Algumas heroínas são óbvias. Outras, nem tanto.
Todos nós estamos acostumados a garotas mágicas e guerreiras de capa e collant. Nos últimos tempos, anti-heróinas e vilãs carismática também marcaram presença. Não parece ter sido o suficiente para a Netflix, que resolveu pensar fora da caixa.
E nos trazer uma heróina bastante diferente.
À primeira vista, Elizabeth II não parece ser uma pessoa muito emocionante. Para nós, que nos acostumamos a encará-la como uma velhinha simpática, é difícil imaginá-la fora das colunas sociais. Muito menos como protagonista de uma nova série, prevista para durar seis temporadas.
Apenas à primeira vista.
Como nos mostra o seriado The Crown (que contém até um brasileiro entre os produtores), Elizabeth II foi (e ainda é) uma das mulheres mais poderosas da atualidade, com um dedo em vários dos mais importantes episódios históricos do século XX.
Não deixem os vestidos, jóias e corgis enganá-los. A rainha é badass.
“Mas como?” muitos, inclusive eu próprio, já devem ter perguntado. O cargo de monarca não é apenas cerimonial? O que as fofocas sobre o Príncipe William têm a ver com grandeza e heroísmo? Porque os britânicos insistem na monarquia, enquanto que tantos outros países já a abandonaram?
Acontece que há muito mais na rainha do que coroas e palácios. A “Coroa” que dá nome ao seriado é muito mais que uma jóia. É um princípio tão importante que, sem ele, o Reino Unido não consegue funcionar.
É o que me conta meu grande amigo Rafael Andrade, que conhece o assunto melhor que ninguém.
Intrigado pela série, resolvi procurá-lo para escrever um artigo especial para o finisgeekis, nos contando porque Elizabeth II é tão importante – e porque nós, ao assistir The Crown, estamos perdoados se terminarmos de queixo caído.
Confiram abaixo:
A heroína que a Inglaterra merece
Qual, afinal, é a função da rainha? A resposta mais simples é que ela desempenha um papel constitucional na Inglaterra.
Claro, antes de comentar isso, é preciso entender o que é exatamente, a constituição britânica.
Ao contrário da maioria das monarquias constitucionais do mundo, o que torna o Reino Unido um caso ainda mais sui generis é que o país não possui uma constituição formal. Aí você pode se perguntar: mas pera aí, o tempo todo eles falam na constituição durante a série, o que isso quer dizer?
Pois bem, o que quer dizer é que, no Reino Unido, ao invés de um só documento constitucional rígido, como funciona nos Estados Unidos, no Brasil e praticamente todos os outros países do mundo, quatro fontes de entendimento constitucional são adotadas:
Elas são a common law (leis baseadas na tradição e nas decisões tomadas anteriormente por juízes e cortes de justiça), a statute law (leis estabelecidas para legislar pontos importantes que contrariem a common law ou que precisem de legislação mais rígida), convenções parlamentares (que tratam do funcionamento do parlamento) e, por fim, os works of authority (uma coleção de obras fundamentais para o entendimento da lei, incluindo “A Constituição Inglesa” de Bagehot, que é citada o tempo todo na série e que é uma das obras estudadas por todos os herdeiros do trono inglês, como também vimos na série).
Como não poderia deixar de ser, todas as quatro fontes de poder são intimamente ligadas à figura do soberano.
A common law vem diretamente da sua autoridade como representante das tradições inglesas, chefe da Igreja Anglicana e, até 2005, por ter a prerrogativa de apontar o chefe do sistema judiciário inglês, sob aconselhamento do primeiro ministro.
A statute law, assim como a common law, também provém da autoridade do soberano, mas de maneira diferente. Apesar de serem aprovadas em última instância pelo monarca, essas leis tradicionalmente limitam o poder que ele exerce.
Esse tem sido o caso desde a Magna Carta de 1297 até o recente ato parlamentar de 2011. Apesar disso, é a autoridade e continuidade da instituição da monarquia que permite que documentos do século XIII ou XVII sejam citados em tribunais britânicos até os dias de hoje.
As convenções do parlamento e os works of authority, apesar de não serem ligados diretamente à monarquia, também dizem respeito ao soberano, na medida em que discutem suas prerrogativas e a própria natureza do poder real.
Não é pouca coisa, e não é à toa que George VI exige que Elizabeth passe toda a sua infância estudando apenas esses fundamentos. A jovem rainha pode se incomodar por não ter estudado conhecimentos gerais, mas tudo existe por um motivo.
