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TV e Cinema – finisgeekis http://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 16 Mar 2022 21:50:27 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32 TV e Cinema – finisgeekis http://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Drive My Car”: para que serve uma adaptação? http://www.finisgeekis.com/2022/03/16/drive-my-car-para-que-serve-uma-adaptacao/ http://www.finisgeekis.com/2022/03/16/drive-my-car-para-que-serve-uma-adaptacao/#respond Wed, 16 Mar 2022 21:41:48 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23121 Adaptações têm uma fama ambígua no mundo do cinema. Se é verdade que livros e filmes flertam um com o outro desde os primórdios da sétima arte, poucas opiniões são mais repetidas que a máxima “o livro é melhor”.

Quando soube que o conto Drive My Car de Haruki Murakami havia sido adaptado ao cinema, contive meu entusiasmo. Embora Murakami seja o escritor japonês mais popular da atualidade, adaptações de suas obras foram, até hoje… menos que ótimas, para dizer o mínimo. Saber que o novo filme possuía quase três horas pouco fez para aliviar minha desconfiança. Roteiristas frequentemente patinam para adaptar romances a uma história deste tamanho. O que seria de um conto de menos de 40 páginas?

Como quem assistiu Drive My Car sabe, a resposta é um primor do cinema japonês contemporâneo.

Mas comentar por que o filme de Ryusuke Hamaguchi conseguiu acertar em cheio é apenas pretexto para uma discussão mais importante: talvez esteja na hora de repensarmos na nossa relação com as adaptações.

Qual é, afinal de contas, o sentido de contar de novo uma história que já foi escrita?

E o que, exatamente, torna uma adaptação ‘bem’ ou ‘mal’ sucedida?

Drive My Car em palavras…

Capa original do livro “Homens sem Mulheres”

Se o filme de Hamaguchi é qualquer indicativo, a primeira escolha começa antes mesmo que as filmagens. Drive My Car, o conto, é um excelente material para adaptações.

Haruki Murakami é conhecido por seu realismo fantástico e por um estilo intuitivo, quase anárquico de escrita. O escritor já afirmou diversas vezes que não é um “contador”, e sim “observador de histórias”: simplesmente registrando as ideias que saem de sua cabeça. Boa sorte para adaptar um livro destes a um roteiro – mais ainda para fazê-lo funcionar em movimento.

Para complicar as coisas, Homens sem Mulheres, coletânea a que Drive My Car pertence, está longe de seu melhor trabalho. Suas histórias, em grande parte, giram em tornos de homens desprezíveis que insistem em atribuir às mulheres a culpa de suas mágoas. Há mais autocomiseração e misoginia em suas páginas que frases bem construídas. Pelo contrário, alguns períodos, como “todas as mulheres nascem com um órgão especial, independente que lhes permite mentir”, nos fazem perguntar o que passou pela cabeça do editor ao publicá-las.

Drive My Car é uma exceção às duas regras. O conto não apenas demonstra um controle da linguagem de que suas obras posteriores parecem ter perdido, como esbanja uma empatia que falta a seus colegas de coletânea. Seu protagonista é, de fato, um “homem sem mulher” – mas quem é essa mulher e o real significado de sua ausência são questões nada óbvias que nos acompanham pelo conto inteiro – e que o final, em aberto, pouco se esforça para elucidar.

O homem em questão é Kafuku, ator veterano de teatro. Sua esposa (Oto no filme, sem nome no conto) é uma companheira perfeita e colega de trabalho, que grava os diálogos de sua peça para que estude no carro enquanto dirige. Ela também o trai. Serialmente. Com múltiplos homens.

Dividido entre a estabilidade conjugal e um acerto de contas que sem dúvida a destruiria, Kafuku opta pela inação. Em tempo, nenhuma outra escolha lhe será possível. Sua esposa morre (de câncer fulminante no conto, de uma doença súbita não declarada no filme). A dúvida, o choque, e os assuntos inacabados corroem o que resta do homem que um dia foi.

Não é difícil simpatizar com Kafuku. Embora seja a personagem ponto de vista, o ator parece viver pelo mote de outra personagem de Murakami, que certa vez disse que “apenas escrotos sentem pena de si mesmos”.  O conto é quase que inteiramente contado do banco de trás de seu Saab 900, em conversas com Misaki, motorista contratada pelo teatro depois que um diagnóstico de glaucoma o impossibilita de dirigir.

É Misaki que, em dado momento, lhe dispara uma Pergunta-Gretchen – “Por que você não tem amigos?” – depois da qual Kafuku se abre como uma rede esgarçada por toneladas de pensamentos vergonhosos.

… e em imagens

E é aqui que as semelhanças do filme com seu material de origem acabam.

Em seu longa, Hamaguchi força Kafuku para fora de seu Saab com a mesma violência da pergunta de Misaki. Sua esposa, antes uma recordação mal digerida, ganha um nome. Flashbacks da traição nos mostram os detalhes que o protagonista do conto reluta até em imaginar.

Enquanto que Murakami apenas nos informa que Kafuku estava ensaiando a peça Tio Vânia de Tchekov, Hamaguchi transforma sua montagem em uma história dentro da história, praticamente nos forçando a enxergar os paralelos entre uma obra e outra.

Em mãos menos habilidosas, a inclusão de toda essa bagagem extra afundaria a história mais rapidamente do que levaríamos para dizer que “o livro era melhor!”.  Mas há duas características do filme de Hamaguchi que o põe em um caminho diferente.

Em primeiro lugar, a despeito de todos os desvios, ambas as obras chegam ao mesmo lugar.

Kafuku, descobrimos no conto, é um homem sem mulheres, no plural. Muito antes de descobrir a traição, seu casamento foi abalado com a morte precoce de sua filha. Murakami nunca soletra o paralelo, mas é possível deduzir que, como Molly e Leopold Bloom de Ulisses, foi a morte da criança que colocou Kafuku e sua esposa em uma crise que apenas os braços de terceiros podia aliviar.

E Misaki, sua motorista, é uma mulher sem homem. Especificamente, uma mulher da idade de sua filha, consternada pela ausência de uma figura paterna. É da aproximação entre os dois, mais do que a traição que sofreu, que o conto verdadeiramente trata.

O filme de Hamaguchi subverte essa prioridade, afogando o relacionamento de Misaki e Kafuku sob o peso de quase três horas de tramas paralelas. Até mesmo o amante de sua esposa (no conto, apenas um de muitos) ganha um holofote para chamar de seu – junto com um arco pessoal que envolve suas ambições como ator e até mesmo um passado criminoso.

Mas Misaki e Kafuku ainda assim se encontram e abrem-se um para outro e percebem que são peças de um mesmo quebra-cabeças, ainda que tão maltratado pelos anos que dificilmente pode ser montado.

“Isso é tudo o que fazemos” disse, certa vez, outra personagem de Murakami, “tomamos infinitamente o caminho mais comprido”. Drive My Car, o filme, vive por esta máxima.

Em segundo lugar, mesmo o conteúdo original de Hamaguchi parece misteriosamente Murakamiano.

A traição de sua esposa, no conto apenas mencionada, ganha no longa uma cena de sexo ao som do Rondó K.485 de Mozart– tocado de um disco de vinil, ainda por cima. Leitores veteranos do autor reconhecerão de pronto o apreço de Murakami por música clássica – e por cenas eróticas (segundo seus críticos) mais tristes que prazerosas de se ler.

Se originalmente uma tomboy nas linhas de Kaoru, a durosa dona de um motel e Após o Anoitecer, a Misaki do filme mais se aproxima de uma contraparte jovem de Reiko, ex-pianista de Norwegian Wood que aconselha o protagonista Toru à luz dos sofrimentos de seu próprio passado.

O longa, de fato, parece quase uma releitura de Norwegian Wood, com jovens universitários com as emoções à flor da pele trocados por adultos de meia-idade. Mesmo as digressões mais originais de Hamaguchi – as cenas e mais cenas sobre o processo de criação de Kafuku, a subtrama sobre uma atriz surda-muda – lembram o enredo livre de seu romance de 1987, que acompanhar suas personagens sem a mordaça de um Kishotenketsu ou uma estrutura em três atos.

É possível imaginar um mundo paralelo em que Muramaki em pessoa tivesse concebido cada um desses detalhes. Provavelmente, enquanto escutava o Rondó K.485. Ou corria pela manhã.

Um ponto de partida… para a própria obra

Nada disso desmerece o trabalho de Hamaguchi e Takamasa Oe, que coassina o roteiro. Pelo contrário, suas escolhas mostram que seu filme possui algo cada vez mais raro no campo do entretenimento. Um propósito.

Hoje em dia, gastamos tanta energia debatendo se uma adaptação é ou não boa que raramente nos perguntamos para que serve uma adaptação.

Qual é o propósito de reescrever uma história que já existe? Para que revisitar conflitos, plot twists e retratos conhecidos de antemão?

Hamaguchi e Oe têm uma resposta: ela é apenas um ponto de partida – não, necessariamente, para novas ideias, ao menos não como um fim em sim, mas para fisgar aquelas escondidas no próprio texto; não para negar ou substituir a obra, mas para torná-la mais a obra que é.

Leiam comigo as últimas linhas do conto:

— Eu vou dormir um pouco – disse Kafuku.

Misaki não respondeu. Ela estudou quietamente a estrada. Kafuku estava grato pelo seu silêncio.

Quando Misaki aparece na última cena do filme de Hamaguchi, ela também estuda quietamente a estrada. Ela não está na companhia de Kafuku, dirigindo-o a mais uma peça. Não está mais sequer no Japão. Hamaguchi não nos explica o que faz na Coreia ou porque dirige o carro que pertencera ao ator.

Mas nós, como ele, somos gratos pelo seu silêncio.

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“Le Sommet des Dieux”: a obsessão humana é sua própria montanha http://www.finisgeekis.com/2021/12/22/le-sommet-des-dieux-a-obsessao-humana-e-sua-propria-montanha/ http://www.finisgeekis.com/2021/12/22/le-sommet-des-dieux-a-obsessao-humana-e-sua-propria-montanha/#respond Wed, 22 Dec 2021 20:39:57 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23079 Eu era criança quando chegou às livrarias No Ar Rarefeito, relato do jornalista Jon Krakauer sobre o desastre do Monte Evereste de 1996.  Graças, entre outras coisas, a um número excessivo de alpinistas pouco treinados, a temporada de escaladas resultou em uma tragédia. Doze pessoas morreram. 

Na época, não tinha idade, nem interesse, para ler o testemunho de Krakauer, um dos sobreviventes da dita temporada. Mas acompanhei os acontecimentos por meio do meu pai, que escolheu o livro do jornalista como leitura de férias e o terminou com a palidez de quem sobrevive a uma avalanche. “Se fosse hoje, eu não o leria” ele me disse anos depois, ainda chocado com seu conteúdo. 

De todos os detalhes horripilantes que compartilhou comigo, o que ficou em minha mente foi o de Beck Weathers, sobrevivente que voltou para casa sem as mãos, pés e nariz. 

A imagem de um alpinista semicongelado, sem nariz, habitou meus pesadelos por semanas à fio. 

Por conta disso, alpinismo sempre me pareceu um esporte mais sinistro que heroico; uma compulsão perigosa mais do que a empreitada romântica de humanos desafiando a natureza. 

É um bom mindset com que encarar Le Sommet des Dieux, animação de Patrick Imbert baseada no mangá de Jiro Taniguchi.

O cume dos deuses

É o tipo de coisa que jamais adivinharia dos trailers, mas Le Sommet des Dieux tem mais em comum com Cidadão Kane que com um filme tradicional de escalada.  

Suas primeiras cenas nos apresentam a Fukumachi, um fotógrafo enviado ao Evereste para cobrir a temporada de alpinismo. Ao escutar que trabalha em uma revista, um sujeito lhe oferece uma câmera antiga. Segundo ele, ela teria pertencido a George Mallory, alpinista britânico que desapareceu na montanha em 1924. 

A relíquia é mais do que uma simples curiosidade. Diz a história oficial que o Evereste foi escalado pela primeira vez por Edmund Hillary e Tenzing Norgay em 1953. Mas e se Mallory, antes de desaparecer, tivesse alçado o cume e fotografado a conquista? Estas fotos, se reveladas, reescreveriam a história do alpinismo. 

