2010, em contraste, os seiyuus foram apresentados a toda sorte de inovação técnica. Foi o caso da dublagem de Rune Balot em Mardock Scramble, que combinou seu registro normal com uma captação do som conduzido pelos seus ossos, de maneira a produzir uma voz sintética.

Rune Balot de Mardock Scramble

Ela nos conta da feliz surpresa em interpretar heroínas em animes infanto-juvenis para, anos depois, trabalhar com estes mesmos adolescentes, hoje adultos e dubladores, gravando animes para uma nova uma geração de fãs. O número de colegas mortos que cita ao longo dos capítulos é um lembrete mais sinistro da passagem do tempo. Trabalhar com colegas de diferentes idades significa, infelizmente, ser mais exposto ao fim da vida.

Não é à toa que a passagem do tempo é um dos assuntos mais recorrentes ao longo de seus testemunhos. “Avanços na tecnologia e desenvolvimento dos sentidos humanos não são diretamente proporcionais” escreve ela. “Quando a tecnologia avança rápido demais, pessoas são deixadas para trás.” Sentimento que direciona ao enredo dos inúmeros animes sci fi em que trabalhou, mas também aos próprios avanços na tecnologia de produção, nem sempre feitos com os dubladores (ou mesmo os espectadores) em mente.

Ao mesmo tempo, a experiência de interpretar personagens que não batem com sua idade – muitas vezes, dentro de séries que se estendem, elas próprias, através dos anos – passa uma estranha sensação de atemporalidade. “Às vezes, ser uma dubladora é como estar descolada do tempo”.

“Ainda que o analógico evolua ao digital, ou os humanos evoluam a uma inteligência artificial, os sentimentos que uma dubladora coloca em sua voz quando está diante do microfone jamais desaparecerão.”

Outras digressões são menos felizes. Hayashibara é polida demais para dizer com todas as letras, mas muitos dos animes em que trabalhou passam longe de ser obras-primas. Na tentativa de encontrar uma pérola de sabedoria que encaixe nas séries mais comerciais, seu livro soa às vezes como um volume de auto-ajuda. O capítulo sobre a franquia Gundam, em que filosofa sobre o sentido da guerra, é particularmente fraco.

Felizmente, a parte boa de seu livro mais do que compensa a leitura. Em capítulos que soam particularmente relevantes hoje, nos anos pós-#MeToo, ela comenta sobre como interpretar certas personagens a pôs em conflito com suas próprias noções de feminilidade. Uma autointitulada “tomboy” que nunca se encaixou em modelos prontos de gênero, Hayashibara viu no anime tanto uma oportunidade quanto uma camisa de força.

Por um lado, escutar briefings descrevendo características vocais como masculinas e femininas sempre lhe pareceu “uma forma de lavagem cerebral.”

“Se existisse um jeito de ser objetivamente feminino ou masculino desde o começo, eu não acho que essas palavras teriam sido sequer inventadas.”

“Eu me pergunto se essas palavras não foram criadas porque tantas pessoas não estão fora dos moldes. E sinto que muitos de nós vivem nossas vidas presos pelas suas restrições, como uma maldição”.

Por outro lado, ela também conta como certas personagens femininas a expuseram a facetas do universo feminino que ela mesma não conhecia. É o caso da sensualidade agressiva de Faye Valentine, e sobretudo de Miyokichi de Showa Genroku Rakugo Shinju, que chegou, em sua história, a trabalhar como profissional do sexo. Numa das confissões mais surpreendentes, Hayashibara conta que pediu ao marido que lhe indicasse filmes eróticos para que conseguisse entender a essência da personagem.

Miyokichi

Ainda mais fascinante é a história daquela que, para muitos, é sua voz mais conhecida: Rei Ayanami. Se hoje a personagem de Evangelion é lliteralmente a patrona de um arquétipo, quando o anime foi lançado, em 1995, a ideia de uma personagem incapaz de demonstrar sentimentos era praticamente uma contradição em termos.

As orientações de seu criador, Hideaki Anno não ajudavam: “Não é que ela não tenha sentimentos” disse ele “Ela era incapaz de entender o que eram sentimentos”. Para interpretá-la, Hayashibara teve ela própria de se perguntar o que significava ter emoções.

