Nós historiadores somos famosamente chatos. É muito difícil resistir à tentação de criticar um game ambientado no passado, ainda que seja a melhor experiência que já curtimos.
Pentiment é uma exceção. Ambientado na Baviera (atual Alemanha) na época da Reforma Protestante, o último game da Obsidian é o raro game histórico que parece ter acertado todas as notas. Estou para encontrar um colega que não sorria ao falar do esmero que teve em trazer o século XVI à luz do XXI.
Essa atenção teve um preço: algumas de suas referências podem soar bastante obscuras se você não for um fã de história medieval ou moderna.
E não, não estou falando apenas de O Nome da Rosa.
Pentiment, como a história de mistério que seu roteiro tece, vai muito além da superfície.
(Aviso: contém SPOILERS de Pentiment)
1) Martin Bauer é baseado em uma pessoa real
No primeiro ato do jogo, somos introduzidos a um jovem delinquente chamado Martin Bauer. Tão inconsequente quando é boca-suja, Martin, a princípio, serve apenas de red herring para complicar o mistério sobre a morte do Barão. Coisa que o próprio arquidiácono reconhece ao exclui-lo sumariamente da lista de suspeitos.
As coisas mudam a partir do segundo ato. Ao retornar à Tassing sete anos depois, Andreas reencontra Martin, irreconhecível de corpo e personalidade. Amável com sua esposa, afável com os vizinhos e engajado em causas políticas, é um novo homem.
Literalmente, como logo descobrimos.
O novo “Martin”, na verdade, é Jobst Färber, companheiro de crime do delinquente de Tassing que assume sua identidade após a morte do comparsa. Brigita, ex-esposa de Martin, concorda em acobertá-lo em troca de sua vista grossa para seu romance com Verônica. O resto da vila, se percebe o embuste, não vê motivos para a denúncia. “Martin”, afinal, é um sujeito muito melhor do que Martin jamais foi.
Fãs de história medieval (ou de cinema francês) entenderão de pronto a referência. Martin Bauer é baseado em Martin Guerre, um camponês que tentou a mesma fraude na França do século XVI.
Infelizmente para Guerre, ao contrário de seu xará de Tassing, seu truque não funcionou. O verdadeiro Martin não estava morto. Quando retornou para casa, o golpista foi denunciado, julgado e executado.
A singularidade do julgamento garantiu que sobrevivesse na cultura popular. Nos séculos seguintes, seu conto recebeu diversas adaptações. Uma delas, o filme O Retorno de Martin Guerre, é deliberadamente citada na quest de Pentiment (“O Retorno de Martin Bauer”)
Em qualquer de suas encarnações, o caso é menos interessante por conta do impostor do que de sua esposa. O episódio é representativo dos poucos caminhos disponíveis com que mulheres contavam para escapar de sua sina – e do risco que sofriam ao trilhá-los.
Lésbica, forçada a se casar ainda adolescente após ter sido engravidada por um bandido, Brigita é uma mulher vivendo no fio de uma navalha. Se estivesse no lugar dela e ajudar um crime pudesse tornar sua vida mais fácil, você aceitaria? Quanto você estaria disposta a sacrificar até que as consequências da mentira caíssem sobre seu colo?
São questionamentos que ressonam até os dias de hoje. Muita coisa mudou desde o século XVI, mas muitas pessoas continuam vivendo em fios de navalha, de toda natureza.
2) Otto Zimmerman não foi o primeiro a causar problemas com uma cabeça de santo
No clímax do jogo, Andreas e Magdalene descobrem que Padre Thomas é o mandante dos assassinatos em Tassing-Kirsau.
O religioso confessa que agiu como agiu para impedir que o segredo da vila viesse à tona: São Moritz e Santa Sátia, padroeiros de Tassing, nunca pisaram na aldeia. Sátia, em particular, pode nunca ter existido.
Na verdade, eles nada mais seriam que representações dos deuses romanos Marte e Diana, que os primeiros cristãos erroneamente interpretaram como imagens divinas.