Fukumachi se recusa a comprar a câmera, tomando-a por uma fraude. Algo, porém, o faz mudar de ideia. Logo depois de receber sua negativa, o sujeito que a vendeu é confrontado por outro alpinista, que o acusa de lhe ter roubado a máquina. Para a surpresa de Fukumachi, ele é ninguém menos que Habu Jôji, lendário escalador japonês que desapareceu da sociedade anos atrás. 

Fukumachi pede a licença de seu editor para ir atrás de Habu – em teoria, ao menos, para recuperar a câmera de Mallory. Porém, quanto mais retraça os passos do famoso alpinista, mais a ambição de reconstituir a vida deste homem se transforma em um fim em si. 

Habu não é Charles Foster Kane, mas as migalhas de sua vida, examinadas por Fukumachi por meio de reportagens antigas, vídeos e conversas com antigos conhecidos, parecem arrancadas do filme clássico de Orson Welles.  

Ele era genial, mas irascível. Todos que cruzaram seu caminho terminaram mortos, traumatizados ou enfurecidos. “Para Habu, nós éramos apenas um degrau para que ele escalasse montanhas cada vez mais altas”, confessa um ex-parceiro. 

Em um flashback no início do filme, ele abandona uma confraternização entre colegas de seu clube de montanhismo. Do lado de fora, é interpelado por um desconhecido que lhe pede dicas de escalada. Habu atende seu pedido – por horas a fio, sem sequer se preocupar em procurar um assento.  

Somos lembrados da atriz Ayumi Himekawa de Glass no Kamen, que admite que sua rival artística, Maya Kitajima, é a única pessoa no mundo que a entende. 

Le Sommet des Dieux é uma adaptação do mangá Kamigami no Itadaki de Jiro Taniguchi; este, por sua vez, baseado em romance de Baku Yumemakura lançado em 1998.  O Evereste continua onde sempre esteve, mas muita coisa mudou, de lá para cá, em sua imagem popular.

Em 1998, o desastre do Evereste – e a polêmica suscitada pelo livro de Krakauer – ainda estavam frescos na memória. Mallory – cujo cadáver seria de fato encontrado um ano depois – ainda era uma figura semi-folclórica. A imagem do monte como um playground para ricaços estava em processo de construção. Como experiência, a obsessão por escalá-lo despertava mais espanto que sarcasmo, Fosse a montanha uma droga, seu “consumo” era a nóia eufórica de um novo narcótico, não as consequências batidas de um produto há muito recriminado. 

Hoje, depois de dois desastres ainda maiores do que o de 1996, uma greve de sherpas (os guias nepaleses que acompanham as expedições) e denúncias frequentes do dano ambiental causado pela indústria do alpinismo, ninguém precisa de um filme para entender que há algo de errado em nossa relação com as montanhas. Isto funciona para o filme de Imbert, que se permite acompanhar as vidas de Habu e Fukumachi sem a necessidade de emitir juízos. 

Seu longa se passa quase que inteiramente ao ar livre, mas os conflitos que retrata são pessoais e internos. As cenas de escalada são tours de force de suspense, mas elas não têm qualquer pretensão de heroísmo. Pelo contrário, a cinematografia de Imbert parece estimular em nossos corações uma curiosidade sádica, como se a decisão voluntária de escalar uma montanha fosse comparável ao esforço visceral para sobreviver a uma tragédia. “Ele vai ou não sobreviver?” é o que nos perguntamos a cada corda estourada ou pedra fora de lugar. E a resposta, entendemos, depende nem tanto do que enfrentamos por fora, mas também pelo que temos por dentro.  

É um prazer similar ao de assistir à personagem de James Franco serrar seu próprio braço em 127 horas – se é que “prazer” é o nome correto para este sentimento.   

As montanhas são só um caminho 

Como alguém sem disposição para gastar grandes fortunas arriscando a vida em montanhas, a obsessão de Habu me parece tão absurda quanto a ambição de um Jeff Bezos ou Elon Musk de viajar ao espaço. 

Mas encarar o filme de Imbert como uma mera fábula sobre ricos excêntricos é perder de vista o mais importante.  

Nem todas as compulsões humanas envolvem voos ao Nepal e tanques de oxigênio. Entre nós, pessoas comuns, há também aqueles que se colocam na linha do perigo por motivos nem sempre aparentes. Pessoas obcecadas por desafios sexuais, brigas de rua, rachas em avenidas desertas, substâncias nocivas; obcecadas pelo frio na barriga de subir na ponta dos pés à beira de um abismo, sem saber quão fundo cairão se o pior acontecer. 

Ou ainda compulsões menos óbvias, como a que move Fukumachi a reconstruir a história – e os motivos – de Habu. Eventualmente, o fotógrafo é obrigado a admitir que o alpinista é seu próprio Evereste particular: um desafio intransponível, um cume que não parará de tentá-lo com seus segredos até ser desvendado. 

O que move pessoas a essas obsessões? 

“Não sei o que é” responde Habu no filme. “Parei de me perguntar isso quando percebi que não vivia sem escalar.” 

Nós, pessoas, somos obcecadas por sentidos. Não estamos satisfeitos em seguir o curso dos dias e atender nossas vontades primárias. Precisamos sentir que caminhamos para algum lugar, que a vida é mais do que uma série de eventos marcantes pontuados por vales de insignificância. 

Dessa necessidade vem o milenar (e infinito) imperativo para dar um sentido à nossa existência, causar um impacto nos outros, ser lembrado. 

Não para Habu. “Algumas pessoas buscam o sentido da vida.” Ele diz. “Eu não.” 

“Escalar é a única coisa que me faz sentir vivo.” 

“As montanhas são um caminho, não o objetivo”, complementa Fukumachi. 

Sim. Mas um caminho para onde? 

Para uma vida que nos proporcionará o alívio de nunca mais ter de procurar respostas. 

Podemos denunciar esse estilo de vida como uma tentativa maquiada de escapismo. Podemos zombar daqueles, como Habu, que precisam subir acima dos oito mil metros para gozar de uma satisfação que a vida cotidiana já nos proporciona. 

Porém, como uma montanha em toda a sua glória, não podemos ignorá-los. Nem deixar de admitir, ainda que apenas para nós mesmos, no escuro dos nossos pensamentos, que gostaríamos de experimentar, por um instante que fosse, o mundo através de seus olhos.

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“Wolfwalkers”: a história irlandesa rebaixada à fórmula Disney http://www.finisgeekis.com/2020/12/17/wolfwalkers-a-historia-irlandesa-rebaixada-a-formula-disney/ http://www.finisgeekis.com/2020/12/17/wolfwalkers-a-historia-irlandesa-rebaixada-a-formula-disney/#comments Thu, 17 Dec 2020 18:21:58 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22479 AVISO: Contém SPOILERS para Wolfwalkers

O que seria de O Túmulo dos Vagalumes se o bombardeio de Kobe não acontecesse e Seita, Setsuko e sua mãe vivessem feliz para sempre?

Ou de Nesse Canto do Mundo  se a bomba nunca caísse em Hiroshima e EUA e Japão fizessem as pazes graças ao poder da amizade?

As personagens desses filmes sem dúvida não reclamariam. Porém, você estaria perdoado de achar que seus diretores perderam completamente o juízo.

Essas histórias, afinal de contas, só foram contadas porque os sofrimentos que retratam aconteceram de verdade. Todo o seu propósito – e a sua beleza – está em despertar a empatia das novas gerações e impedir que estas atrocidades sejam esquecidas.

Museu da Paz em Hiroshima

Quando um diretor decide falar sobre um tema desses, o mínimo que se espera é que esteja disposto a levar essa bagagem em consideração.

Infelizmente, é justamente o oposto que faz Wolfwalkers, novo filme dos criadores de O Segredo de Kells.

Correndo com os lobos

O novo filme do diretor Tomm Moore conta a história de Robyn, filha do caçador Bill Goodfellowe. Ingleses de nascença, Robyn e seu pai são convocados à Irlanda para prestar um serviço ao governo: exterminar os lobos que apavoram a cidade de Kilkenny, recém-tomada dos irlandeses.

A tarefa, Robyn descobre, não é tão simples quanto parece. Durante uma incursão na floresta, Robyn é acidentalmente mordida por um lobo. O animal se transforma em uma garota chamada Mebh (pronuncia-se “Mêive”), que lhe revela ser uma wolfwalker, membro de uma casta de humanos capazes de assumir a forma de lobos.

Ao mordê-la, ainda que sem querer, Mebh inadvertidamente transformou Robyn em uma wolfwalker ela própria. Com seus novos poderes, veio também um novo entendimento do mundo dos animais – e do ônus, invisível à maioria dos humanos, que a civilização impõe à natureza.

Robyn retorna à companhia dos humanos, não mais focada em ajudá-los a exterminar os lobos, e sim em convencê-los de que pessoas e animais podem viver em harmonia.

É um enredo simples, singelo e não particularmente original, do tipo que consegue, sem muito esforço, tirar um sorriso dos espectadores mais sisudos.

O problema é esse filme vem de não outro que Tomm Moore, co-fundador do estúdio Cartoon Saloon. Tal como em seus longas anteriores O Segredo de Kells (ambientado na Irlanda do século VIII) e A Ganha-Pão (ambientado no Afeganistão de 2001), o diretor irlandês decidiu dar a sua fábula uma roupagem época.

Especificamente, uma época que nada teve de simples ou singela.

Para Connacht ou para o Inferno!

A execução de Carlos I, 1649

O filme se passa em 1650, durante a Guerra Civil Inglesa. Tensões entre o rei Carlos I e seu parlamento, motivadas em parte por diferenças religiosas, levaram a uma rebelião nacional liderada pelo estadista Oliver Cromwell.

Descontentes com décadas de perseguição religiosa, os católicos da Irlanda – então uma colônia inglesa – aproveitaram a deixa para se rebelar contra seus líderes protestantes.

O resultado foi um conflito conhecido como as Guerras Confederadas da Irlanda. A carnificina chegou a tal ponto que Cromwell em pessoa precisou invadir a ilha e trazê-la de volta à ordem. Até hoje, esta guerra é lembrada como o embate mais sangrento, devastador e traumático da história irlandesa.

Bebês massacrados por rebeldes irlandeses. Uma das muitas atrocidades (muitas vezes, falsamente) atribuídas a combatentes nas Guerras Confederadas

Seria injustiça dizer que Wolfwalkers não leva sua bagagem histórica a sério. O filme se passa na cidade de Kilkenny, capital dos confederados irlandeses, no exato ano em que se rendeu às tropas inglesas.

Cromwell em pessoa está presente no filme como seu principal antagonista. O enredo captura bem o terror de se viver em uma zona de guerra, tanto para os irlandeses (ocupados por um exército invasor) quanto para os próprios ingleses (que, com um estalo de dedos, podiam ser enviados ao front para lutar).

Oliver Cromwell, lorde protetor da Inglaterra, e sua versão em Wolfwalkers

Ingleses em uma cidade irlandesa, Robyn e seu pai sofrem desde o princípio com a desconfiança da população local. Robyn sofre bullying constante de garotos da cidade. Irlandeses, por sua vez, terminam no pelourinho a troco de qualquer ofensa contra seus mestres ingleses.

Por incrível que apreça, até mesmo o plano maquiavélico de seu vilão – extinguir os lobos e queimar as florestas – tem um fundo histórico. Décadas antes dos eventos do filme, outro político inglês, Sir John Davies,  havia escrito que “Um país bárbaro deveria ser quebrado por uma guerra” que nem a “terra deve ser quebrada e adubada” para que “não se torne selvagem de novo”.

“Quebrar” a terra da Irlanda foi justamente o que Cromwell fez – de uma maneira terrivelmente eficaz. O desastre provocado pelass Guerras Confederadas não foi apenas humanitário. Foi também uma calamidade ecológica.

É aqui que o filme de Moore parece ter colocado areia demais em seu caminhão.

Acontece que, historicamente, o lorde protetor venceu. E fez questão de garantir que os irlandeses jamais se esquecessem disto.

As florestas da Irlanda foram completamente arrasadas. Segundo Eileen McCracken, a cobertura florestal da Irlanda caiu de 12,5% no final do século XVI para apenas 2% em 1800. Nem mesmo a ajuda de Mebh teria mudado esse quadro, pois os lobos foram caçados à extinção.

Entre a população irlandesa, as consequências foram igualmente severas. Um quarto de toda a Irlanda foi morta, a maioria de fome ou doenças espalhadas pelos soldados. Cidades inteiras, como Drogheda, foram deliberadamente massacradas pelo Exército Novo do lorde protetor.

