Quando era adolescente, estudei com uma mentirosa compulsiva.

Não falo do chuunibyou, o costume de alguns jovens de inventar histórias inocentes sobre si mesmos. Como eu, que dizia a todos que frequentava uma escola de arqueologia ou um amigo meu que jurava ter vindo de Netuno.

Ela espalhava rumores sobre colegas para que brigassem entre si. Justificava faltas com explicações absurdas. Ao menos uma vez, pediu dinheiro emprestado e engambelou sua benfeitora por meses a fio.

Eu me surpreendia com seu talento em conjurar histórias do nada. Em como, ao ser confrontada com uma mentira, ela se safava com outra ainda maior. Sem piscar, sem derrubar a máscara, como se conseguisse tirar do meu próprio rosto os indícios de que precisava para me enganar.

Nunca entendi por que ela fazia isso. Se era, de fato, uma garota perturbada ou se sofria de algum problema que não sabia (ou podia) nos contar.

Não posso dizer que minha situação mudou depois de ler O Marionetista de Jostein Gaarder. Mas, sem dúvida, passei a olhar para essas lembranças de outra maneira.

 

Capa indonésia de “O Marionetista”

Se você, como eu, conhece Gaarder por seus romances infanto-juvenis (em especial O Mundo de Sofia), O Marionetista (Dukkeføreren, lançado em inglês como An Unreliable Man) descerá como um soco no estômago. Seu último romance é uma fábula adulta do começo ao fim, protagonizada por um sexagenário assombrado por culpas que o tempo só aumenta.

Em argumento, tamanho e até em seu cenário escandinavo ela evoca A Enganadora Honesta, outro angustiante romance adulto da pena de um ícone do infanto-juvenil. Neste caso a finlandesa Tove Jansson, autora dos Moomins.

Um Homem Não Confiável é narrado por um professor chamado Jakob como confissão a uma certa Agnes. A relação exata que une os dois não nos é clara à primeira vista. Quanto mais avançamos na história, mais suspeitamos que, talvez, não seja clara tampouco a Jakob.

Qual é a forma mais fácil de dar sentido às nossas vidas? É quando somamos tudo a partir do início ou quando começamos do presente, o que obviamente é mais fresco na memória, e deste ponto rememoramos nosso caminho até onde tudo começou?

Esse “caminho” início com nada menos que a morte. Jakob abre seu relato com um funeral. Ao longo dos capítulos, cada qual intitulado com base em um finado, ele se tornará apenas o primeiro de muitos.

Jakob conta sua história a partir dos funerais em que comparece, contando a nós (e às outras pessoas) os momentos que passou com aqueles que se foram. Que precise fazer isso, funeral após funeral, diz mais sobre sua pessoa do que ele, próprio, parece disposto a admitir.

Jakob está sempre sozinho, sempre dividindo mesas com desconhecidos que o olham desconfiados. De tudo o que aquelas pessoas significaram para ele, não parecem tê-lo estimado a ponto de sequer mencioná-lo a seus entes queridos.

É uma bela coincidência, mas uma coincidência mesmo assim. E, funeral após funeral, começamos a duvidar da conveniência destes acasos.

Por que, em cada um desses enterros, Jakob parece sempre um estranho? Por que seus amigos nunca o haviam mencionado a seus outros amigos, familiares, colegas de trabalho?

De onde surgiam tantos “amigos” que a todo instante morriam, mas nunca pareciam se casar, fazer aniversário, convidá-lo para um jantar ou uma taça de vinho? Por mais belo que soe em sua narrativa, devemos mesmo acreditar que a vida de Jakob se movimenta apenas à beira de um caixão?

A resposta é um twist tão radical que só o incluo nessa crítica por acontecer na primeira metade no livro. Se você se lembra da história da minha ex-colega, porém, já deve ter deduzido por conta própria:

Nada do que ele nos conta é verdade.

Um homem não confiável

Capa da edição anglófona, traduzida como “Um Homem Não Confiável”.

Em dado momento, Jakob é pego num contrapé. Menciona ter conhecido uma defunta durante uma caminhada. A finada, porém, era uma cadeirante.

Contradito em público, ele tenta fugir. Uma mulher o segura. Ela se chama Agnes. Conforme as peças do romance finalmente se unem, vemos o desabrochar de uma relação de verdade. Talvez a primeira “verdade” de sua história até então.

O Jakob “real” é um mentiroso patológico que busca infiltra funerais de desconhecido fingindo-se um amigo distante. Dotado de uma memória prodigiosa, ele inventa histórias a partir do que lê nos obituários e do que pinça dos discursos que escuta nos velórios.