Ela nos conta que a gravação aconteceu durante um período conturbado na relação com sua mãe, uma mulher tradicional que a condenava por preterir a vida doméstica em prol do trabalho. O cabo de guerra entre a paixão pela carreira e as pressões maternas levou Hayashibara à conclusão de que ter emoções é vestir dois rostos. De onde ser Rei Ayanami significava tornar-se uma pessoa incapaz de hipocrisia.

É uma maneira um tanto sinistra de se encarar as emoções, mas tem tudo a ver com uma artista cuja profissão consiste justamente em encarnar outras pessoas. O tema é recorrente em seus testemunhos. “Interpretar alguém que alterna entre dois rostos veio naturalmente a mim” ela diz de Paprika “Em vez de mudar meu tom de voz, eu mudava minha maneira de pensar”.

Longe de provocar angústia, o fardo parece agradá-la. “Quando eu comecei esse trabalho” explica “eu sentia que estava acomodando outras almas dentro do meu corpo. […] Eu precisava apenas me encolher e dar espaço” a elas.

Paprika

Fãs de anime – ou de qualquer outra arte – costumamos estimar nosso hobby por ampliarem nossos horizontes, colocarem-nos nos pés de outras pessoas. A sensação é de ser somado a cada uma dessas vidas ficcionais, como se nos tornássemos mais quem próprios somos a cada ponto de vista novo que adquirimos.

Ver uma atriz descrever seu trabalho como uma tentativa de se encolher para acomodar essas máscaras tem, à primeira vista, um quê de sinistro. Mas apenas à primeira vista.

Após ler o seu livro, não tive como não interpretar a colocação como fruto de generosidade, tanto para seus espectadores quanto para os mangakás e diretores a cujas criaturas deu vida.

O povo é um silêncio, e eu serei seu campeão, disse Gwynplaine, o protagonista de O Homem Que Ri de Victor Hugo. O universo dos animes não é exatamente um silêncio (ao menos, não literal). Mas é indiscutível que tem uma porta-voz – e uma campeã.

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O que “Mawaru Penguindrum” nos ensina sobre o extremismo http://www.finisgeekis.com/2022/01/26/o-que-mawaru-penguindrum-nos-ensina-sobre-o-extremismo/ http://www.finisgeekis.com/2022/01/26/o-que-mawaru-penguindrum-nos-ensina-sobre-o-extremismo/#respond Wed, 26 Jan 2022 21:29:07 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23092 O Finisgeekis entra em mais um ano, e tenho o privilégio de anunciar algo para lá de especial.

Mais uma vez, tive o privilégio de escrever para o ANN. Desta vez, sobre um tema que não poderia ser mais relevante – e um dos melhores animes já criados.

Mawaru Penguindrum é conhecido entre fãs de anime pelo seu surrealismo, simbolismo e criatividade artística. Ao mesmo tempo, é uma série que fala sobre um dos mais traumáticos eventos na história japonesa recente: o atentado de 1995 ao metrô de Tóquio. Membros de uma seita apocalíptica liderados por uma subcelebridade midiática com um pé na política expuseram mais de mil pessoas ao tóxico gás Sarin. Catorze perderam a vida. O país nunca mais foi o mesmo.

Para nós, lembrando-nos do episódio a partir do ano de 2022, é difícil não traçar paralelo com o momento político em que vivemos. Não só no Brasil, mas no mundo todo, assistimos à entrada de subcelebridades midiáticas na política. Trazendo, muitas vezes, ideias tão extremas quanto as da seita de 1995.

Como chegamos a esse ponto? E o que podemos fazer para sair dele?

Lançado em 2011, Penguindrum não foi escrito com nossos problemas em mente. Mas ele traz uma lição fundamental sobre o que nos mantém unidos como sociedade – e o que pode nos destruir como pessoas em momentos de crise e ressentimento.

Confiram o artigo completo no ANN.

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“Le Sommet des Dieux”: a obsessão humana é sua própria montanha http://www.finisgeekis.com/2021/12/22/le-sommet-des-dieux-a-obsessao-humana-e-sua-propria-montanha/ http://www.finisgeekis.com/2021/12/22/le-sommet-des-dieux-a-obsessao-humana-e-sua-propria-montanha/#respond Wed, 22 Dec 2021 20:39:57 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23079 Eu era criança quando chegou às livrarias No Ar Rarefeito, relato do jornalista Jon Krakauer sobre o desastre do Monte Evereste de 1996.  Graças, entre outras coisas, a um número excessivo de alpinistas pouco treinados, a temporada de escaladas resultou em uma tragédia. Doze pessoas morreram. 