Civis massacrados na cidade de Drogheda, 1649

Cromwell não parou por aí. Para remunerar seus soldados – e punir ainda mais os irlandeses – o lorde protetor ordenou que católicos tivessem suas terras confiscadas e fossem transplantados para as regiões mais pobres da Irlanda. A medida ganhou um slogan: “Para Connacht ou para o inferno”, referência à província irlandesa que recebeu a maioria dos remanejados.

Essas medidas criaram um fosso social gigantesco entre a maioria católica e a elite protestante que os séculos seguintes só agravaram. Esta desigualdade foi uma das principais causas da Grande Fome da Irlanda, que tolheu a vida de cerca de um milhão de pessoas, a maioria católicos.

O estrago de Cromwell foi tão grande que ele ainda era evocado no final do século XX, quando o ódio entre católicos e protestantes descambou para o terrorismo aberto.

Mural protestante celebrando a truculência de Cromwell contra católicos, Irlanda do Norte

Meses atrás, quando soube que Wolfwalkers seria ambientado nessa época, fiquei extasiado.

Depois de tanto silêncio, essa história finalmente viria à tona. A Irlanda finalmente ganharia um Túmulo dos Vagalumes para chamar de seu: uma fábula que trouxesse esse período sombrio para os holofotes do cinema mundial.

Infelizmente, Moore decidiu seguir pelo caminho de menor resistência e fingir que essa tragédia nunca aconteceu. Seu longa termina com Cromwell caindo num poço sem fundo, as florestas de Kilkenny salvas por uma chuva mágica, o pai de Robyn casando-se com a mãe de Mebh e todos vivendo felizes para sempre.

Esse final torna o filme não apenas escandaloso de um ponto de vista histórico, mas também imperdoavelmente banal. Em vez de beber da tradição literária irlandesa – que tão bem lhe serviu em O Segredo de Kells – Moore adota a mesmice blockbuster da Disney-Pixar, segundo a qual nenhum desafio é grande demais que não possa ser resolvido por um Let it Go.

Longe de honrar as trágedias das Guerras Confederadas, Moore as transformou em perfumaria. Se Wolfwakers diz alguma coisa, é uma mensagem que poderia vir de qualquer um, em qualquer filme, sobre qualquer coisa.

O eterno cabo de guerra

Princesa Mononoke, outro filme sobre lobas mágicas e tragédias ecológicas, pisou em cascas de ovos parecidas sem oferecer respostas fáceis.

Sua Cromwell – Eboshi – é uma industrialista predatória, mas também uma revolucionária. As balas que amaldiçoam os javalis da floresta – e que podem trazer abaixo todo o equilíbrio natural – são as mesmas com que protege mulheres e leprosos da violência dos samurais.

Seu Robyn – Ashitaka – percebe isto. Por esta razão, decide se estabelecer entre os mineradores em em vez de correr com os lobos. Sua Mebh – San – é lúcida o suficiente para entender que nenhum dos dois mudará seu caminho, não importa quantas mordidas recebam.

Nenhum dos três termina o filme da forma como desejavam no começo. Tampouco eles compram a ilusão de que podem viver bem graça ao poder da amizade.

Os propósitos de Eboshi e San são incompatíveis, tal como o são aqueles de todos os seres humanos, condenados a um eterno cabo de guerra entre natureza e cultura, passado e futuro. O máximo a que podemos aspirar é uma coexistência aflita, sem garantias de uma paz duradoura.

As personagens de Wolfwakers se encontram em um mesmo cabo de guerra. Infelizmente, o otimismo simplório de sua história a reduz a um Pocahontas de baixo orçamento; anódino na pior das hipóteses, revoltante na pior.

Seus truques visuais e canções contagiantes provavelmente agradarão a crianças bem pequenas. Adultos, que já sofreram um novo Pocahontas em Avatar – e sofrerão um vomitório de sequels suas nos anos vindouros – tem opções melhores com que gastar seu tempo.

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São Patrício e a cultura pop http://www.finisgeekis.com/2019/03/19/sao-patricio-e-a-cultura-pop/ http://www.finisgeekis.com/2019/03/19/sao-patricio-e-a-cultura-pop/#respond Tue, 19 Mar 2019 21:52:13 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=21692 O Dia de São Patrício não é um festival muito popular entre brasileiros. Se você for um fã da cultura irlandesa, porém, já deve ter ouvido desta desculpa para vestir-se de verde e virar alguns pints de Guinness.

Talvez mais do que alguns.

Realizada no dia 17 de março, a festa homenageia o missionário que converteu a Irlanda ao cristianismo. Com o passar dos séculos, ela perdeu as conotações religiosas, tornando-se uma celebração da cultura irlandesa com um todo.

E uma desculpa para beber cerveja.

Para quem está acostumado com esse carnaval fora de época (ou com o santo sisudo que lhe serve de inspiração), a imagem que abre esse artigo deve parecer estranha.

Não devia. São Patrício, afinal, é muito mais que uma figura histórica ou (pior) um simples ícone da Igreja. Para o bem e para o mal, o missionário de roupas verdes é um símbolo da Irlanda que já inspirou livros, músicas e até batalhões de soldados.

“San Patrícios”, desertores irlandeses que lutaram ao lado dos mexicanos durante a Guerra Mexicano-Americana. Fonte.

Não era de se espantar, portanto, que ele (ou suas façanhas) ganhassem um pé na cultura pop. A imagem da capa, da autoria de Jim FitzPatrick (autor da famosa arte do Che Guevara) é apenas uma das muitas homenagens modernas à era lendária de Patrício e seus sucessores.

Com o último St Patrick’s Day fresco na memória, essa é uma oportunidade perfeita para relembrar algumas delas.

O algoz de Crom Cruach

São Patrício expulsando as serpentes por JimFitzPatrick

A Patrício é atribuído o milagre de ter expulsado as cobras da Irlanda. Incluindo Crom Cruach, um Deus ou demônio ou aparição em forma de serpente que (supostamente) era adorado pelos antigos pagãos.

Se você é um fã de animação esse nome talvez lhe soe familiar. De fato, o arqui-inimigo de Patrício é o vilão principal de O Segredo de Kells, animação do estúdio irlandês Cartoon Saloon indicada ao Oscar em 2009.

 

O longa é uma fantasia sobre a criação do Livro de Kells, uma cópia dos evangelhos tida por muitos como o livro mais belo da Idade Média.

Seu protagonista é Brendan, um jovem noviço que se vê, ao lado de um grupo de monges, na tarefa de escrever o tomo. E protegê-lo de saqueadores vikings que ameaçam passar a Irlanda inteira ao ferro e ao fogo.

Tudo isso às sombras de Crom Cruach, um demônio ancestral de quem deve obter um artefato vital para o término do livro.

Brendan não é Patrício, mas sua luta contra seu velho algoz (uma alegoria clara à serpente da Bíblia) bebe da mesma fonte que transformou o padroeiro num ícone nacional.

Sua missão maior, terminar “o livro que transforma a escuridão em luz”, não poderia contribuir mais à imagem do missionário como um pioneiro destemido, desbravando perigos indizíveis para trazer a salvação aos homens.

 

 

O Escravo, O Mensageiro

Se O Segredo de Kells toca apenas de leve na figura de Patrício, não é o caso de outras obras de Tomm Moore, co-fundador do Cartoon Saloon.

Anos antes de ganhar as telas, o ilustrador trabalhou com o escritor Colmán Ó Raghallaigh para trazer a lenda do santo aos dias de hoje.

O resultado foram duas graphic novels, que juntas esmiúçam a lenda fascinante do padroeiro da Irlanda. An Sclábhaí (“O Escravo”) como como Patrício, um pagão da Britânia romana, é capturado e vendido por piratas irlandesas. Seis anos de cativeiro o aproximam da fé cristã – e da coragem para fugir de volta à casa.

Em An Teachtaire (“O Mensageiro”) ele retorna aos braços de seus captores, armado com a convicção de um pioneiro e o peso de todo o reino dos céus. Nas páginas de Moore e Ó Raghallaigh, a conversão da Irlanda se torna quase um conto de vingança, em que druidas e reis gaélicos se defrontarão com um escravo e sua missão divina.

Infelizmente, as HQs só foram publicadas em irlandês (embora sua editora, a Cló Mhaigh Eo, tenha disponibilizado uma tradução de seu roteiro).

Por sorte (e como era de se esperar), também em inglês escrevem os quadrinistas da Ilha Esmeralda.

A Estrada do Pântano

The Bog Road (“A Estrada do Pântano”) escrita ano passado por Barry Keegan, é a HQ sobre uma Irlanda desencantada que nunca soubemos precisar.

Como O Segredo de Kells, a HQ não foca diretamente em Patrício. Ele é, porém, o estopim do conflito que se desenrola nas páginas da trama:

A derrota dos Antigos Deuses.

Moradores de uma cidade no interior da Irlanda descobrem que uma antiga criatura vive em seus poços de turfa. Quando uma estrada é construída sobre o pântano – e motoristas começam a tombar mortos – o medo se transforma em guerra aberta.

Para nossa (nem tão grande) surpresa, a criatura não é o herói de uma fábula ecológica, e sim Na Sliogán, uma das antigas deusas da Irlanda pré-cristã.

De seu conflito com os moradores se desenrola um pequeno panteão de divindades esquecidas, batalhando para sobreviver em um mundo que não mais as venera.

A HQ, que já foi comparada aos trabalhos de Neil Gaiman, é ao mesmo tempo familiar e inusitado. Keegan evita rostos conhecidos, trazendo à vida criaturas do folclore local em vez de deuses celebrados da mitologia celta.

Nada mais justo para retratar a Irlanda que o próprio Patrício deve ter conhecido. Não uma ilha regida por uma religião homogênea e unificada, e sim por uma variedade de deuses locais, associados a rios, montanhas e, é claro, pântanos.

De São Patrício ao St. Patrick’s Day.

São Patrício na St. Patrick Day’s parade

Tudo diz respeito a São Patrício, ou à Irlanda meio histórica, meio fictícia em que ele fez sua fama.

Mas e sobre o St. Patrick’s Day? O carnaval da Ilha Esmeralda, que enlouquece turistas na mesma medida em que faz irlandeses barricarem suas casas?

Curiosamente, quem melhor o trouxe à ficção foi ninguém menos que um escritor brasileiro.

Diga a Satã que o Recado foi Entendido de Daniel Pellizzari retrata o caos de uma Dublin boêmia de maneira a dar inveja até a seus pubs.

Seu protagonista é Magnus Factor, golpista que lucra sobre turistas na capital irlandesa. Sócio de uma empresa que oferece passeios guiados, Magnus se especializa em criar roteiros inventados. Nenhuma das pessoas, edifícios ou eventos mencionados em seus tours existem de verdade.

Ao longo de uma narrativa rápida e endiabrada (com o perdão do trocadilho), Factor trombará com o crime organizado, uma cabala de estudantes iconoclastas e até mesmo uma seita que pretende ressuscitar Crom Cruach, o velho algoz de São Patrício.

O romance faz parte do projeto Amores Expressos, iniciativa que enviou escritores brasileiros a cidades ao redor do mundo para escreverem um livro quando retornassem.

Isto fica evidente no texto, que em momento algum esconde seu sotaque estrangeiro. Pellizzari, de fato, escreve como um perfeito estrangeiro, gabaritando paradas turísticas como o Trinity College, Glendalough e a Península de Howth.

Justamente por isso, ele é um retrato cirúrgico, cruel e irreverente de uma Dublin assediada por viajantes. Seu livro é uma descrição perfeita da capital irlandesa na alta temporada, dividida entre uma cultura gaélica reduzida a souvenirs e turbas de beberrões que falam todas as línguas – menos, às vezes, o inglês.

Temple Bar, no coração de Dublin, durante o St Patrick’s Day

Pellizzari diz ter se surpreendido com o número estrangeiros em Dublin, impressão que o bairro do Temple Bar, coração do St. Patrick’s dublinense, não falha em passar.

Navegando por suas ruelas numa noite de euforia, é impossível não se lembrar dos personagens de Pellizzari, reféns, como diz um crítico, de uma “desorientação geral”.

Mentira. Desorientados eles podem estar, mas saber muito bem para onde ir: o balcão do pub mais próximo.

Faça uma homenagem você também e dedique uma cerveja à memória do santo. Patrício agradece.