O twist é a parte do jogo que, como historiador, menos me convence. Santos de origens suspeitas e/ou semelhanças com divindades pagãs existem a rodo na Europa. É realmente plausível que os peregrinos que os veneram há séculos parariam de adorá-los da noite para o dia? Sobretudo quando a abadia possui uma relíquia – portanto, um pedaço do santo?
Padre Thomas acredita que sim, e é isto que importa. Para isto, ele comete uma série de crimes para esconder duas peças de evidência que podem trazer a verdade à tona. A primeira é um velho livro em latim, Historia Tassiae (“A História de Tassing”). Trata-se de uma óbvia referência a O Nome da Rosa, que também envolve assassinatos cometidos para impedir um livro de ser lido – no caso, um volume perdido da Poética de Aristóteles.
A segunda evidência é mais indireta, mas nem por isso menos literária. Otto Zimmerman, o carpinteiro da cidade, encontra por acaso a cabeça da estátua de São Moritz que adorna a vila. O problema: em seu elmo está escrito Mars Pater (“Marte Pai”). Para Thomas, se Otto tornar pública sua descoberta, todos saberão que Moritz nunca pisou em Tassing.
Uma história muito parecida faz parte dos contos de Till Eulenspiegel (em português, também conhecido como Til Malasartes.) Trata-se de uma personagem cômica do folclore alemão, cujo hobby é desafiar autoridades e zombar de convenções sociais.
Em uma de suas estripulias, Till toma um crânio de um cemitério e paga um artesão para que o revista de prata. Então, disfarça-se de padre e anuncia ter encontrado a cabeça de um certo São Brandonus. Por uma pequena contribuição (monetária ou, no caso das mulheres da cidade, sexual) ele permitia que os habitantes da cidade a beijassem.
Ninguém descobre o golpe.
Till Eulenspiegel foi publicado pela primeira vez na década de 1510, exatamente quando se inicia o primeiro ato do jogo. Pentiment não esconde a coincidência: o livro é mencionado logo no primeiro diálogo entre Andreas e Claus Drucker, logo após a morte do barão.
Easter egg adicional: Claus, no livro, é o nome do pai de Till.
Dependendo das escolhas que você fizer para a formação de Magdalene no terceiro ato há uma referência ainda mais explícita a ser encontrada. Conversando sobre santos com Padre Thomas, a jovem tem a chance de confrontá-lo com a história de Till. O religioso então responde que vidas de santo não precisam ser 100% reais para nos inspirar, tal como os contos de Till Eulenspiegel falam sobre verdades a despeito de serem ficção.
Bem hipócrita para um homem que está disposto a matar para esconder a verdade de seu rebanho.
3) Abades também eram senhores – no sentido “feudal” da palavra
Na sua primeira refeição do jogo, acompanhado de Endris e Otto Zimmerman, Andreas descobre que as relações entre Tassing e Kiersau são tensas. Todos os camponeses devem tributo à abadia, que controla a região e seus recursos naturais. Nem todos acham que o imposto é justo.
As coisas pioram no segundo ato. Cansado de ser contrariado por Otto, o Abade Gernot cerra fileiras contra Tassing. Os impostos aumentaram. Os camponeses perdem o acesso à floresta e ao riacho. Num golpe de particular crueldade, ele impede que a população visite a relíquia de São Moritz.
Se você ainda se lembra das aulas de feudalismo na escola, a situação pode ter parecido bizarra. Afinal, aprendemos que havia três ordens na Idade Média: aqueles que lutam, aqueles que oram e aqueles que trabalham. Aos clérigos, cabia rezar. Neste caso, por que raios eles tinham terras e pessoas sob sua autoridade?
Porque, como costuma ser o caso, as coisas na prática eram mais complicadas. No período medieval, mosteiros controlavam pessoas e territórios tanto quanto senhores seculares – com todos os fardos e obrigações que isto implicava. Aliás, abades e senhores muitas vezes vinham das mesmas famílias. Não era incomum que as grandes abadias de um dado reino ou território fossem controladas pelas mesmas dinastias que ocupavam a Coroa.