Na época, não tinha idade, nem interesse, para ler o testemunho de Krakauer, um dos sobreviventes da dita temporada. Mas acompanhei os acontecimentos por meio do meu pai, que escolheu o livro do jornalista como leitura de férias e o terminou com a palidez de quem sobrevive a uma avalanche. “Se fosse hoje, eu não o leria” ele me disse anos depois, ainda chocado com seu conteúdo. 

De todos os detalhes horripilantes que compartilhou comigo, o que ficou em minha mente foi o de Beck Weathers, sobrevivente que voltou para casa sem as mãos, pés e nariz. 

A imagem de um alpinista semicongelado, sem nariz, habitou meus pesadelos por semanas à fio. 

Por conta disso, alpinismo sempre me pareceu um esporte mais sinistro que heroico; uma compulsão perigosa mais do que a empreitada romântica de humanos desafiando a natureza. 

É um bom mindset com que encarar Le Sommet des Dieux, animação de Patrick Imbert baseada no mangá de Jiro Taniguchi.

O cume dos deuses

É o tipo de coisa que jamais adivinharia dos trailers, mas Le Sommet des Dieux tem mais em comum com Cidadão Kane que com um filme tradicional de escalada.  

Suas primeiras cenas nos apresentam a Fukumachi, um fotógrafo enviado ao Evereste para cobrir a temporada de alpinismo. Ao escutar que trabalha em uma revista, um sujeito lhe oferece uma câmera antiga. Segundo ele, ela teria pertencido a George Mallory, alpinista britânico que desapareceu na montanha em 1924. 

A relíquia é mais do que uma simples curiosidade. Diz a história oficial que o Evereste foi escalado pela primeira vez por Edmund Hillary e Tenzing Norgay em 1953. Mas e se Mallory, antes de desaparecer, tivesse alçado o cume e fotografado a conquista? Estas fotos, se reveladas, reescreveriam a história do alpinismo. 

Fukumachi se recusa a comprar a câmera, tomando-a por uma fraude. Algo, porém, o faz mudar de ideia. Logo depois de receber sua negativa, o sujeito que a vendeu é confrontado por outro alpinista, que o acusa de lhe ter roubado a máquina. Para a surpresa de Fukumachi, ele é ninguém menos que Habu Jôji, lendário escalador japonês que desapareceu da sociedade anos atrás. 

Fukumachi pede a licença de seu editor para ir atrás de Habu – em teoria, ao menos, para recuperar a câmera de Mallory. Porém, quanto mais retraça os passos do famoso alpinista, mais a ambição de reconstituir a vida deste homem se transforma em um fim em si. 

Habu não é Charles Foster Kane, mas as migalhas de sua vida, examinadas por Fukumachi por meio de reportagens antigas, vídeos e conversas com antigos conhecidos, parecem arrancadas do filme clássico de Orson Welles.  

Ele era genial, mas irascível. Todos que cruzaram seu caminho terminaram mortos, traumatizados ou enfurecidos. “Para Habu, nós éramos apenas um degrau para que ele escalasse montanhas cada vez mais altas”, confessa um ex-parceiro. 

Em um flashback no início do filme, ele abandona uma confraternização entre colegas de seu clube de montanhismo. Do lado de fora, é interpelado por um desconhecido que lhe pede dicas de escalada. Habu atende seu pedido – por horas a fio, sem sequer se preocupar em procurar um assento.  

Somos lembrados da atriz Ayumi Himekawa de Glass no Kamen, que admite que sua rival artística, Maya Kitajima, é a única pessoa no mundo que a entende. 

Le Sommet des Dieux é uma adaptação do mangá Kamigami no Itadaki de Jiro Taniguchi; este, por sua vez, baseado em romance de Baku Yumemakura lançado em 1998.  O Evereste continua onde sempre esteve, mas muita coisa mudou, de lá para cá, em sua imagem popular.