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“Magical Girl”: quando garotas mágicas ganham o live-action http://www.finisgeekis.com/2018/05/14/magical-girl-quando-garotas-magicas-ganham-o-live-action/ http://www.finisgeekis.com/2018/05/14/magical-girl-quando-garotas-magicas-ganham-o-live-action/#respond Tue, 15 May 2018 00:34:09 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20170  

Madoka foi inspirado em Fausto. Ozamu Tezuka adaptou Crime e Castigo aos mangás. Miyazaki citou Paul Valéry em Vidas ao Vento. Digimon fez homenagem a H.P. Lovecraft.

Referências a obras ocidentais não são raras nos animes e mangás. Mais incomum é topar com séries que façam o percurso oposto.

É o caso de Magical Girl, longa espanhol de Carlos Vermut, que trouxe o gênero mahou shoujo – em especial, sua encarnação dark –  às telas de cinema.

Em tempos em que o subgênero parece sucumbir ao seu próprio peso, é interessante descobrir o que foi feito das garotas mágicas transpostas ao realismo do live-action. 

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O filme foi lançado em 2014, mas você está perdoado se a estreia lhe passou batido. Magical Girl é um filme diminuto mesmo para os padrões europeus, de um gênero que fãs de anime não necessariamente acompanham. Que seu diretor tenha escolhido um thriller psicológico e não fantasia para contar sua história é prova da ousadia – e estranheza – do longa.

Sua trama acompanha Luís, pai de Alícia, uma garota com câncer terminal. Prestes a morrer, ela faz um último desejo: comprar um cosplay oficial de Magical Girl Yukiko, sua personagem favorita.

Tal como nos animes, porém, as coisas não são tão simples quanto parecem. Alícia não quer uma fantasia qualquer, mas uma versão especial feita sob medida para uma idol. Apenas uma unidade foi produzida, e o preço está acima do que Luís, professor desempregado, é capaz de pagar.

O destino o apresenta à Bárbara, mulher que sofre de problemas psiquiátricos. E um ato carnal precipitado (que leitores de Shuuzou Oshimi acharão dolorosamente familiar) o coloca em uma posição de chantageá-la.

Desesperado para satisfazer o último desejo de sua filha, Luís lhe exige dinheiro sob ameaça de destruir seu casamento. Bárbara, no entanto, possui seus próprios demônios, e na tentativa de pagar sua alforria se envolve em um espiral descendente de loucura, perversões e dívidas pessoais.

O tributo às mahou shoujo é evidente em sua bagagem visual, que pulula de referências a garotas mágicas com pinceladas de ironia e humor negro. A vodka que Bárbara bebe para tentar se suicidar com comprimidos chama-se Sailor Moon. E o vestido que Alícia tanto cobiça é um traje que fãs do gênero conhecem muito bem.

Não espere, porém, o sadismo visual de um  Mahou Shoujo Site. Magical Girl é um filme asséptico como um piso de hospital, contado por palavras não ditas, silêncios pronunciados e cenários claustrofóbicos de tão limpos.

Vermut é um expoente do cinema low cost, e é fascinante como suas táticas para enxugar a produção aproximam sua linguagem a dos animes – outra arte que aprendeu a fazer milagres com pouco recursos.

Suas tomadas estáticas, em especial, lembram não poucas cenas de anime, paralelo que seus diálogos prolongados salienta ainda mais.

  

Mesmo seu enredo parece despido de qualquer bagagem extra – incluindo a verossimilhança. O conflito que une a trama, e as ações desconcertantes de suas personagens, são implausíveis a ponto de parecerem parábolas.

Veja por exemplo Luís, que o filme nos introduz discutindo com um vendedor de sebo. A loja compra livros “por quilo”, sem discriminar o conteúdo. Luís se recusa a aceitar que Camilo José Cela, vencedor do Nobel, valha o mesmo que um manual de bricolagem. Por uma pilha de livros, recebe 5 euros. O cosplay de Magical Girl Yukiko custa 7 mil.

Luís volta ao sebo mais tarde no filme. Movido pelo desespero, vende toda a sua biblioteca. Os livros não valem nada, como nós sabemos muito bem.

Ele também sabe, mas sua questão é outra. Ex-professor de literatura, sua biblioteca é seu maior patrimônio. E ele não pode deixar a filha morrer sem saber que abriu mão do que lhe era mais valioso.

Ou veja então Alícia, que ao receber seu vestido, após tanto esforço, olha para a caixa desanimada. Procura atrás do sofá por um segundo presente. Finge um sorriso amarelo.

Seu pai não entende por que ela, que tanto quis o vestido, se recusa a vesti-lo. Mas nós, fãs de mahou shoujo, entendemos. O poder de uma garota mágica não vem de seu vestido, mas de seu báculo. E o báculo de Yukiko, recoberto de brilhantes, custa outros 20 mil euros.

O filme está cheio de referências a mitos modernos, de Alícia (Alice) e seu pai Luís (Lewis Carroll) a Oliver Zoco (Oz), que leva Bárbara a um mundo paralelo de onde não haverá retorno.

Vermut disse em entrevista que sua ideia era fazer um conto de fadas, com Alícia com princesa e Bárbara como madrasta. Tal como a rainha má de Branca de Neve, Bárbara também pede auxílio a um espelho mágico. Para sua infelicidade, ele se recusou a respondê-la.

Essas não são pessoas normais, mas almas torturadas com um vazio espiritual. É a angústia que encontramos nas páginas de Dostoiévski: na paranoia do narrador de Memórias do Subsolo ou no crime “justo” (e tragicamente executado) de Raskolnikov em Crime e Castigo.

Infelizmente, o estilo de Magical Girl às vezes atropela seu conteúdo. Veja Damián, ex-professor de Bárbara nos tempos de colégio, para quem ela pede ajuda quando tudo parece dar errado.

Nós sabemos que ele foi preso por protegê-la, que a estima tal qual uma filha e que morre de medo de revê-la. Como a personagem de Clint Eastwood em  Menina de Ouro, está disposto a fazer o sacrifício final se isso trouxer à protegida algum alívio.

Qual teria sido seu crime? O que Bárbara teve a ver com isso? Por que tem medo de revê-la, a ponto de implorar a sua agente penitenciária que o deixasse ficar preso mais um pouco?

São respostas que o filme não nos dá e logo entendemos que não nos dará. Em uma de suas primeiras cenas, nós o vemos completando um quebra-cabeça até se tocar de que falta uma peça. Não é o roteiro que está furado: é sua própria vida. Algumas pessoas são incompletas, e devemos aceitá-las assim.

É uma metáfora óbvia demais para seu próprio bem e importante demais para o que está em jogo.

Vermut citou Twin Peaks como um exemplo de série que se comunica bem sem precisar se explicar. É um paralelo pertinente, mas também infeliz. Sim, David Lynch também é um artista do silêncio. Mas há silêncios que dizem pouco. E aqueles que falam por si só.

Imagem relacionada

Club Silencio em Mulholland Drive , de David Lynch.

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Afinal, qual é a graça de séries sobre comida? http://www.finisgeekis.com/2017/07/25/afinal-qual-e-a-graca-de-series-sobre-comida/ http://www.finisgeekis.com/2017/07/25/afinal-qual-e-a-graca-de-series-sobre-comida/#comments Tue, 25 Jul 2017 13:10:08 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17563

Um jovem e um velho estão sentados num balcão. A comida que pediram, duas tigelas de lamen, acaba de chegar.

Sensei” pergunta o jovem “O que se come primeiro? O caldo ou o macarrão? ”

“Primeiro” responde o velho “Nós observamos. Pegue o hashi e acaricie a superfície. Admire o brilho da gordura, as raízes de menma, a alga que afunda lentamente. Concentre-se nas três fatias de tyashu. E então…”

“Nós comemos?”

“Não. Nós pedimos desculpas ao porco”. Ele se aproxima tyashu e sussurra “Nós nos veremos em breve”.

Poderia ser um esquete de Isekai Shokudou, o anime gastronômico da temporada. Mas é uma cena de Tampopo, filme de 1985 e um dos clássicos do cinema japonês.

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Começo mencionando essa cena porque, se não a tivesse assistido, não entenderia nada da última tendência que venho observando em séries japonesas.

Falo, aqui, de séries sobre comida. Não sobre culinária, ingredientes exóticos ou duelos gastronômicos com pratos que deixam as pessoas nuas. Sobre o simples ato de comer.

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Afinal, qual seria o ponto de um anime que se resume a personagens de RPG curtindo a hora do almoço? Em especial quando os pratos não são maravilhas da haute cuisine, mas o PF nosso de cada dia?

Onde termina a ficção e começa o food porn?

Aparentemente, na audiência. Dois desses mangás, afinal, não só foram adaptados ao live action, como ganharam espaço na grade da Netflix.

Assistir aos outros comendo parece ser tão popular na Terra do Sol Nascente que foi o entretenimento que escolherem para exportar ao mundo.

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Gourmet mangá

Pode parecer sarcasmo, mas não é. No Japão, mangás sobre comida são tão bem estabelecidos que já conquistaram um gênero próprio

Não falo de Shokugeki no Souma, que usa a gastronomia como mera roupagem para um shounen de esporte. Nem de tantos slice of life cujas personagens cozinham ou trabalham em padarias.

Chamados de gourmet manga ou ryori manga, são histórias cujo foco não está no ato de cozinhar, mas no simples prazer da refeição.

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Não existe ação ou reviravoltas – em alguns casos, nem mesmo um enredo. Kodoku no Gourmet, referência do gênero, nos traz a “emocionante” história de um funcionário de escritório desbravando o almoço de cada dia.

Alguns, nem mesmo isso. Ekiben Hitoritabique o ANN desenterrou do arco da velha, é uma propaganda gratuita para bentôs de estação de trem. Que se estendeu por 15 tankobons

ekiben

Isso sim é publicidade

Como que um gênero como esse pode fazer tanto sucesso? E como essas histórias, muitas vezes, acabam sendo legitimamente cativantes?

É o que eu me aventurei a descobrir.

Tóquio, a capital da gastronomia

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O Japão pode ser conhecido como a “terra do peixe cru”, mas sua culinária há muito já superou o bairrismo. Apenas Tóquio possui 304 estrelas do Guia Michelin, a publicação mais respeitada do ramo.

Isso é mais que o dobro de Paris (134) e o triplo de Nova York (99). Outras grandes cidades japonesas, como Kyoto e Osaka, também estão no top 10.

Se entrarmos na cozinha do dia a dia, não há sequer comparação. Em São Paulo, existem cerca de 111 restaurantes para cada 100 mil habitantes. Em Tóquio, são 1122, dez vezes mais.

Shokugeki no Souma não mentiu. O Japão é, sem sombra de dúvida, a capital mundial da gastronomia.

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É de se esperar que um país com essa aptidão fosse projetar seu entusiasmo na cultura.

De fato, como lembra a revista Hashitag, os gourmet mangás se tornaram um apêndice importante da indústria gastronômica nipônica. A influência das séries é tamanha que chegou a influenciar o mercado culinário, ditando tendências e popularizando ingredientes.

Não é de se espantar. Afinal de contas, não há nada melhor para atiçar o apetite do que ver um bife marmorizado na nossa leitura de cada dia.

Porém, isso não responde tudo.

A “Década Perdida”

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Os gourmet mangás, afinal de contas, não acompanham qualquer tipo de comida – nem qualquer tipo de comedor. Ao contrário do que o título indica, seus “heróis” não estão interessados em gastronomia fina, mas na comida do dia-a-dia.

Para Jason Thompson do ANN, isso tem a ver com a chamada Década Perdida, um período de recessão econômica que sacudiu o Japão nos anos 1990.

Em 1991, o estouro de uma bolha imobiliária encerrou o período de vagas gordas que o país curtiu no pós-guerra. Em 1995, com o Terremoto de Kobe e o Atentado ao Metrô de Tóquio, pairou sobre o Japão uma nuvem ainda mais densa de pessimismo, com forte influência para a cultura e os animes.

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Os gourmet mangás, para Thompson, foram um fruto dessa nuvem. Eles são uma ode ao “copo meio cheio”: um lembrete às pessoas de que, por mais duro que seja abandonar os luxos, é possível encontrar felicidades nas pequenas coisas.

Nobushi no Gourmet, lançado internacionalmente como Samurai Gourmet, encapsula perfeitamente essa mentalidade. Sua trama acompanha um ex-funcionário que descobre que sua vida não faz sentido.

Aos 60 anos, forçado a se aposentar, constata que seu mundo era o escritório. Impossibilitado de trabalhar, sente-se como um samurai sem mestre, à espera do seppuku.