Poder apenas simbólico, mas nem tanto
Mas como funciona o poder real? O que Elizabeth pode e não pode fazer?
Os direitos constitucionais mais importantes do soberano, aqueles que são aplicados com maior frequência, são: o direito de ser consultado, o direito de encorajar e o direito de avisar (que também foram teorizados por Bagehot).
Esses direitos representam a influência pessoal que o monarca, símbolo das instituições do Reino Unido pode ter em suas reuniões com o primeiro-ministro, chefe do governo de Sua Majestade e são vistos com clareza durante a série.
Ao longo dos episódios, Elizabeth se reúne diversas vezes com Churchill, que acaba se considerando uma espécie de professor da jovem rainha.
Quanta influência que o monarca de fato exerce no governo do país é difícil de medir. Afinal, nós, meros mortais, não temos acesso exato ao que é conversado entre as quatro paredes do Palácio de Buckingham entre o primeiro-ministro e seu soberano.
Temos, no entanto, vários indícios de um poder de influência forte, apesar de exercido com parcimônia.
Por exemplo, durante a Crise da Rodésia, quando o país africano, (atual Zimbábue) declarou-se independente da Coroa, a rainha teve uma atuação extremamente importante, cooperando com o gabinete para lidar com a ex-colônia rebelde.
É, aliás, nas relações exteriores em que o poder simbólico do monarca fica ainda mais aparente. Como Chefe de Estado e representante do poder emanado pelo governo britânico, o soberano desempenha papéis cerimoniais em vários eventos, espalhados pelo território da Commonwealth, assim como visitas de estado em vários países, como o próprio Brasil, que foi visitado pela ilustre Rainha em 1968.
Em The Crown, não é por acaso que George VI coloca tanta importância na Commonwealth Tour, a rodada oficial de visitas às colônias britânicas. Nem que Elizabeth, quando vista a sua coroa, faça o mesmo.
No episódio 8, Orgulho e Alegria, sua relação com o marido ameaça degringolar porque se recusa a encurtar a viagem. Tudo por uma boa causa: como diz um de seus assessores, os “ventos da independência” sopram pelo continente.
Além das funções cerimoniais, o poder de influência é claríssimo, como demonstrado pela própria série no episódio em que o presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, é forçado a aceitar o convite da rainha para um banquete de Estado.
Apesar de não ser um mais um colosso diplomático como foi sua trisavó, a Rainha Vitória, apelidada carinhosamente de “avó da Europa”, em uma era onde as monarquias são cada vez mais raras e as oportunidade para o monarca de influenciar diretamente a diplomacia do país por via de casamentos reais são, consequentemente, cada vez mais escassas, a influência exercida pela atual Rainha é sentida e impõe um respeito intangível nos Chefes de Estados estrangeiros.
A parte mais importante do poder simbólico real, entretanto, é o senso de continuidade passada pela instituição. Ele é refletido nas cerimônias oficiais, como a coroação e a abertura do parlamento.
A série passa bem isso na cena da coroação, apesar de não entrar em todos os pormenores que os amantes da monarquia adoram discutir.
Por exemplo, você sabia que o trono de madeira simples no qual a Rainha sentou durante sua coroação, o que foi replicado fielmente na série, é um trono comissionado pelo Rei Eduardo I (sim, ele mesmo, o “Martelo dos Escoceses”, vilão do filme Coração Valente) e contém uma pedra ancestral capturada pelo Rei durante suas guerras na Escócia e antes utilizada nas cerimônias de coroação dos reis escoceses?
Quem assistiu ao filme O Discurso do Rei deve se lembrar de uma cena engraçada envolvendo ele. No longa, o fonoaudiólogo do rei George VI se senta no trono para motivar o monarca, que é gago, a falar.
O truque dá certo, e o soberano, fulo com a insolência, consegue superar sua gaguice.
E essa é apenas uma de tantas relíquias utilizadas na cerimônia, que visa a acentuar ainda mais esse senso de continuidade.
Se um dia você, leitor, tiver a oportunidade de visitar a Abadia ou o Parlamento de Westminster (a sede do governo britânico), repare em como o ambiente é construído para valorizar a continuidade. Tudo foi extremamente pensado para te passar a impressão da monarquia é a mesma instituição inquebrantável da Inglaterra Anglo-Saxã medieval até os dias de hoje.