O Jakob “real” não possui amigos, ou famílias ou conhecidos. Apenas um boneco de pano chamado Pelle que trata como um amigo imaginário. E uma esposa que se afastou quando os sintomas de sua loucura se tornaram sérios demais para ignorar.

Tido (compreensivelmente) como um maluco, Jakob teve a sorte de viver em uma época tão egocêntrica e ensimesmada em que até esquisitices como a sua passam batido:

Com isso, eu notei de fato uma mudança social radical ao longo dos últimos anos, uma mudança que serviu aos meus interesses. Desde que celulares começaram a vir com pequenos microfones que você pode prender no seu casaco ou sua camisa, meu comportamento se tornou menos digno de nota. Antes, as pessoas podiam achar que eu sofria de Síndrome de Tourette, mas hoje eu não sou mais o único andando pelas ruas da cidade – ou pelas trilhas de florestas – latindo respostas para cada pessoa ao redor e seu cachorro.

Gaarder não poupa referências às redes sociais, e é difícil não ver em seu romance uma crítica venenosa aos seus efeitos nas relações humanas.

Numa época em que “amigos” são indistinguíveis de seguidores e a intimidade se confunde com voyeurismo, quantos de nós não são Jakobs inconscientes? Intrometendo-se na vida dos outros, inflando “amizades” passageiras pela mera necessidade de pertencer?

“Com a internet e as redes sociais, viver como eu se tornou quase fácil demais” o próprio Jakob se deslumbra “Na medida em que o mundo público inchou, o mundo privado se encolheu de acordo”.

O escritor norueguês Jostein Gaarder

Poucos medos nos despertam tanta empatia quanto a solidão. Talvez porque, tal como a morte, ela é um fantasma que nunca podemos de fato exorcizar. Que as duas andem de mãos dadas, não só na ficção, mas também na vida, não é uma coincidência.

Atire a primeira pedra quem nunca temeu, como Johnny Cash, que “todo mundo que [conhecemos] vai embora no final.” Ou, pelo menos, que não viu este medo estampado em idosos à nossa volta, desesperados por um amigo, um companheiro de viagem, uma alma humana dividindo o mesmo banco. Tudo para fazê-los acreditar que ainda importam.

Seria essa, porém a solidão com que sofre Jakob? Devemos, pois, simpatizar com ele quando um esbarrão de uma estranha o deixa excitado? Com o prazer voyeurístico com que se entretém ouvindo sobre as mortes de desconhecidos? Com a facilidade com que manipula os sentimentos das famílias? Tudo para atender uma curiosidade que, por sua própria admissão, parece-se um vício?

Jakob é um solitário no naipe do revelador de fotos de Retratos de uma Obsessão ou da professora de história de Notas Sobre um Escândalo. Pessoas, nas palavras de Roger Ebert, que “nasceram com partes a menos” e que estão dispostas a destruir os outros para sanar sua fome por companhia.

Cena de “Retrato de uma Obsessão” (2002)

A diferença, obviamente, é que Jakob nunca destruiu alguém. Mas seria uma questão de índole ou apenas de oportunidade? Se alguém destruísse o boneco de Pelle quais seriam as chances de que reagiria violentamente?

Se pedíssemos a sua ex-esposa que nos contasse a sua versão dos fatos, sobre que Jakob ouviríamos? O linguista solitário ou a versão norueguesa de Norman Bates?

Gaardner parece nos indicar a primeira opção, até nos lembrarmos de que estamos lendo um livro chamado Um Homem Não Confiável narrado em primeira pessoa.

Diz Jakob que Agnes, a mulher a quem escreve, comiserou-se de sua solidão. Que se encantou com a sua criatividade e tornou-se amiga de Pelle.

Talvez, pelo contrário, ela tenha se horrorizado pela sua mentira. Talvez ela – uma terapeuta, como o próprio Jakob nos conta – esteja apenas interessada em entender sua mente depravada. Talvez toda a história seja um delírio de um paciente num hospício, tecendo fantasias sobre a médica que o trata.

Talvez “Agnes” não passe de uma criação da sua mente, tão fictícia quanto Pelle, que diz tanto admirar.

Seria ingênuo pedir do autor de O Mundo de Sofia que nos desse a verdade de bandeja. Amante de filosofia como poucos, Gaarder sabe que o abismo entre essência e aparência é, muitas vezes, intransponível.

Não é a mensagem aconchegante que esperamos ouvir em uma história sobre solidão. Mas a solidão, e as feridas que deixa, raramente o são.