Felizmente, é na macheza do próprio ronin que ele encontra sua redenção. Espécie de Walter White nipônico e bom caráter, o protagonista emula a fanfarronice do guerreiro para voltar a se respeitar como homem: comendo sem pressa, bebendo à vontade, repetindo sem remorso.

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A mensagem não poderia ser mais clara. Samurai Gourmet é um retrato perfeito da ética de trabalho japonesa – sintoma de um país, como diz meu amigo Fábio do Anime21, em que é esperado que pessoas vivam para trabalhar, e não trabalhem para viver.

Mas seria apenas isso? Eu acho que não.

A gula é eterna

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Por mais que goste do argumento de Thompson, ele não me convence 100%.

Ele não explica Tampopo, lançado em 1985, muito antes da crise, quando o Japão ainda era visto como a próxima nova potência. Nem Oishinbo, primeiro grande sucesso do gênero, em publicação desde 1983. De fato, como bem mostra a Hashitag, os gourmet mangás remontam aos anos 1970.

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Oshinbo, primeiro gourmet mangá de sucesso

Tampopo, aliás, talvez traga uma pista para o mistério.

O filme é uma série de esquetes cômicas, com níveis exponenciais de absurdo, sobre um caminhoneiro que busca salvar um restaurante decadente.

Há uma professora de etiqueta, que tenta a duras custas ensinar seus alunos a comer macarrão em silêncio (no Japão, fazer barulho é sinal de educação). Há um mendigo que pede esmola na rua dos restaurantes chiques, e de tanto beber restos de vinho que os clientes jogam fora, tornou-se um sommelier nato. Há uma mãe moribunda que, no lugar do último suspiro, faz um último yakimeshi para sua família.

 

Tampopo poster

O que os esquetes têm em comum é um tributo à comida, e a seu papel central nas relações humanas.

É o espírito de Shinya Shokudou, talvez o ryouri mangá que melhor se internacionalizou. A série foca no dono de um boteco da madrugada e suas relações com seus clientes: yakuza, prostitutas, atores pornôs, excêntricos em geral.

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Seus comensais podem não ter chifres ou escamas como os seres de Isekai Shokudou, mas também são de outro mundo, à sua própria maneira. Estas são pessoas que, por pressões sociais ou decisões de vida, acabaram relegadas à marginalidade, condenadas à noite.

Tal como Aletta, a garçonete-demônio de Isekai, eles são párias, salvos do ostracismo pela beleza da gastronomia.

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Na vida cotidiana, comer se tornou uma obrigação. Engolimos tudo o mais rápido possível. Fast food e congelados são o combustível que nos mantém vivos.

Não estou julgando, só citando os fatos. Quem, afinal, tem tempo para filetar um peixe?

Opõe-se a esse paradigma os ativistas do slow food. Inspirados pela culinária italiana e espanhola, pregam a refeição como um ritual, uma forma de agregar as pessoas e unir gerações.

É a criação que eu recebi da minha vó calabresa, e razão pela qual não abro mão de meus almoços com a família.

Os gourmet mangás parecem advogar uma terceira via. A refeição rápida, porém digna. A comida simples (e nem tão saudável), mas degustada com paixão. O ritual solitário.

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É uma mentalidade, quiçá, tão japonesa quanto uma tigela de lamen. Porém, que toca em algo tão elementar que cumpre a função última da arte: transformar o específico em universal.

Não é preciso saber o que é um naruto ou um tonkatsu para simpatizar com um sorriso de saciedade. Cardápios vêm e vão; a gula é eterna.

 

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Seleção Finisgeekis: os destaques do Oscar 2017 http://www.finisgeekis.com/2017/02/26/selecao-finisgeekis-os-destaques-do-oscar-2017/ http://www.finisgeekis.com/2017/02/26/selecao-finisgeekis-os-destaques-do-oscar-2017/#respond Sun, 26 Feb 2017 13:16:44 +0000 http://finisgeekis.com/?p=15420

Sejamos sinceros, o Oscar é um exercício em masoquismo.

Seus critérios são ditados pela política. A cerimônia dura quatro horas e nos segura até a madrugada. O prêmio ganhou o status de “premiação máxima do cinema” à revelia de Cannes, Veneza, Berlim e tantos outros festivais importantes.

Mesmo assim, ano após ano me flagro conferindo sua lista de indicados – e constatando que, a pesar dos pesares, há muita coisa boa sendo feita.

2016 não foi uma exceção. Embora não ache que nenhum desses filmes levará muitas estatuetas, trago abaixo uma lista dos filmes que, por um motivo ou por outro, merecem a atenção:

A Chegada

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Adaptação do conto História da Sua Vida do badalado Ted Chiang, o longa é uma das melhores ficções científicas de memória recente – talvez a melhor desde Interestelar (2014).

Sua trama acompanha Louise Banks, uma linguista contratada pelo exército americano para se comunicar com alienígenas que chegaram misteriosamente ao nosso planeta. Em um cenário de tensão política, Banks precisa descobrir como se comunicar com os visitantes antes que o primeiro contato se torne o estopim para uma guerra mundial.

Intimista, profundo e bem feito ao exagero, o filme é um prato cheio para fãs de sci fi cerebrais.

Manchester à Beira-Mar

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Um faz-tudo de Boston recebe a notícia de que seu irmão morreu, deixando para trás um filho adolescente. Forçado a retornar para sua cidade natal, ele precisa enfrentar o passado que abandonou  enquanto recolhe os cacos de sua família despedaçada.

Como bem disse minha noiva com seu vocabulário camoniano, Manchester à Beira-Mar é um filme sobre pessoas fudidas fodendo-se ainda mais. É uma história sobre os white trash que levam uma nova rasteira da vida a cada manhã, mas se levantam a cada tombo.

Dos filmes da minha lista, Manchester à Beira-Mar é talvez aquele que tem mais chance de levar uma estatueta. Nada mais justo. O filme é de uma sinceridade afiadíssima. Consegue ser triste, mas não deprimente. Não toma atalhos açucarados, mas tem nisso um quê de reconfortante.

Nas palavras de um crítico, sua tristeza é não é do tipo que nos induz a cortar os pulsos, mas que nos faz sentir ainda mais vivos.

Pear Cider and Cigarettes

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Animação adulta e 2D não são coisas que associamos à academia americana. Tudo tem uma exceção: neste ano, ela se chama Pear Cider and Cigarettes. 

Concorrendo ao oscar de melhor curta animado, o filme conta a história real de seu criador, Robert Valley, atravessando o mundo para salvar seu amigo de uma vida de alcoolismo e libertinagem.

Baseado em uma graphic novel e financiado via Kickstarter, o curta tem um roteiro simples e visuais de cair o queixo. Veterano da indústria, Valley foi o animador por trás do clipes da banda Gorillaz, e seu estilo urbano e descolado pode ser reconhecido em cada frame.

O Lagosta

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Talvez o concorrente mais inusitado da lista, O Lagosta é um representante do teatro do absurdogênero que se vale do nonsense para criticar as mazelas da vida cotidiana.

Neste caso, acompanhamos a sina de um mundo em que ser solteiro é crime. Quem porventura perde seu parceiro é enviado a um hotel, onde tem 45 dias para encontrar um novo par. Aqueles que não conseguem conquistar ninguém são transformados em animais (daí o título peculiar).

Engraçado e desesperador, o filme é uma sátira da nossa obsessão por companhia – e do nosso orgulho pela solteirice. Não posso prometer que você gostar, mas dificilmente verá um filme mais criativo tão cedo.

Kubo e as Cordas Mágicas

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Serei direto: Kubo é a melhor animação a ser nomeada para o Oscar desde O Conto da Princesa KaguyaNão por acaso, tem muito em comum com o anime de Isao Takahata. Ambos são inspirados no folclore japonês, possuem uma mensagem melancólica sobre família e pertencimento e trazem ao século XXI técnicas belíssimas – e tradicionalíssimas – de animação.

O longa acompanha Kubo, um menino dotado de um shamisen mágico, capaz de fazer com que origamis ganhem vida. Perseguido pelo seu avô, o rei do mundo da Lua (pense Princesa Kaguya, não Sailor Moon) Kubo parte em uma jornada para encontrar seu pai, o famoso espadachim Hanzo.

Não deixe seus olhos enganá-lo. Kubo não é um filme em CG, mas stop motion. Que o longa pareça tão deslumbrante é prova de que o estúdio Laika (Coraline, ParaNorman) levou a técnica ao seu ápice.


Como disse, há uma boa chance que nenhum desses títulos seja premiado. Não deixe isso amuar seu entusiasmo: na história do Oscar (como em todos os prêmios), não faltam obras marcantes que nunca faturaram uma estatueta.

Que tenham sido indicados, no entanto, já é uma vitória em si. E algo pelo qual só tenho a agradecer: do contrário, talvez não os tivesse conhecido. O Oscar não é perfeito, mas tem seus usos.

Bom filme, e até a próxima!

 

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A moralidade de “Rogue One” é mesmo cinza? http://www.finisgeekis.com/2017/01/24/a-moralidade-de-rogue-one-e-mesmo-cinza/ http://www.finisgeekis.com/2017/01/24/a-moralidade-de-rogue-one-e-mesmo-cinza/#respond Tue, 24 Jan 2017 20:42:39 +0000 http://finisgeekis.com/?p=14296 Um bilhão de dólares.

Essas são as cifras da bilheteria de Rogue One, stand-alone de Star Wars que chachoalhou os cinemas mês passado. Entre isso e o sucesso de público de O Despertar da Força, parece não haver dúvidas de que a aposta da Disney em comprar a Lucasfilm finalmente pagou.

Independente do que achemos dos longas pós-Lucas (ou do que aconteceu ao Universo Expandido), parece também certo que a Disney está indo bem naquilo que sempre fora um ponto fraco: spin-offs de qualidade.

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Pois é, né

Mas Rogue One não é apenas isso. Para alguns críticos, ele traz algo diferente. Algo que Star Wars, pelo menos no cinema, nunca havia feito.

A palavra aqui é cinza. Reviewers comentaram que o filme abriu mão do maniqueísmo típico da saga e se aventurou pela moralidade ambígua.

O filme seria “cinza e eficiente“, com uma Aliança Rebelde cinza, uma trama com “tons de cinza“, mais “adulta e trágica” que a trilogia original. Se Star Wars prosperava na luta do bem contra o mal, Rogue One coloca a “guerra” em “Guerra” nas Estrelas

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Amando-o ou odiando-o, o veredito é o mesmo. Os tempos mudaram, o público mudou e agora Star Wars muda também. A moral infantil dos “tempos simples” de antigamente já se foi. Está na hora de mostrar a guerra, a dor e a humanidade como elas realmente são.

Ou será mesmo?

Por trás da sua fotografia escura, final trágico e ausência de Jedi, seria Rogue One tão diferente assim? Um tom sombrio e um foco no humano é o suficiente para que uma história seja “moralmente cinza”?

E nós? Será que realmente crescemos e estamos “trágicos e adultos”? Ou continuamos tão esperançosos como antes, maravilhados com a luta do bem contra o mal?

(AVISO: Contém SPOILERS de Rogue One: Uma História Star Wars.)

Uma história Star Wars

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Quem acompanha o blog há algum tempo sabe que meus comentários sobre O Despertar da Força não foram lá muito positivos. Neste caso, deixe eu ser claro desde já: Rogue One é um excelente filme.

O longa de Gareth Edwards conseguiu pagar seu tributo à saga sem soar derivativo. Seu tom é sombrio, mas temperado com humor. O talento dos veteranos Mads Mikkelsen e Forest Whitaker mais do que compensam a protagonista pouco inspirada.

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É um filme de grande peso emocional, do tipo que Lucas, amante do espetáculo e de uma lore expansiva, nunca deu muito espaço. É, também, uma obra que a Disney raramente fez em seus live-actions.

Fora do recente selo Marvel (e mesmo dentro dele), o estúdio americano sempre teve uma zona de conforto na leveza infanto-juvenil. Que um gigante midiático como a Disney esteja dando espaço para histórias como essa é um acontecimento. Não apenas para Star Wars, mas para tudo o que pode vir depois.

A fotografia é escura. A sujeira e desgaste da cenografia levam o conceito de futuro usado, caro a George Lucas, a um novo patamar. O enredo troca o mito de origem por uma história de soldados, e o final nos traz apenas tragédias.