Como atores importantes no jogo político, também não era surpreendente que abades jogassem sujo para expandir seus territórios. Caso Andreas possua uma educação em direito, Andreas pode descobrir que Kiersau estava tramando para roubar as terras da viúva Ottillia. Pior: por meio de fraude.
Um exemplo muito parecido aconteceu de verdade com a abadia de San Clemente a Casauria, no norte da Itália, no final do século IX. Num espaço de poucos anos, o monastério agressivamente comprou terras vizinhas, até que praticamente todos os habitantes da região se tornassem dependentes da Igreja
Obviamente, a Itália do século IX não era a Baviera do século XVI. Manobras como as de Casauria eram mais fáceis de se orquestrar no passado porque a paisagem política e econômica da região ainda estava para se consolidar. Com o passar dos séculos, tomar terras passou a ser complicado, pois implicava em competir diretamente com os interesses de outras abadias ou senhorios. De onde a decisão do Abade Gernot em mirar justamente no elo mais vulnerável: viúva, idosa e malquista em Tassing, Ottilla é a vítima perfeita.
4) A caça às bruxas foi um fenômeno moderno, não medieval
Dependendo de nossas escolhas ao longo de Pentiment, podemos nos deparar com a revelação de que Vacslav e Ursula queimaram na fogueira após os eventos da história. Ele, por advogar ideias heréticas sobre o livro do Gênese; ela, por adorar os Deuses Antigos do passado pagão.
Se você está acostumado a escutar que a Idade Média foi a Idade das Trevas, em que indivíduos (sobretudo mulheres) eram queimados a rodo por todo tipo de infração espiritual, talvez o timing da execução possa ter lhe parecido estranho.
Afinal, estamos diante de uma história que se passa justamente na passagem da Idade Média para o que entendemos por modernidade. Por que Ursula e Vacslav foram queimados justo agora, sendo que durante as décadas que a história cobre os camponeses de Tassing tiveram total liberdade para invocar Perchta e misturar ideias cristãs com costumes pagãos?
Com o advento da impressora, alfabetização popular e demandas por liberdade religiosa, não seria mais intuitivo que o mundo ficasse mais liberal e menos persecutório com o passar das décadas)?
Por incrível que pareça, não. Embora caças às bruxas tenham sido associadas à Idade Média, elas foram um fenômeno quase que exclusivamente moderno. No que é hoje sul da Alemanha, região retratada em Pentiment, alguns dos maiores processos aconteceram poucas décadas depois dos eventos do jogo. Os processos de Salem, possivelmente os mais famosos do mundo, foram realizados ainda depois, entre 1692 e 93
Olhando essas datas, dá para entender por que a modernidade achou melhor condenar seus crimes às fogueiras do passado. A ideia de que a mesma época que nos legou René Descartes e Isaac Newton produziu episódios de intolerância e fanatismo religioso é desconfortável. Muito mais fácil é alimentar a ilusão de que o obscurantismo é uma velha superstição que estamos a caminho de extinguir.
Essa ingenuidade, porém, teve efeitos sérios que perduram até os dias de hoje. Ainda hoje, continuamos incapaz de aceitar que atos de extremismo, negacionismo ou terrorismo não são exceções remanescentes do passado, mas parte do que somos: pecados da época contemporânea, não de uma “era medieval”.
Empenhados em recusar responsabilidade sobre tudo o que sofremos, não fazemos a pergunta mais importante: até que ponto os pesadelos dos dias de hoje – disparos em massa de discursos de ódio, fim de empregos por conta de IAs, ataques à democracia liberal – não são subprodutos de nosso próprio movimento de progresso?
Se nada mais, ao ambientar deliberadamente sua história em uma época de transição ideológica e cultural, Pentiment nos mostra que não é a primeira vez que a humanidade se depara com essa questão. E, tal como o foi na época da Reforma Protestante, não é o tipo de questão que podemos ignorar.
Como Pentiment e outros RPGs nos ensinam, ações têm consequências. Sua ausência também.
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