Em 1998, o desastre do Evereste – e a polêmica suscitada pelo livro de Krakauer – ainda estavam frescos na memória. Mallory – cujo cadáver seria de fato encontrado um ano depois – ainda era uma figura semi-folclórica. A imagem do monte como um playground para ricaços estava em processo de construção. Como experiência, a obsessão por escalá-lo despertava mais espanto que sarcasmo, Fosse a montanha uma droga, seu “consumo” era a nóia eufórica de um novo narcótico, não as consequências batidas de um produto há muito recriminado. 

Hoje, depois de dois desastres ainda maiores do que o de 1996, uma greve de sherpas (os guias nepaleses que acompanham as expedições) e denúncias frequentes do dano ambiental causado pela indústria do alpinismo, ninguém precisa de um filme para entender que há algo de errado em nossa relação com as montanhas. Isto funciona para o filme de Imbert, que se permite acompanhar as vidas de Habu e Fukumachi sem a necessidade de emitir juízos. 

Seu longa se passa quase que inteiramente ao ar livre, mas os conflitos que retrata são pessoais e internos. As cenas de escalada são tours de force de suspense, mas elas não têm qualquer pretensão de heroísmo. Pelo contrário, a cinematografia de Imbert parece estimular em nossos corações uma curiosidade sádica, como se a decisão voluntária de escalar uma montanha fosse comparável ao esforço visceral para sobreviver a uma tragédia. “Ele vai ou não sobreviver?” é o que nos perguntamos a cada corda estourada ou pedra fora de lugar. E a resposta, entendemos, depende nem tanto do que enfrentamos por fora, mas também pelo que temos por dentro.  

É um prazer similar ao de assistir à personagem de James Franco serrar seu próprio braço em 127 horas – se é que “prazer” é o nome correto para este sentimento.   

As montanhas são só um caminho 

Como alguém sem disposição para gastar grandes fortunas arriscando a vida em montanhas, a obsessão de Habu me parece tão absurda quanto a ambição de um Jeff Bezos ou Elon Musk de viajar ao espaço. 

Mas encarar o filme de Imbert como uma mera fábula sobre ricos excêntricos é perder de vista o mais importante.  

Nem todas as compulsões humanas envolvem voos ao Nepal e tanques de oxigênio. Entre nós, pessoas comuns, há também aqueles que se colocam na linha do perigo por motivos nem sempre aparentes. Pessoas obcecadas por desafios sexuais, brigas de rua, rachas em avenidas desertas, substâncias nocivas; obcecadas pelo frio na barriga de subir na ponta dos pés à beira de um abismo, sem saber quão fundo cairão se o pior acontecer. 

Ou ainda compulsões menos óbvias, como a que move Fukumachi a reconstruir a história – e os motivos – de Habu. Eventualmente, o fotógrafo é obrigado a admitir que o alpinista é seu próprio Evereste particular: um desafio intransponível, um cume que não parará de tentá-lo com seus segredos até ser desvendado. 

O que move pessoas a essas obsessões? 

“Não sei o que é” responde Habu no filme. “Parei de me perguntar isso quando percebi que não vivia sem escalar.” 

Nós, pessoas, somos obcecadas por sentidos. Não estamos satisfeitos em seguir o curso dos dias e atender nossas vontades primárias. Precisamos sentir que caminhamos para algum lugar, que a vida é mais do que uma série de eventos marcantes pontuados por vales de insignificância. 

Dessa necessidade vem o milenar (e infinito) imperativo para dar um sentido à nossa existência, causar um impacto nos outros, ser lembrado. 

Não para Habu. “Algumas pessoas buscam o sentido da vida.” Ele diz. “Eu não.” 

“Escalar é a única coisa que me faz sentir vivo.” 

“As montanhas são um caminho, não o objetivo”, complementa Fukumachi. 

Sim. Mas um caminho para onde? 

Para uma vida que nos proporcionará o alívio de nunca mais ter de procurar respostas. 

Podemos denunciar esse estilo de vida como uma tentativa maquiada de escapismo. Podemos zombar daqueles, como Habu, que precisam subir acima dos oito mil metros para gozar de uma satisfação que a vida cotidiana já nos proporciona. 

Porém, como uma montanha em toda a sua glória, não podemos ignorá-los. Nem deixar de admitir, ainda que apenas para nós mesmos, no escuro dos nossos pensamentos, que gostaríamos de experimentar, por um instante que fosse, o mundo através de seus olhos.

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