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E a esperança de um futuro melhor

Moralidade “cinza”? Ou só escondida?

Mesmo assim, se o avaliarmos como um filme adulto, alguma coisa não soa muito certa. E não digo em termos de produção (reconstruções bizarras em CG à parte).

Algo em sua seriedade parece artificial: por um lado, óbvia demais; por outro, explorada de menos. E parece ter a ver com a insistência, da crítica e do próprio diretor, na famosa moralidade cinza. 

O termo é geralmente utilizado como oposto à moral “preta e branca”. que a saga original tão bem encarna. Os bons são bons, os maus são maus, e a história é o confronto de um contra o outro. Que os “do bem”, se tudo der certo, ganharão.

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Histórias são chamadas de “cinzas” quando as linhas que separam o bem do mal não estiverem muito claras.

Isso pode acontecer quando humanizam um vilão ou desumanizam um herói. Quando mostram que “bem” e “mal” não existem em formas puras. Ou, ainda, quando se rebelam contra a própria ideia de moralidade.

Ao tirar a Alliança Rebelde do seu pedestal de idealismo, Rogue One parece acenar para esse tipo de história.

O retrato de Saw Gerrera é talvez o símbolo mais evidente. Ao nos mostrar um conhecido herói de universos expandidos passados como um bandido, o filme sugere que a distância entre “heroísmo” e “terrorismo” está no fio de uma navalha.

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Mesmo assim, Rogue One tem um certo brilho que sugere que não é lá tão cinza quanto parece.

Ouvir os rebeldes falarem das “coisas ruins” que fizeram em nome da aliança mostra que eles não são mais os heróis infantis de Uma Nova Esperança. Mas a cena tem muito menos impacto do que teria se nos mostrassem o que, exatamente, eles fizeram.

A introdução de Cassian matando um informante é chocante, mas também limpa, clínica. A vítima é menos um ser humano que um NPC inconveniente, que seu personagem Leal e Neutro executa aborrecido -para, depois, seguir com sua quest.

Não se trata de violência gráfica, mas de escala. Como dizia Nietzsche, “quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.”. Em Rogue One, fazer o mal em nome do bem não causa as personagens a perderem fé na sua causa. Pelo contrário, apenas as motiva a serem mais heroicas. 

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É engraçado, nesse sentido,  o quão diferente ele é das obras “adultas” e “sérias” com as quais foi comparado, como Falcão Negro em Perigo O Resgate do Soldado Ryan.

Confronte apenas a postura de Cassian em Rogue One com a cena do prisioneiro alemão no filme de Spielberg, em que os protagonistas passam horas pensando se devem ou não matar um soldado nazista. Em plena Segunda Guerra.

Quem é o maniqueísta agora?

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É o mesmo conflito do capitão de A Vida dos Outros, que de tanto grampear um suspeito, acaba traindo a polícia política para a qual trabalha. Ou do terrorista de Convidados da Nação, ao ter de executar os reféns de quem ficou amigo.

Em Rogue One, apenas Galen e Bodhi passam por essa metamorfose. Mas o Império, já sabemos, é o “lado” dos malvados. E virar a casaca contra os malvados é o que é esperado dos bonzinhos.

Não há nada de “complexo” em sua defecção. É uma cena que já vimos com Finn em O Despertar da Força e melhor ainda com Darth Vader em O Retorno de Jedi.  

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O problema é que, ao misturar esses dois mundos, o resultado nem sempre é harmonioso.

‘Cinza’ não é sinônimo de adulto

Em Rogue One, na cena do tiroteio em Jedha, vemos uma criança asiática chorando no meio dos lasers. É difícil ver a cena sem pensar em Phan Thi Kim Phuc, a sul-vietnamita queimada por napalm cuja foto mudou o mundo:

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É uma imagem fortíssima, que nos entender que guerras não são lutas entre clones e dróides bobalhões. Não é à toa que fotos de crianças sempre são usadas (e abusadas) em mensagens pacifistas.

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É também uma diferença gritante em relação ao que estávamos acostumados, nos longínquos tempos de George Lucas.

Star Wars nunca escondeu que a inspiração de seus vilões foram os nazistas. O próprio termo stormtrooper (stoßtruppen)  veio do apelido das tropas de elite alemãs. O capacete de Darth Vader é inspirado no stahlhelm, usado por elas desde 1916.

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Stormtroopers com máscaras de gás. Primeira Guerra Mundial.

Rogue One  parece ter buscado referências mais “cinzas” para sua guerra. O problema é se esqueceu do porquê essas imagens são consideradas “cinzas.”

Phan Thi Kim Phuc (processe isso!) foi bombardeada pelo seu próprio “lado”. O objetivo da sua foto – e de tantas outras fotos de crianças em guerra – não foi pregar que deveríamos lutar com mais afinco. Pelo contrário, foi mostrar que a cruzada dos “bonzinhos” (Vietnã do Sul e Estados Unidos) estava causando mais mal do que bem.

No formato, Rogue One emprestou de histórias cuja proposta era nos fazer repensar a guerra. No conteúdo, porém, ele as colocou a serviço de uma mensagem oposta, celebrando a mesma luta do “bem” versus “mal” com que vibramos em Uma Nova Esperança.

Os críticos estão certíssimos ao dizer que o longa trouxe a “guerra” a Guerra nas Estrelas. Só não qualquer “guerra”. Como bem apontou a revista Time, é a guerra de Labaredas do Inferno Canhões de Navaronefilmes heroicos e patrióticos que celebram a “guerra justa”.

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Obviamente, é injusto esperar diferente de Rogue One. 

O longa de Gareth Edwards pode mirar um público adulto, mas ainda é um filme da Disney. Esperar um festival de vísceras como Até o Último Homem é não entender a proposta do estúdio – nem do próprio universo Star Wars.

No entanto, também não consigo afastar a impressão de que há algo a mais por trás disso.

E se a esperança que fechou Rogue One for não apenas uma exigência editorial, mas um reflexo dos nossos tempos?  E se  o preto-no-branco que Rogue One tenta esconder estiver lá de propósito, para atender a uma demanda por uma moralidade adulta, mas também simples e justa?

Para responder isso, é preciso nos lembrarmos de quando o universo Star Wars seguiu caminhos bem diferentes.

 

Knights of the Old Republic: The Sith Lords

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Ao leitor contrariado: não me odeie, não é o que parece. Prometo que não sou daqueles que coloca tudo do velho Universo Expandido num pedestal.

Porém, é inegável que o game KotOR 2: The Sith Lords também trouxe moralidade cinza ao universo Star Wars – só que de uma maneira bastante distinta. Com a Velha República voltando ao cânone e easter eggs aos jogos em tomadas de Rogue One, é interessante ver o que isso nos diz sobre a saga.

Knights of the Old Republic 2 se passa milhares de anos antes da Guerra Civil Galática, quando a República está se recuperando de uma terrível guerra contra os mandalorianos.

O conselho Jedi se recusou a tomar parte na guerra. Dois cavaleiros, Revan e Malak, se recusaram a obedecer a ordem e lideraram à guerra um grupo de voluntários.

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No entanto, bastou os mandaloriano serem derrotados para que eles próprios sucumbissem ao lado negro. E invadissem a República em uma guerra ainda pior.

KotOR 2 se passa após o final desses conflitos. A galáxia se encontra em pedaços. Os Jedi foram quase todos mortos, e os poucos que sobreviveram andam escondidos, protegendo-se do restante dos Sith.

O game acompanha uma Jedi exilada que retorna aos planetas centrais. Entre conspirações, lutas de sabre e batalhas espaciais, sua história é uma reflexão sobre um dos maiores dilemas que a Ordem já se perguntou:

A culpa é dos Sith? Ou fomos nós que erramos?

Se todos esses Sith foram treinados por nós, será que o problema não estaria na própria Ordem? Ao forçar seus cavaleiros a abrir mão do amor, sentimentos fortes e outros impulsos humanos, não estaria ela incentivando seus membros a migrar para o lado negro?

Se os ensinamentos Jedi não contemplam essas falhas, não seria ele o grande culpado? Pode o “jedaísmo utópico” se eximir das atrocidades que o “jedaísmo real” cometeu?

KotOR 2 é muito mais um jogo autoral da Obsidian do que um game Star Wars. Em retrospecto, é possível ver o germe do que viria a ser Fallout: New VegasPillars of Eternity e o excelente TyrannyUma discussão franca sobre a complexidade do mundo – e dos limites das nossas bitolas de “bem” e “mal”.

É até curioso que desenvolvedores com essas opiniões fossem se interessar por uma lore tão maniqueísta como a do universo Star Wars. E compreensível por que colocaram nas bocas de uma personagem, Zez Kai-Ell, uma pergunta espinhosa não só para os Jedi, mas para todos nós:

Do fracasso dos mestres, do nosso fracasso em trainar Jedi corretamente veio o desastre. E eu comecei a pensar se o erro, no final das contas, não estava nos próprios ensinamentos Jedi. (…) Entre tudo o que realizamos para preservar a galáxia, de tamanha arrogância de achar que tudo o que fazemos é justo e bom, eu me pergunto se não existe um contra-efeito que volta para nos atingir. (…)

Nem uma mísera vez eu ouvi alguém do Conselho se responsabilizar por Revan, por Exar Kun, por Ulic, por Malak… ou por você. Talvez haja alguma coisa errada em nós mesmos, em nossos ensinamentos. E, por mais que eu tentasse, não conseguia me livrar desse pensamento. Por isto abandonei o Conselho.

KotOR 2 não questiona nossos métodos, mas nossas intenções. O game nos lembra que nem sempre estamos certos – e que as causas que defendemos, muitas vezes, podem ser a verdadeira raiz do mal.

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É um ponto que Rogue One, por mais sombrio que seja seu clima, passa longe de abordar.

Saw Gerrera é um terrorista torturador. Cassian Andor, um assassino de sangue frio. No entanto, não há a menor questão que pessoas como eles são preferíveis a um Império que destrói cidades com a casualidade de quem espreme uma espinha.

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Rogue One é um filme adulto, sem dúvida. Porém, atrás da fotografia pesada, sua moralidade continua tão dicotômica quanto a fábula que o inspirou. Como bem disse um crítico, a Aliança se tornou cinza, mas o império continua negro.

O que isso nos diz sobre nós mesmos?

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Numa entrevista sobre Rogue One, seu diretor Gareth Edwards fez o seguinte comentário:

Quando eles fizeram Star Wars nos anos 1970, o mundo talvez se sentisse um pouco mais simples: aqueles são os malvados, nós somos os bonzinhos. Hoje – com a internet e a conexão global – nós sabemos lá no fundo que não é tão simples assim. Antigamente, quando você vencia, você acabava com o malvado. Isto nunca vai levar a paz nenhuma. Eu acho que nós só vamos conseguir acabar com a guerra quando entendermos um ao outro e tivermos empatia.

Belas palavras, mas Edwards não parece ter combinado com o resto da equipe. Pouco antes do filme ser lançado, os roteiristas Chris Weitz e Gary Whitta causaram no Twitter ao anunciar o filme como um ato de resistência contra a candidatura Trump.

A polêmica foi tão grande que levou o CEO da Disney, Bob Iger, a se manifestar publicamente dizendo que o filme é completamente apolítico.

Não há a menor dúvida de que Weitz e Whitta acreditam que representam o “bem” e que o inimigo contra o qual lutam é o “mal”. Na sua “luta justa”, é muito mais provável que assumam a certeza de Jyn Erso do que o pessimismo de Zez Kai-Ell.

E não só eles. Com mensagens vagas como “rebeliões são feitas de esperança”, é difícil não simpatizar – em algum nível – com a guerra moral que a Aliança trava. Todos nós somos rebeldes contra alguma coisa e precisamos de esperança para ir em frente.

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Rogue One, diz o Charles do Cosmo Nerd, carrega uma mensagem. “Não importa qual princípio guie seus passos, é preciso acreditar que você está no caminho certo.” Não podia estar mais certo.

Mas e se esse “princípio” que nos guia for, por exemplo, a manutenção da escravidão? A repressão colonial? O apoio a um governo tirano?

E se o “caminho” que achamos certo se provar um fracasso? E se nossa cruzada causar mais danos do que o mal contra o qual lutamos?

É o dilema que assombrou os confederados após a Guerra Civil Americana, os italianos após a Primeira Guerra Mundial, os franceses na Guerra da Argélia e os americanos no Vietnã.