Minha cena favorita na série, inclusive, diz respeito a isso. No episódio 4, Elizabeth procura o conselho de sua avó, Mary, e as duas conversam sobre o “direito divino”. A jovem rainha acaba mencionando que, para seu marido, nas monarquias modernas há de existir uma separação entre Igreja e Estado (o que muitas vezes não cai tão bem na monarquia, mas essa é uma história para outra ocasião).
Ao ouvir isso a Rainha Mary, do alto de sua dignidade, dispara: “Sim, mas ele representa uma Família Real de aventureiros e novos-ricos que remonta o quê? 90 anos? O que ele sabe de Alfredo, o Grande, o Cetro da Igualdade e Caridade, Eduardo, o Confessor, Guilherme o Conquistador ou Henrique VIII?”
A noção de que uma instituição representa, e tem representado a nação durante toda sua história é extremamente poderosa.
Poder real, mas nem tanto
Além do poder simbólico, a Coroa ainda possuí uma gama de prerrogativas que utiliza para exercer poder de fato sobre o governo. O problema é que, como já falamos antes, a natureza da constituição britânica não é formal e escrita, o que torna muito, mas muito difícil saber até onde vão as prerrogativas.
Em 2004, o governo britânico tornou algumas delas públicas. Entre as mais importantes são a prerrogativa da misericórdia (o famoso “perdão real”), a prerrogativa de declarar guerra (na prática é sempre exercida pelo primeiro-ministro em nome do monarca, e foi objeto de polêmica quando utilizada por Tony Blair em 2002 na participação britânica na guerra do Iraque) e a prerrogativa de demissão de um primeiro ministro.
Em The Crown, vemos Elizabeth tentada a fazer uso dessa última prerrogativa para demitir Churchill durante o Grande Nevoeiro de 1952. Não é à toa que ela pensa duas vezes: ela é extremamente poderosa. Da última vez em que foi utilizada (em 1834!) resultou em desastre político.
Como os monarcas sabem muito bem, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.
Há ainda a prerrogativa mais poderosa de todas: o consentimento real. Ela é importante porque é a base do poder do monarca. Basicamente, quando uma das casas do parlamento (Casa dos Lordes ou Casa dos Comuns) deseja passar uma lei, ela primeiro tem que ser votada na casa que a iniciou, depois na outra casa e, por fim, passar pelo aceite real.
Por convenção, a rainha aprova todas as leis que saem do parlamento. No entanto, o direito de veto é uma das prerrogativas reais. Ou seja: em teoria, o soberano tem direito constitucional de vetar uma lei que considere contrária ao interesse nacional. Isso é absolutamente poderoso e a última vez que aconteceu no Reino Unido foi no longínquo ano de 1704.
Mesmo assim, temos um exemplo recente de uso do veto em outra monarquia constitucional: o Grão-Ducado de Luxemburgo.
Em 2008, o Grão-Duque Henri se recusou a dar o consentimento a uma lei que legalizava a eutanásia no país, alegando que assinar uma lei dessas ia contra sua liberdade de consciência. Comprou uma briga com seu parlamento e perdeu. Depois de 60% da população se declarar contrária à sua atitude, foi aberta uma sessão para emenda constitucional no parlamento luxemburguês e o Grão-Duque perdeu seu direito de veto.
Portanto, é difícil saber se as prerrogativas conhecidas são meramente teóricas ou se teriam utilidade prática se fossem usadas à revelia do parlamento. Em todo o caso, elas são estritamente controladas e servem mais como um poder extra em caso de grave crise nacional ou guerra.
Caso um monarca faça mal uso delas, certamente enfrentará uma crise constitucional de enormes proporções e porá em risco não só sua própria posição como a própria monarquia.
Apenas em momentos de atrito entre o governo e a coroa, como o ocorrido em Luxemburgo, descobriremos se a maioria das prerrogativas realmente tem efeito no mundo moderno (além do uso como poder de exceção durante crises, que já foi comprovado).
Enquanto isso, os ingleses rezam para que esse dia nunca chegue, pois um confronto entre Sua Majestade e seu governo traria resultados catastróficos para o país – qualquer que fosse o resultado.
A protagonista de The Crown pode não usar uma capa. Mesmo assim, é evidente que, em termos de responsabilidade, não perde de nenhuma super-heroína.
E aqui chega ao fim esse post especial. Gostaria de fazer um agradecimento especial ao Rafael pela colaboração. E a você, leitor e fã de The Crown, por ter chegado até aqui. Até a próxima!
Ou, como diriam os britânicos, godspeed!
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