É o dilema que Star Wars, lançado dois anos depois da queda de Saigon, quis esconder ao inaugurar o cinema blockbuster. E de que nós, após décadas de prosperidade, escapismo e alegria, nos esquecemos.

Mas talvez seja para o melhor.

Ao contrário do que Edwards acredita, os anos setenta passaram bem longe de ser simples. A Guerra Fria dividia o mundo, e suas consequências – o Vietnã, as ditaduras, a Crise dos Reféns do Irã, o possível holocausto nuclear – tiravam o sono de muita gente.

Star Wars conquistou seu espaço ao convidar essas pessoas para um outro mundo. Aterrorizadas em casa, elas ganharam um universo paralelo onde podiam sonhar, pensar e – sim – ver o bem derrotar o mal.

Tal como fez a poesia desde a antiguidade e o ballet no século XIX, Star Wars trouxe ao século XX “uma nova esperança”, na forma de uma fantasia otimista, ordenada e atemporal.

Não é à toa que sobrevive forte nos dias de hoje. E que, segundo alguns, durará para sempre.

Perto disso tudo, não dá para negar: moralidade cinza é overrated.

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“The Crown”: Por que Elizabeth II é tão importante http://www.finisgeekis.com/2016/12/06/the-crown-por-que-elizabeth-ii-e-tao-importante/ http://www.finisgeekis.com/2016/12/06/the-crown-por-que-elizabeth-ii-e-tao-importante/#respond Tue, 06 Dec 2016 21:10:01 +0000 http://finisgeekis.com/?p=13402

Algumas heroínas são óbvias. Outras, nem tanto.

Todos nós estamos acostumados a garotas mágicas e guerreiras de capa e collant. Nos últimos tempos, anti-heróinas e vilãs carismática também marcaram presença. Não parece ter sido o suficiente para a Netflix, que resolveu pensar fora da caixa.

E nos trazer uma heróina bastante diferente.

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À primeira vista, Elizabeth II não parece ser uma pessoa muito emocionante. Para nós, que nos acostumamos a encará-la como uma velhinha simpática, é difícil imaginá-la fora das colunas sociais. Muito menos como protagonista de uma nova série, prevista para durar seis temporadas.

Apenas à primeira vista.

Como nos mostra o seriado The Crown (que contém até um brasileiro entre os produtores), Elizabeth II foi (e ainda é) uma das mulheres mais poderosas da atualidade, com um dedo em vários dos mais importantes episódios históricos do século XX.

Não deixem os vestidos, jóias e corgis enganá-los. A rainha é badass.

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Bem, não exatamente desse jeito

“Mas como?” muitos, inclusive eu próprio, já devem ter perguntado. O cargo de monarca não é apenas cerimonial? O que as fofocas sobre o Príncipe William têm a ver com grandeza e heroísmo? Porque os britânicos insistem na monarquia, enquanto que tantos outros países já a abandonaram?

Acontece que há muito mais na rainha do que coroas e palácios. A “Coroa” que dá nome ao seriado é muito mais que uma jóia. É um princípio tão importante que, sem ele, o Reino Unido não consegue funcionar.

É o que me conta meu grande amigo Rafael Andrade, que conhece o assunto melhor que ninguém.

Intrigado pela série, resolvi procurá-lo para escrever um artigo especial para o finisgeekis, nos contando porque Elizabeth II é tão importante – e porque nós, ao assistir The Crown, estamos perdoados se terminarmos de queixo caído.

Confiram abaixo:

A heroína que a Inglaterra merece

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Qual, afinal, é a função da rainha? A resposta mais simples é que ela desempenha um papel constitucional na Inglaterra.

Claro, antes de comentar isso, é preciso entender o que é exatamente, a constituição britânica.

Ao contrário da maioria das monarquias constitucionais do mundo, o que torna o Reino Unido um caso ainda mais sui generis é que o país não possui uma constituição formal. Aí você pode se perguntar: mas pera aí, o tempo todo eles falam na constituição durante a série, o que isso quer dizer?

Pois bem, o que quer dizer é que, no Reino Unido, ao invés de um só documento constitucional rígido, como funciona nos Estados Unidos, no Brasil e praticamente todos os outros países do mundo, quatro fontes de entendimento constitucional são adotadas:

Elas são a common law (leis baseadas na tradição e nas decisões tomadas anteriormente por juízes e cortes de justiça), a statute law (leis estabelecidas para legislar pontos importantes que contrariem a common law ou que precisem de legislação mais rígida), convenções parlamentares (que tratam do funcionamento do parlamento) e, por fim, os works of authority (uma coleção de obras fundamentais para o entendimento da lei, incluindo “A Constituição Inglesa” de Bagehot, que é citada o tempo todo na série e que é uma das obras estudadas por todos os herdeiros do trono inglês, como também vimos na série).

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Como não poderia deixar de ser, todas as quatro fontes de poder  são intimamente ligadas à figura do soberano.

A common law vem diretamente da sua autoridade como representante das tradições inglesas, chefe da Igreja Anglicana e, até 2005,  por ter a prerrogativa de apontar o chefe do sistema judiciário inglês, sob aconselhamento do primeiro ministro.

A statute law, assim como a common law, também provém da autoridade do soberano, mas de maneira diferente. Apesar de serem aprovadas em última instância pelo monarca, essas leis tradicionalmente limitam o poder que ele exerce.

Esse tem sido o caso desde a Magna Carta de 1297 até o recente ato parlamentar de 2011. Apesar disso, é a autoridade e continuidade da instituição da monarquia que permite que documentos do século XIII ou XVII sejam citados em tribunais britânicos até os dias de hoje.

As convenções do parlamento e os works of authority, apesar de não serem ligados diretamente à monarquia, também dizem respeito ao soberano, na medida em que discutem suas prerrogativas e a própria natureza do poder real.

Não é pouca coisa, e não é à toa que George VI exige que Elizabeth passe toda a sua infância estudando apenas esses fundamentos. A jovem rainha pode se incomodar por não  ter estudado conhecimentos gerais, mas tudo existe por um motivo.

Poder apenas simbólico, mas nem tanto

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Mas como funciona o poder real? O que Elizabeth pode e não pode fazer?

Os direitos constitucionais mais importantes do soberano, aqueles que são aplicados com maior frequência, são: o direito de ser consultado, o direito de encorajar e o direito de avisar (que também foram teorizados por Bagehot).

Esses direitos representam a influência pessoal que o monarca, símbolo das instituições do Reino Unido pode ter em suas reuniões com o primeiro-ministro, chefe do governo de Sua Majestade e são vistos com clareza durante a série.

Ao longo dos episódios, Elizabeth se reúne diversas vezes com Churchill, que acaba se considerando uma espécie de professor da jovem rainha.

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Quanta influência que o monarca de fato exerce no governo do país é difícil de medir. Afinal, nós, meros mortais, não temos acesso exato ao que é conversado entre as quatro paredes do Palácio de Buckingham entre o primeiro-ministro e seu soberano.

Temos, no entanto, vários indícios de um poder de influência forte, apesar de exercido com parcimônia.

Por exemplo, durante a Crise da Rodésia, quando o país africano, (atual Zimbábue) declarou-se independente da Coroa, a rainha teve uma atuação extremamente importante, cooperando com o gabinete para lidar com a ex-colônia rebelde.

É, aliás, nas relações exteriores em que o poder simbólico do monarca fica ainda mais aparente. Como Chefe de Estado e representante do poder emanado pelo governo britânico, o soberano desempenha papéis cerimoniais em vários eventos, espalhados pelo território da Commonwealth, assim como visitas de estado em vários países, como o próprio Brasil, que foi visitado pela ilustre Rainha em 1968.

Em The Crown, não é por acaso que George VI coloca tanta importância na Commonwealth Tour, a rodada oficial de visitas às colônias britânicas. Nem que Elizabeth, quando vista a sua coroa, faça o mesmo.

No episódio 8, Orgulho e Alegria, sua relação com o marido ameaça degringolar porque se recusa a encurtar a viagem. Tudo por uma boa causa: como diz um de seus assessores, os “ventos da independência” sopram pelo continente.

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Além das funções cerimoniais, o poder de influência é claríssimo, como demonstrado pela própria série no episódio em que o presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, é forçado a aceitar o convite da rainha para um banquete de Estado.

Apesar de não ser um mais um colosso diplomático como foi sua trisavó, a Rainha Vitória, apelidada carinhosamente de “avó da Europa”, em uma era onde as monarquias são cada vez mais raras e as oportunidade para o monarca de influenciar diretamente a diplomacia do país por via de casamentos reais são, consequentemente, cada vez mais escassas, a influência exercida pela atual Rainha é sentida e impõe um respeito intangível nos Chefes de Estados estrangeiros.

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O staff do Palácio de Buckingham que o diga

A parte mais importante do poder simbólico real, entretanto, é o senso de continuidade passada pela instituição. Ele é refletido nas cerimônias oficiais, como a coroação e a abertura do parlamento.

A série passa bem isso na cena da coroação, apesar de não entrar em todos os pormenores que os amantes da monarquia adoram discutir.

Por exemplo, você sabia que o trono de madeira simples  no qual a Rainha sentou durante sua coroação, o que foi replicado fielmente na série, é um trono comissionado pelo Rei Eduardo I (sim, ele mesmo, o “Martelo dos Escoceses”, vilão do filme Coração Valente) e contém uma pedra ancestral capturada pelo Rei durante suas guerras na Escócia e antes utilizada nas cerimônias de coroação dos reis escoceses?

Quem assistiu ao filme O Discurso do Rei deve se lembrar de uma cena engraçada envolvendo ele. No longa, o fonoaudiólogo do rei George VI se senta no trono para motivar o monarca, que é gago, a falar.

O truque dá certo, e o soberano, fulo com a insolência, consegue superar sua gaguice.

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E essa é apenas uma de tantas relíquias utilizadas na cerimônia, que visa a acentuar ainda mais esse senso de continuidade.

Se um dia você, leitor, tiver a oportunidade de visitar a Abadia ou o Parlamento de Westminster (a sede do governo britânico), repare em como o ambiente é construído para valorizar a continuidade. Tudo foi extremamente pensado para te passar a impressão da monarquia é a mesma instituição inquebrantável da Inglaterra Anglo-Saxã medieval até os dias de hoje.

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Abadia de Westminster, em Londres

Minha cena favorita na série, inclusive, diz respeito a isso. No episódio 4, Elizabeth procura o conselho de sua avó, Mary, e as duas conversam sobre o “direito divino”. A jovem rainha acaba mencionando que, para seu marido, nas monarquias modernas há de existir uma separação entre Igreja e Estado (o que muitas vezes não cai tão bem na monarquia, mas essa é uma história para outra ocasião).

Ao ouvir isso a Rainha Mary, do alto de sua dignidade, dispara: “Sim, mas ele representa uma Família Real de aventureiros e novos-ricos que remonta o quê? 90 anos?  O que ele sabe de Alfredo, o Grande, o Cetro da Igualdade e Caridade, Eduardo, o Confessor, Guilherme o Conquistador ou Henrique VIII?”

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A noção de que uma instituição representa, e tem representado a nação durante toda sua história é extremamente poderosa.

Poder real, mas nem tanto

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Além do poder simbólico, a Coroa ainda possuí uma gama de prerrogativas que utiliza para exercer poder de fato sobre o governo.  O problema é que, como já falamos antes, a natureza da constituição britânica não é formal e escrita, o que torna muito, mas muito difícil saber até onde vão as prerrogativas.

Em 2004, o governo britânico tornou algumas delas públicas. Entre as mais importantes são a prerrogativa da misericórdia (o famoso “perdão real”), a prerrogativa de declarar guerra (na prática é sempre exercida pelo primeiro-ministro em nome do monarca, e foi objeto de polêmica quando utilizada por Tony Blair em 2002 na participação britânica na guerra do Iraque) e a prerrogativa de demissão de um primeiro ministro.

Em The Crown, vemos Elizabeth tentada a fazer uso dessa última prerrogativa para demitir Churchill durante o Grande Nevoeiro de 1952. Não é à toa que ela pensa duas vezes: ela é extremamente poderosa. Da última vez em que foi utilizada (em 1834!) resultou em desastre político.

Como os monarcas sabem muito bem, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.

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Há ainda a prerrogativa mais poderosa de todas: o consentimento real. Ela é importante porque é a base do poder do monarca. Basicamente, quando uma das casas do parlamento (Casa dos Lordes ou Casa dos Comuns) deseja passar uma lei, ela primeiro tem que ser votada na casa que a iniciou, depois na outra casa e, por fim, passar pelo aceite real.

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O caminho da lei até ser aceita. Fonte

Por convenção, a rainha aprova todas as leis que saem do parlamento. No entanto, o direito de veto é uma das prerrogativas reais. Ou seja: em teoria, o soberano tem direito constitucional de vetar uma lei que considere contrária ao interesse nacional. Isso é absolutamente poderoso e a última vez que aconteceu no Reino Unido foi no longínquo ano de 1704.

Mesmo assim, temos um exemplo recente de uso do veto em outra monarquia constitucional: o Grão-Ducado de Luxemburgo.

Em 2008, o  Grão-Duque Henri se recusou a dar o consentimento a uma lei que legalizava a eutanásia no país, alegando que assinar uma lei dessas ia contra sua liberdade de consciência. Comprou uma briga com seu parlamento e perdeu. Depois de 60% da população se declarar contrária à sua atitude, foi aberta uma sessão para emenda constitucional no parlamento luxemburguês e o Grão-Duque perdeu seu direito de veto.

Portanto, é difícil saber se as prerrogativas conhecidas são meramente teóricas ou se teriam utilidade prática se fossem usadas à revelia do parlamento. Em todo o caso, elas são estritamente controladas e servem mais como um poder extra em caso de grave crise nacional ou guerra.

Caso um monarca faça mal uso delas, certamente enfrentará uma crise constitucional de enormes proporções e porá em risco não só sua própria posição como a própria monarquia.

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Pois é, Margaret. Não adianta chorar

Apenas em momentos de atrito entre o governo e a coroa, como o ocorrido em Luxemburgo, descobriremos se a maioria das prerrogativas realmente tem efeito no mundo moderno (além do uso como poder de exceção durante crises, que já foi comprovado).

Enquanto isso, os ingleses rezam para que esse dia nunca chegue, pois um confronto entre Sua Majestade e seu governo traria resultados catastróficos para o país – qualquer que fosse o resultado.

A protagonista de The Crown pode não usar uma capa. Mesmo assim, é evidente que, em termos de responsabilidade, não perde de nenhuma super-heroína.

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E aqui chega ao fim esse post especial. Gostaria de fazer um agradecimento especial ao Rafael pela colaboração. E a você, leitor e fã de The Crown, por ter chegado até aqui. Até a próxima!

Ou, como diriam os britânicos, godspeed!

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“Black Mirror”: nosso maior pesadelo é o passado, não o futuro http://www.finisgeekis.com/2016/10/31/black-mirror-nosso-maior-pesadelo-e-o-passado-nao-o-futuro/ http://www.finisgeekis.com/2016/10/31/black-mirror-nosso-maior-pesadelo-e-o-passado-nao-o-futuro/#respond Mon, 31 Oct 2016 20:49:50 +0000 http://finisgeekis.com/?p=12378

Se eu tivesse que apostar que uma série britânica underground como Black Mirror um dia ganharia os aplausos da multidão, perderia meu dinheiro.

É verdade que a obra, que está agora em sua terceira temporada, sempre deu sinais de que brilharia. Gigantes do entretenimento como Stephen King e Robert Downey Jr. se disseram seus fãs. Seu especial de natal contou com a participação de Jon Hamm, o Don Draper de Mad Men.

Desde o princípio, Black Mirror foi uma excelente ideia à espera de alguém que a comprasse. Para sua sorte, a honra veio de ninguém menos que do Netflix.

Aos que não a conhecem, a série é uma coleção de curtas sobre a relação do homem com a tecnologia. Apesar de referências a uma cronologia comum, cada episódio é independente, dirigido por um diretor diferente, com seu próprio elenco e enredo.

Às vezes sarcásticos, quase sempre distópicos, raramente otimistas, seus contos são ficções especulativas ambientadas “15 minutos no futuro”: distantes a ponto de serem diferentes do nosso mundo, mas próximas o suficiente para nos fazer temer suas consequências.

Em The Entire History of You, por exemplo, um dispositivo permite que as pessoas gravem e assistam a todas as suas memórias. O que parece uma bênção logo se mostra uma maldição. Como as personagens de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, seu protagonista aprende que num mundo sem esquecimento nossos erros nos assombrarão para sempre.

Em White Christmas, por sua vez, pessoas podem ser “bloqueadas” na vida real como no Facebook. Uma vez que isso aconteça, não podem ser vistas ou ouvidas por aqueles que o bloquearam. Criminosos são punidos com um “bloqueio universal”, que os impede de interagir com os outros pelo resto de suas vidas.

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Em Nosedive, estreia da nova temporada, pessoas avaliam umas às outras no estilo do Uber. Tal como no aplicativo de caronas, uma nota muito baixa implica na perda de benefícios – neste caso, direitos civis.

O lado negro da tecnologia

O “espelho negro” que dá nome à série é uma referência às telas de smartphones. Por um lado, são uma fixação que parecemos não ser capazes de largar. Por outro, como todo espelho, nos mostram o reflexo (distorcido) de quem realmente somos.

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Quem revira os olhos com imprecações contra os “males da modernidade” pode respirar aliviado. Black Mirror não é hard sci fi. Suas “profecias” tecnológicas beiram o fantasioso. Seu worldbuilding, até pela proximidade com o presente, é mínimo.

Um mundo inteiro jamais poderia ser sustentado apenas por humanos gerando energia em bicicletas ergométricas, como sugere Fitfteen Million Merits. Já Hated in the Nation, em que abelhas robóticas caçam pessoas com o poder do Twitter, parece um argumento de filme B.

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Cena de “Fifteen Million Merits”

Criticar a série por causa disso, obviamente, é deixar de lado o mais importante. Black Mirror não é uma “profecia” tecnológica, mas uma redução ao absurdo, uma suposição do que aconteceria se os problemas da vida contemporânea fossem alargados ao extremo.

Seus contos são tão irreais quanto os pesadelos em que ficamos pelados em público, ou em que descobrimos que nossos pais são impostores. Porém, tal como estes pesadelos, é justamente por tocar em medos tão viscerais que a série nos sacode emocionalmente.

Como disse seu criador, Charlie Brooker, a ideia não foi escrever uma ode contra a tecnologia, mas avisar sobre o que ela pode nos trazer.

Brooker é otimista, ou apenas muito ingênuo. Pois, como outros já apontaram, a distopia de Black Mirror está longe de ser um palpite. Os terrores da tecnologia que a série nos apresenta são problemas com que convivemos há muito tempo.

E por “muito”, não penso em anos, mas em séculos.

A tirania da comunidade

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Revoltados de plantão passam uma boa parte de seu tempo defendendo a liberdade de pensamento, a privacidade e o princípio da ampla defesa. Fazem bem. Essas garantias, afinal de contas, são os pilares da sociedade que conhecemos.

O que talvez os surpreenda é que o statu quo que gostam de proteger é muito mais novo do que imaginam.

Até cerca de 200 anos atrás (em alguns lugares, por muito mais tempo), pessoas viviam em comunidades minúsculas, em que todos se conheciam. O problema, como notaram pesquisadores, é que sociedades fechadas não são apenas diferentes. Elas também funcionam de uma outra forma.

Como a informação circula pouco, manter segredo se torna difícil. Fofoca é um esporte popular. O que cada um faz, com quem cada um se relaciona e mesmo o que cada um pensa logo vira assunto público.

Como a lei é fraca e o tribalismo forte, os conflitos são resolvidos entre as pessoas. O que a comunidade achar errado, nem que apenas uma desfeita após a missa de domingo, é suficiente para arruinar uma pessoa. Não importa se a punição é desumana: enquanto for o desejo da maioria, ela será merecida.

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Em uma sociedade onde a vontade da turba é a que manda, é questão de tempo até que as pessoas comecem a viver pelas aparências. Afinal, é justamente por elas que serão julgadas – e condenadas. Máscaras se tornam tão importantes quanto rostos.

Daí que, para manter a “ordem” e “fazer o que é justo”, não basta exigir o troco. É preciso assassinar suas reputações, humilhá-las, desumanizá-las.

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É a filosofia de A Letra Escarlate, em que uma adúltera é obrigada a vestir uma marca para que os demais reconheçam seu pecado de longe.

É o que, entre 1692 e 1693, levou 25 pessoas à morte em Salém, Massachusetts, vítimas da fofoca de um grupo de garotas. É o que fazia com que, na Versailles do Ancien Régime, brigas, rivalidades políticas e até mesmo duelos fossem provocados pelos mais fúteis dos motivos.

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Foi apenas com a explosão populacional e o surgimento das grandes metrópoles que outro caminho começou a se abrir. Na nova sociedade urbanizada, fria e superpovoada, pessoas se tornam estranhas. A cidade é o império do anônimo.

Na multidão, o indivíduo não precisava mais ser escravo de sua comunidade. Podia ir aonde desejasse, relacionar-se com quem quisesse, experimentar o que lhe desse na telha.

Se essa utopia parece fresca, é porque foi apropriada pela retórica da globalização e da revolução digital. O cidadão internacional não deve mais obediência à pátria: o mundo é seu playground. Comunidades virtuais, de fandoms a praticantes de fetiches sexuais, permitem que as pessoas escolham suas tribos – e se “desconectem” sempre que quiserem.

Que Black Mirror nos choque tanto é prova de que esse sonho ainda segue firme. Mesmo que a realidade, cada vez mais, conte outra história:

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Na sanha de nos aterrorizar com o futuro,  Black Mirror nos apresenta um mundo que a humanidade conhece muito bem. De uma utopia infinita e interconectada, a sociedade ameaça se tornar tão fechada, provinciana e inclemente quanto foi durante a maior parte da história.

Infelizmente para os “pessimistas” de  Black Mirror, virar essa mesa é uma tarefa muito mais complicada do que nos livrarmos dos últimos gadgets.

O que desejamos apagar

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À primeira vista, é fácil supor que a série de Brooker seja uma fábula sobre os excessos da tecnologia. Desafetos da Apple, compartilhadores de correntes nostálgicas no Facebook e metidos a politizados em luta contra a “alienação” encontraram na série um prato cheio para esbanjarem as próprias certezas.

Porém, há pouquíssimo nessa distopia futurista que não seja superado pelo que a era pré-digital, sem pompa ou circunstância, era capaz de fazer.

A “likecracia” de Nosedive pode parecer uma histeria tirânica. Porém, é inacreditavelmente mais branda do que o higienismo do século XIX, quando presídios inteiros eram construídos para prender e torturar pessoas desfavorecidas, deslocadas ou inconvenientes.

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Antiga prisão de Cork. No final do século XIX, uma mulher chegou a ser presa por “bebedeira” e “linguagem obscena”.

Já em Men Against Fire, soldados recebem implantes cibernéticos que fazem com que enxerguem seus inimigos como monstros. Assim, podem atirar sem sofrer com o dilema moral em matar outras pessoas.

Com o jargão típico da geração 11/09, uma colunista do The Mirror disse que o episódio fala sobre “as consequências filosóficas da guerra de alta tecnologia”.

Mas Nathan Bedford Forrest, oficial confederado e primeiro grão-mago da KKK, não precisou de implantes para chacinar prisioneiros negros no Massacre do Forte Pillow. Nem soldados japoneses para sequestrar e baionetar bebês durante a invasão da China (CUIDADO, NSFW).

Será que essas guerras eram menos “filosóficas” que as nossas?

Ironicamente, se existe algo próximo da guerra “humanizada” que o episódio parece defender, ela está justamente na matança “futurista” que tanto critica. Entre o desenvolvimento de tecnologias para reduzir danos colaterais e uma opinião pública horrorizada como nunca antes com a violência, o combate se torna cada dia menos letal.

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Resultado de ‘Gyokusai’ ou Carga Banzai, 1942

As visões de progresso pregam que a humanidade pode sempre transcender suas barreiras. Nada está escrito na pedra. O amanhã será melhor que o ontem. Nenhum vício é inconsertável, e nenhuma virtude inatingível. Com determinação suficiente, é possível ultrapassar qualquer barreira: a política, a linguagem, o preconceito e mesmo a biologia.

O grande pavor dessas visões não é pensar que suas boas intenções possam edificar uma distopia. É imaginar que, não importa o que façamos, algumas coisas se recusarão a mudar.

É descobrir que nossas piores depravidades vão nos acompanhar até o final dos tempos. E que há, no seio de cada um, uma natureza humana que engenharia social nenhuma será capaz de apagar.

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